Uma população de origem indígena, que veste coloridos ponchos de pano; uma culinária baseada em peixes e frutos do mar, com receitas famosas como o ceviche; uma música de sonoridade suave, com o predomínio de flautas andinas; e um passado que remete à história Inca e de seu poderoso império. Os lugares-comuns que vêm à mente quando pensamos no Peru não são equivocados, mas também não representam todas as facetas de um país muito mais diverso e múltiplo do que costuma-se pensar. “Não é muito conhecido no Brasil que no Peru nós temos uma presença afrodescendente importante”, conta o cônsul do país em São Paulo, Fernando Alvarez. “Não é uma porcentagem tão alta da população, menos de 5 % do total, mas é um grupo muito importante em termos de influência em diferentes áreas culturais e sociais”, segue ele.
É essa população, que se reinventa há séculos nas terras do país vizinho, o tema central da exposição Afroperu, em cartaz no Memorial da América Latina até o dia 3 de julho. Uma população de pele negra ou mestiça e com vestimentas distintas das indígenas; uma culinária muito mais baseada em carnes do que peixes; uma música de sonoridade mais forte, com tambores, cajóns e vozes potentes, sem o predomínio das flautas; e um passado que remete aos povos africanas, especialmente subsaarianos, não aos pré-colombianos. Estas são algumas das características culturais e históricas de uma população que, forçada a sair de sua terra natal no período escravista, se adaptou à vida na América e incorporou traços das tradições hispânicas e ameríndias, resultando em uma cultura híbrida e peculiar chamada hoje de afroperuana.
A mostra em São Paulo apresenta pouco mais de 20 imagens feitas pelo fotógrafo venezuelano Kike Arnal, que retratam a vida cotidiana dos afroperuanos, além de instrumentos musicais, vestimentas e um documentário, Nosotros, afroperuanos (veja o trailer abaixo), dirigido por Gabriela Watson e Danielle Almeida. Para além de apresentar as riquezas culturais desta população, o filme discute o racismo e as dificuldades vividas até hoje por este grupo, marginalizado na vida social e econômica do país mesmo após a abolição da escravidão, em 1854 (três décadas antes do Brasil). Alvo de preconceitos, assim como no Brasil, os afrodescendentes enfrentaram no Peru o agravante de serem uma porcentagem muito pequena da população, o que dificultou suas lutas afirmativas e inclusivas, que passam a ganhar mais força apenas nos dias atuais.
“Diferentemente do Brasil, onde os portugueses privilegiaram a mão de obra africana, na região peruana os espanhóis assimilaram mais a mão de obra indígena”, conta Alvarez. “Mas eles são, do mesmo modo, escravos que chegaram a partir do século 16 para trabalhar principalmente no campo. No Peru, não se adaptaram tanto nos Andes, mais frio, então foram principalmente para as fazendas no Norte e no Sul do país. Mesmo com as dificuldades, é um grupo que tem grande influência na área gastronômica, artística, nos costumes, músicas e danças”, completa. Na culinária, por exemplo, os escravos locais inventaram o anticucho, hoje um dos pratos mais populares no Peru. Feita com coração do boi grelhado, a receita tem origem histórica semelhante à da feijoada no Brasil, criada com os restos de carne não utilizados pelas elites.
Na música, os afroperuanos inventaram o cajón, instrumento de percussão que se popularizou com o flamenco espanhol, mas que surgiu, na verdade, em terras sul-americanas. Tiveram seu maior destaque internacional, ainda, na figura do poeta, escritor, dramaturgo e cantor Nicomedes Santa Cruz (1925-1992), intelectual, artista e ativista que ajudou a afirmar a cultura afroperuana dentro do próprio país e a espalhar sua riqueza e mensagem pelo mundo. Não à toa, em 2006 o Congresso da República do Peru declarou o 4 de junho – data de nascimento de Nicomedes – como o “Dia da Cultura Afroperuana”. A exposição em São Paulo, segundo o cônsul, acontece no contexto da celebração desta data, assim como do “Decênio Internacional dos Afrodescendentes”, declarado pela ONU, que vai de 2015 a 2024. “O afroperuano se constituí hoje como componente inevitável da identidade nacional do Peru”, conclui Alvarez.
Serviço – Afroperu
Memorial da América Latina – Espaço Gabriel García Márquez
De ter. a dom., das 9h às 18h
Entrada gratuita
memorial.org.br
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