A potência dos corpos


“Eu penso o quanto é contraditório falarmos em ocupação das escolas. Já que normalmente se ocupa algo que ainda não lhe pertence. Mas, nesse caso, a escola já é nossa, porém, nós não nos sentimos assim. É justamente por isso que estamos lá, para tomar posse do que nos pertence”. É assim que a estudante Cássia Quezia, 18 anos, define sua experiência nas últimas semanas, na ocupação do Centro Paulo Souza, em São Paulo. A frase foi proferida pela jovem no dia 14 de maio, num encontro no MASP, promovido pelo Grupo Contrafilé. Formado por
Cibele Lucena, Joana Zatz Mussi, Jerusa Messina, Peetssa e Rafael Leona, o coletivo participa da exposição Playgrounds, em cartaz no museu até 24 de julho. A obra apresentada pelo grupo é um espaço de discussão no qual a escola é o tema principal. Até agora, foram realizados seis encontros, quatro no MASP, um na ocupação do Centro Paulo Souza e outro na Diretoria de Ensino Centro Oeste de São Paulo, também ocupada pelos secundaristas. Cada reunião teve um formato diferente, variando de acordo com que os estudantes decidiam junto com o coletivo. Segundo o membro do grupo Rafael Leona : “As ocupações nas escolas foram um dos acontecimentos de maior relevância política dos últimos tempos. Quando recebemos o convite do MASP para participar da exposição, vimos que era uma ótima oportunidade para discutir o tema e trazer as escolas para dentro do próprio museu. Criamos um espaço que chamamos de ‘dispositivo’ ao invés de ‘expositivo’. O intuito era que os secundaristas não viessem ali apenas para contemplar obras, mas para produzir e trocar ideias, para criar junto conosco”.

Atuante há mais de quinze anos, o Grupo Contrafilé se formou em meados de 2000, num contexto no qual afloravam coletivos com ideias similares, em diversos países. “Nos anos 90, com o fim da guerra fria, o fortalecimento das políticas econômicas neoliberais e de um forte individualismo, não havia muitos mecanismos de produzir política. Nesse momento, as pessoas começam a se aproximar e perceber que elas não eram as únicas que estavam sozinhas, com esse sentimento de aflição. Formam-se vários grupos, com o objetivo de produzir e reforçar um conceito de politização dos afetos, entendendo que o encontro com o Outro, com a alteridade, é extremamente potente”, afirma Rafael. Inicialmente, muitos desses novos grupos não queriam ser associados às instituições de arte, consideradas reprodutoras do sistema. Tratava-se de um movimento de abandono da arte, assim como já feito pelo alemão Joseph Beuys e tantos outros artistas. No entanto, no começo dos anos 2000, as próprias instituições, como a Documenta e a Bienal, começam a convidar esses coletivos a participarem das exposições, o que gerou inúmeras divergências dentro dos grupos. O Contrafilé foi um dos que optou por trabalhar com as instituições, utilizando a visibilidade das exposições para divulgar ideias que considera relevantes.

Foi justamente num projeto financiado pelo Sesc, em 2004, que o grupo produziu uma das suas ações de maior impacto. Intitulado Zona de ação, o projeto reuniu coletivos de diversos países, como o argentino GAC (grupo de arte callejero), que produziram ações em parceira com bairros de São Paulo. O Grupo Contrafilé juntou-se com moradores da Zona Leste com o intuito de produzir uma ação a partir de um problema que afetasse a vida na cidade. Depois de algumas discussões, o coletivo decidiu que a catraca era um símbolo evidente das contradições e fronteiras que marcam o espaço público. Desde os limites físicos, como as catracas que impedem o acesso ao transporte e a inúmeros outros lugares, como as fronteiras invisíveis que fazem com que minorias sintam-se desconfortáveis em lugares públicos. Ou ainda as catracas do pensamento, que, por exemplo, impedem que o meio acadêmico valide outras experiências, como as dos povos tradicionais.  Foi com o objetivo de potencializar esse debate que o coletivo decidiu realizar uma intervenção: em plena madrugada, o grupo foi até o Largo do Arouche, no centro de São Paulo, e colocou uma catraca enferrujada em cima de um pedestal vazio, local que antes havia sido ocupado pelo busto do escritor Guilherme de Almeida(1890-1969). Abaixo da catraca, havia uma placa com a seguinte frase: “Monumento à catraca invisível. Programa pela descatracalização da vida”.

 

A catraca permaneceu no mesmo lugar por cerca de dois meses, até que o jornal a Folha de São Paulo escreveu uma matéria sobre a intervenção.  O artigo, cuja manchete era “Catraca invisível ocupa lugar de estátua no Arouche”, restringia-se a falar do abandono do patrimônio público da cidade, cujos monumentos haviam sido roubados ou degradados. No entanto, depois da exposição na imprensa, a intervenção adquiriu uma nova dimensão, passando a atingir um número muito maior de pessoas. Meses depois, inesperadamente, a Fuvest utilizou a intervenção do coletivo como o tema da redação daquele ano. A escolha também provocou inúmeras discussões, desde comentários sobre o uso de um neologismo (no caso “descatracalizar”) pela Fuvest e até debates sobre a pertinência ou não do tema. Alguns meses depois, o movimento estudantil organizou um protesto em frente à instituição, no qual catracas foram queimadas, numa clara sinalização de que se havia uma forma de segregação no país, ela era a própria Fuvest e a forma de ingresso na universidade. Por fim, no mesmo ano ainda, o Banco Itaú produziu uma propaganda, voltada ao público jovem, com o seguinte slogan: “Vestibulando, descatracalize sua vida. Abra uma conta no Itaú”. Com esse longo percurso, a intervenção atingiu o objetivo do grupo: ser um disparador de inúmeros discursos, nem sempre harmônicos, sobre um problema que afeta todo o corpo social.  “O desdobramento dessa ação é muito interessante, já que a problemática por ela instituída transbordou para várias esferas da sociedade, até ser englobada pelo próprio mercado, no caso um dos maiores bancos do país”, afirma Rafael.

 O “Programa pela descatracalização da vida” é uma ação representativa de todo um trabalho desenvolvido pelo coletivo para discutir a cidade como um lugar de experiência, ação e percepção do outro e de si mesmo. O espaço público, dessa forma, é local de disputa política, no qual diversos projetos se confrontam. A arte se torna uma forma de ativação do corpo na cidade, corpos domesticados que se encontram num estado defensivo e amedrontado diante dos discursos de medo que circulam na esfera pública. Para ironizar esse estado de paranoia, o coletivo escreveu um texto, junto com o grupo Política do Impossível, no qual se criava uma Secretaria do Estado de Confinamento (SECONFI). A partir de um linguajar irônico, o coletivo chama a atenção para a prevalência de discursos, que em nome de uma suposta segurança, defendem a limitação do ir e vir e da própria privacidade da sociedade, como evidencia o trecho a seguir: “A SECONFI  é um órgão de ação transversal que tem como missão garantir ao corpo social o sentimento de segurança plena, através do controle permanente e progressivo de sintomas que ameaçam o bem-estar social. Tal garantia é diariamente conquistada pelas inúmeras medidas de manutenção do medo – necessário a toda sociedade de ordem e progresso – oferecidas à população pelos diversos programas de ponta que elabora com orgulho e determinação”.

Nesse contexto de confinamento, a educação aparece como peça central para a ativação do corpo e de novas formas de pensar. Desde sua formação, o Grupo Contrafilé também pesquisa processos alternativos de educação, principalmente relacionados ao ato de brincar. Em 2014, o coletivo participou da 31a Bienal, realizando um trabalho em parceria com o palestino Sandi Hilal e o italiano Alessandro Petti.  A obra foi criada após diversos encontros dos artistas com integrantes do MST e do movimento quilombola. Denominada Mujawara (vizinhança em árabe), a instalação dispunha bancos rústicos de madeira ao redor de uma bola de terra vermelha que projetava um pé de baobá, uma das árvores mais antigas da terra, muito associada à tradição oral africana. Ela foi trazida para o Brasil por africanos escravizados, sendo conhecida como guardiã de memórias. Durante a Bienal, os artistas convidavam o público a se reunir em torno da árvore e a ouvir e compartilhar histórias, num ato de aproximação do outro, como supõe a palavra Mujawara.  Nessa obra, há também uma proposta de descolonização do pensamento, defendendo, assim como faz o sociólogo português Boaventura dos Santos, uma valorização de conhecimentos tradicionais, associados ao uso da terra, que usualmente são desvalorizados na lógica cartesiana universitária. A Mujawara também é, assim, uma proposta de descatracalização da vida.

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“Mujawara”, obra de Sandi Hilal, Alessandro Petti e o Coletivo Contrafilé apresentada na 31 Bienal de São Paulo. Foto: Divulgação


É justamente essa política dos afetos e a defesa da alteridade que marcam o projeto do grupo em exposição no MASP, como ressalta a integrante Joana Zatz Mussi: “Ouvimos diversos relatos de estudantes que diziam que o ambiente competitivo da escola sempre os ensinou a não gostar um do outro. E que com a experiência da ocupação, eles aprenderam a conviver, a cuidar do espaço da escola juntos, criando relações de proximidade que antes não existiam”. Como parte do projeto no MASP, o coletivo convidou os secundaristas a elaborarem, junto com eles, um livro que refletisse sobre o processo de ocupação, o estado atual da educação e a escola que se deseja construir. A publicação será lançada no final da exposição e distribuída gratuitamente nas escolas. Em exibição até 24 de julho, o projeto desenvolvido pelo  Grupo Contrafilé é, assim como todas as suas ações anteriores, uma defesa de uma relação ativa com o espaço e com o outro, como ressalta Joana: “Ao poder sobre a vida, responde-se com a potência da vida”.


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