“Você não vai ficar excitado se eu ficar pelado, né?”, adiantou André Abujamra, antes de tirar a camiseta preta, a calça jeans e exibir os 100 quilos sob uma cintilante sunga azul. Enquanto a produção ajudava o músico a localizar a fantasia de bruxa, o banheiro do teatro Viradalata, na capital paulista, ia se transformando num misto de consultório e salinha privê, porém, sem divã, pole dance ou borrões de Rorschach. “Eu não escuto música, eu faço música o tempo inteiro. Quando eu paro para escutar, eu tenho que ouvir coisas que me incomodam, que eu nem sei o que é”, explica Abu, no ápice do striptease moral, que começaria nas angústias de um táxi e terminaria com instrumentos falantes e o paciente levitando no palco. “O que eu realmente gosto é o ruim, não o bom! Tá me entendendo?”
A minutos de entrar em cena para mais uma apresentação do espetáculo O Homem Bruxa, um monólogo musical, com guitarra, bateria, trompete e flauta chinesa, André não conseguia segurar a ansiedade, ao mesmo tempo em que gesticulava freneticamente. Naquela noite de sábado, o auditório – onde cabem 270 pessoas –recebia 50 convidados, que se aglomeravam para a primeira sessão do final de semana.
Assim que as cortinas se fecham, o produtor Flávio Trindade inclina-se para dentro do banheiro do camarim e alerta: “Já abrimos Abu e está bem melhor que semana passada!”. Agitado, o artista se embaraça ao passar os braços e a cabeça pelo mesmo buraco da fantasia, ao tempo em que corre à frente do espelho, de olho nos últimos detalhes do personagem. “A coisa que eu mais gosto no meu trabalho é não fazer música, porque o silêncio faz parte da música. A minha vida é música e eu tenho que preenchê-la com silêncio. Eu nem lembro o que você perguntou, mas eu fui falando…”
Outro esquecimento entraria em pauta, naquele dia. Duas horas antes, dentro de um táxi que acelerava até a Rua Veridiana, no bairro Santa Cecília, André esbravejava ao filho Pedro, um aperto que lhe doía o coração. “Estou rezando para esse cabo estar no estúdio de casa, Pê! Se não, esquece o show.” Sentado no banco de trás, o sofrimento aumentava a cada sinal vermelho encontrado no caminho para o apartamento. “Calma pai, vai estar lá. Tem que estar”, apaziguou o menino de 12 anos. As mãos de André percorriam a escassa cabeleira grisalha, à medida que os olhos se alternavam entre o iPhone e o vidro fumê. Tudo isso ao som de Sorry, do Justin Bieber.
O timbre vocal de tenor russo, o taxista não reconheceu, mas o rosto e o sobrenome, lembrou com facilidade. Por trás dos óculos de armação preta, o artista quinquagenário carrega em todo lugar o par de olhos azuis e o peso de 30 anos de carreira com Mulheres Negras, Karnak, Banda Vexame, Gork, Fat Marley, quatro cds solo, 50 longas-metragens, trilhas de teatro e prêmios como Kikito, Candango e Guarnicê, além de cinco casamentos, dois filhos e uma cirurgia de redução de estômago. “Eu não faço tudo isso porque sou metido, mas é que a gente tem que lavar, passar e cozinhar nesse país. Eu sou o homem bruxa, filho do Ravengar, alguma coisa eu sei fazer”, gargalha o músico remetendo seu legado ao famoso personagem da novela Que Rei sou Eu?, de 1989, interpretado pelo pai.
Quem está na casa dos 20, talvez não se lembre, mas conviveu a vida toda com os arranjos daquele que o apresentador Serginho Groisman nomeou como o “Villa Lobos do século XXI”. Enquanto você pisca, André vai do “bum, bum, bum”, do Castelo Rá-Tim-Bum, a filmes como Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky, e Carandiru, de Hector Babenco, passando pela trilha do Telecurso 2000, até o inesquecível “224-4000”, do ratinho da Folha de S.Paulo.
Filho do ator e diretor Antônio Abujamra, André é um estranho no ninho da música brasileira. Criado em berço wildiano, no qual a normalidade era tratada como uma ilusão imbecil e estéril, passou a vida toda ouvindo a crítica atribuir-lhe adjetivos como alternativo ou lado B. “Ah cara, hoje em dia não existe mais isso. Ser famoso não me incomoda, mas me incomoda essa porra não estar lotada hoje. Eu queria ser milionário, botar um helicóptero no palco! Mas, eu faço um marketing muito bom, que quase ninguém conhece minhas músicas.”
Seu maior clássico, Alma Não Tem Cor, com o Karnak, de 1995, só ganhou o gogó do povo com a regravação de Zeca Baleiro, no álbum Coração do Homem Bomba Vol.1, de 2008. Não há mágoa com o maranhense, mas sempre sobra para o público. “Essa porra é minha!”, brada a cada coro de “toca aquela do Zeca Baleiro”.
Quando o assunto retorna ao pai, ele demonstra desânimo ao destacar o vazio das manhãs de domingo e os antigos recados deixados na caixa postal. “Está difícil, viu.” Desde que Antônio faleceu, em abril do ano passado, ele parece ter aceitado de vez os ensinamentos de Ravengar. “Porra, olha para o seu lado! Olha para o que está acontecendo com o mundo!”, vocifera o músico. “Depois dos 30 eu parei de discutir, ele tinha razão: a vida é uma causa perdida.” No rádio, Bieber sussurra “is it too late now to say sorry?” e o humor de Abu, aos poucos, vai mudando. Às vezes pode acontecer de você fazer a pergunta errada, como o Jô Soares, em 1988, que acreditou estar diante de uma coincidência de sobrenome e questionou “você é parente do Abujamra?”, tendo que ouvir “não, sou só filho dele”.
Nesses 30 anos, o rostinho de bebê, que cativou Jô a lhe chamar de “uma das coisas mais lindas que já vi na vida”, deu lugar a enormes rugas, que se perdem na barba grisalha e naqueles olhões azuis de Steve Buscemi. Com 1,90m, André parece um pouco amedrontador, porém, esse estereótipo de agente da KGB aposentado logo sai de cena quando o táxi estaciona em frente ao apartamento e ele encontra o cabo desaparecido no estúdio. “Toca de volta para o teatro, por favor!”
O clima voltava ao agradável, conforme a trilha sonora avançava para um leve jazz e se ouvia piadas vindas do banco de trás. “Meu agente diz que sou um videogame, já que a próxima fase sempre é mais difícil.” A nova fase, a do Homem Bruxa, surgiu ano passado, em uma inspiração do disco Amigos Invisíveis (1989), do amigo e guitarrista do Ira!, Edgard Scandurra. A dupla está preparando uma parceria, mas sem prazo ou qualquer amarra criativa que seja possível revelar. “A gente entra no estúdio sem saber o que fazer e essa é a brincadeira. O mundo tá muito certinho, afinado. Por isso eu fiz um disco desajustado, porque a ‘desajustês’ é o ajuste, entendeu? Nem eu entendi o que eu falei”, murmura cutucando o filho, que apenas sorri.
Acompanhar um cara que mistura sushi com macarrão, punk com bolero e Metallica com Sandy & Júnior não é tarefa das mais fáceis, até mesmo para os amigos próximos. “André é um cara quente, com emoção à flor da pele. Ele não é do verbo, nem linear”, afirma Maurício Pereira, sob a luz amarelada de um café no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. O cinquentão companheiro de Mulheres Negras mantém-se inquieto com a questão. “Ele tem cabeça de teatro, são 15 coisas agindo ao mesmo tempo, a música é só um ingrediente disso tudo”, explica arregalando os olhos, até que a sentença lhe percorre a espinha. “Para mim, o André é multi”.
“A primeira impressão que tive dele, foi que ali estava um ator, não um guitarrista. Um maestro querendo ser mímico, meio valentão, meio vilão, meio moleque. Foi confuso”, detalha Pena Schmidt, produtor musical de 65 anos, que descobriu alguns tesouros nacionais como Titãs, Ira! e Ultraje a Rigor, além de, claro, Os Mulheres Negras.
De volta ao teatro Viradalata, o multi-instrumentista já aparentava tranquilidade e começava a coordenar a equipe para a passagem de som e montagem do cenário. André, no palco, vai afinando cada um dos “atores” do espetáculo, enquanto gravações de vozes dão vida aos instrumentos. Acompanhado do filho Pedro, ele repassa o texto do show, pratica levitação (sim, acredite!) e ensaia piadas que serão apresentadas em menos de uma hora.
Assim que a poeira baixa e o palco fica pronto, André se dá ao direito de tomar um cafezinho. Ainda com o copo em mãos, começa a despir-se. Falta menos de meia hora para a cortina subir. Conforme vai tirando as peças, deixa à mostra uma tatuagem de cruz egípcia, sob o ombro esquerdo. O milenar símbolo da vida após a morte sintetiza a necessidade de um artista em ressuscitar seus projetos a cada década. O Mulheres ficou encostado quase 20 anos, até retornar em 2010. O Gork, seu trio punk, continua na ativa, além do Dj Fat Marley e do Karnak, que completou 25 anos e está gravando novo álbum, que segundo Abu é um disco que não é disco.
Para esse tipo de invenção, Ravengar logo resmungaria: “ideia qualquer mente vulgar é capaz de ter, meu filho.” E André está cheio delas. Desde o sonho de fazer um show sem energia elétrica, de terninho azul com Ed Côrtes, até um disco com 50 músicos sincronizados no mundo inteiro, tocando durante 50 minutos. “Só falta um milhão e meio de dólares, mas, sou taurino, eu vou conseguir”, declarou à Folha.
Algumas dessas vulgaridades ele já colocou em prática. “O primeiro disco do Karnak, por exemplo, eu compus numa viagem ao Egito. Tem uma história engraçada. Eu estava andando em um táxi quando escutei uma música que achei bacana. Acabei por comprar a fita do taxista e usei um pedacinho no disco. Até hoje não sei o que é”, revelou ao UOL, em 2006. “Pra gente não tem lixo, tem arte. Michel Teló e John Cage estão no mesmo barco. Essa é a comunhão minha com ele”, constata Maurício.
No ano passado, André rabiscou uma resposta a esse labirinto de ideias ao receber o convite para tocar no maior festival do planeta, o Rock in Rio. Quando almoçava em um restaurante com a esposa e o filho Pedro, o telefone tocou. Do outro lado da linha, o músico André Moraes queria a presença do xará em um show ao lado do baterista Fred Castro, do percussionista Guga Machado e do vocalista Constantine Maroulis, para um repertório contendo clássicos de filmes de terror. Ele disse que ia pensar, porém, na mesma hora a esposa reagiu: “Você tá louco? Vai dizer não para o Rock in Rio?”. Retrucou dizendo que a proposta não tinha nada a ver com a trajetória profissional. “E qual é o teu trabalho, Abu? Define o teu trabalho!” No fim das contas, aceitou e o evento marcou seu recorde de público: 30 mil pessoas.
Tá bom, quase todos foram assistir aos finlandeses do Nightwish, que se apresentaram no fim da noite, mas quem se importa? O André não liga, assim como não se preocupa com rótulo, público, manchete, fama, peso ou calvície. “O velho Abu sempre me dizia ‘a vida é sua, estrague-a como quiser’, e eu acho que estraguei direitinho.”
Já trajado, com capa, cajado e chapéu, o Homem Bruxa, ajeita o microfone em frente ao espelho, ao mesmo tempo em que oferece um último suspiro de sabedoria. “Se o Steven Spielberg me ligar hoje para fazer um longa, estou lá. Sei fazer e vou fazer bem feito! Não é ‘pré-potência’ é ‘pós-potência’, tá me acompanhando?”.
A silhueta do bruxo aparece no palco. O silêncio se instaura e imediatamente, surgem nos espectadores e na equipe técnica, aquilo que mais motivou o músico durante os anos de carreira, o sorriso dos que estão à sua volta. “Para mim, a única coisa real é o amor.”
SERVIÇO
André Abujamra – O Homem Bruxa
Teatro Vira da Lata
Rua Apinajés, 1387 – Perdizes – São Paulo
Apresentações aos sábados, às 19h
Até 25/6
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