De torcedora tricolor a presa política

Aos 69 anos, Maria de Lourdes Pereira da Silva nunca entrara em uma delegacia de polícia. Sua estreia, na noite de sexta-feira, 18 de março, na 5ª DP, centro do Rio de Janeiro, não foi por livre e espontânea vontade. Foi presa, acusada de atear fogo em prédio e provocar lesões corporais a terceiros, com mais 12 pessoas. Todos foram detidos pela Polícia Militar na manifestação contra a visita de Barack Obama ao Brasil, na qual um coquetel molotov feriu o segurança Rodolfo Gomes Pereira, de 26 anos.

A “experiência” de Lourdes foi além. Sábado, com Gabriela Proença Natal Costa, 24 anos, e Pâmela Leal Marinho Rossi, 23 anos, participantes do ato público, “conheceu” a Penitenciária Pedrolino Werling de Oliveira, o Presídio Bangu VIII, na Zona Oeste do Rio. Foi, como definiu, um dos piores momentos já vividos: “Sofri muito com o que passei na vida, mas essa prisão foi demais. Não quero ser uma presidiária… O que é isso?”, reage. Apesar da idade e de inexistirem provas vinculando-a ao atentado, ficou 78 horas detida, 52 delas no presídio.
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Na definição do genro e advogado, Estevão Ricardo de Souza e Souza, ela não é militante política nem acompanha a gestão de Obama. “Não sei nada de bom ou de ruim dele. Vi a passeata e entrei”, diz Maria de Lourdes. Naquele dia, ela foi ao centro do Rio bater pernas e, ao ver a passeata, decidiu: “Vou nela”. Sabia que era para Obama, mas desconhecia “ser contra ou a favor”. A caminho do Consulado Americano, ganhou um cartaz – “Fora Obama” -, empunhado sem pestanejar. “Era uma caminhada pacífica.”

Para seu advogado, “foi uma prisão política, para satisfazer os americanos”. “Não foi uma prisão justa e isto, com certeza, o governador sabia e quis manter. Era injusta para todos, para ela, mais ainda, por ser idosa”. Quis o destino que a detenção da idosa se desse no governo de “Serginho”, como ela e as filhas se referem ao governador Sérgio Cabral Filho, que conheceram criança, na casa da avó dele, Regina, que era vizinha e amiga de Maria de Lourdes em Cavalcante, subúrbio do Rio.

“Nunca imaginei que seria presa no governo dele. Pedi pelo amor de Deus, para falar com o Serginho para me tirar daqui, mas ele não soube que eu estava envolvida”, diz. “Foi uma coincidência terrível. Não queríamos privilégio por ele ser nosso conhecido”, conta Rosângela, filha mais velha que frequentou o apartamento em Copacabana onde Serginho – que ela tinha como “o gato do pedaço” – morava com os pais.

Maria de Lourdes tentava se recuperar dos efeitos do gás de pimenta afastada do local do conflito, quando foi detida pela polícia. Nas fotos da manifestação, ela aparece com o cartaz, álibi que a defesa usará para provar que não foi responsável pelo “atentado terrorista”.

Entrar na passeata sem saber do que se tratava não soou estranho aos parentes. “Dona Lourdes só tem um pequeno defeito. É um tremendo papagaio de pirata. Adora uma reportagem, um holofote, uma mídia! Ama dar entrevista”, disse o genro ao juiz. Ela é figura folclórica, especialmente junto à torcida do Fluminense, que a chama de “Vovó Tricolor”. Fanática torcedora, desfila nas ruas com a camisa do time e o seu galo – Paquito – um mascote, cujo sobrenome varia com o craque do momento: já foi Romário, na Copa de 1994; Roger, em homenagem a Roger Galera Flores; Petkovic, quando o sérvio jogava no time. Hoje, é Paquito Rafael, uma alusão à volta de Rafael Moura ao clube.

Nas Copas do Mundo, junta-se às grandes torcidas. Em 1994, o Paquito foi pintado de azul, verde e amarelo. Na do Japão, em 2002, os dois foram ao Alzirão, concentração de torcedores na Rua Alzira Brandão, na Tijuca. Na época, aos 60 anos, vestiu pijama verde e amarelo e desfilou com um relógio de cozinha no peito, nas madrugadas dos jogos do Brasil. Também participa de corridas – foi a duas São Silvestre e as concluiu – caminhadas e manifestações públicas, como atos do Betinho Contra a Fome e pela Paz no Rio. Acumula mais de 400 medalhas, lembrança desses eventos. Virou notícia na inauguração do Piscinão de Ramos – piscina pública no subúrbio -, portando o cartaz: “Suburbano também é gente, quero nadar aqui novamente!”.

Essa superexposição, para muitos loucura, para as filhas é a forma de a mãe extravasar seus sofrimentos. Aos sete anos, caçula e única menina da família, foi entregue a um dispensário pela mãe Joana, recém-separada para não atrapalhar suas aventuras amorosas. Ali ficou até os 18 anos, quando o irmão mais velho, Fernando Félix, a levou para cuidar dos sobrinhos. O casamento, em 1969, com Luiz Severino da Silva, foi uma “dádiva”, ele jamais deixou que ela trabalhasse.

Quando a diabetes levou a perna de Severino, foi Lourdes quem buscou ajuda nos programas da Rádio Tupi, onde obteve a muleta, a cadeira de rodas e a perna mecânica. Na ânsia de ajudá-lo a andar, trocou as próteses: levou a da perna esquerda, quando ele precisava da direita. Casada por 24 anos, enviuvou e penou para criar as três filhas, sem abandonar outro irmão, hoje com 77 anos, esquizofrênico. O primeiro ano de viúva foi de depressão, vencida com a euforia das vitórias da Seleção Brasileira no pentacampeonato. Ali nasceu a paixão pelos estádios. Foi também a época em que descobriu o prazer de desfilar na Ala das Baianas da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense.

Apesar dos dissabores, ela só perde a alegria ao lembrar-se das 78 horas presa, sem comer nem dormir. Na delegacia, não recebeu a atenção determinada pelo Estatuto dos Idosos. Só alta madrugada conseguiu, por outro preso, avisar o genro. Nem a chefe de Polícia, Martha Rocha, que prometeu humanizar o atendimento aos cidadãos, teve olhos para ela na 5ª DP naquela noite.

O consolo veio das “companheiras de prisão”, Gabriela e Pâmela – “minhas novas filhas” – que a protegeram no cárcere, inclusive na madrugada de domingo, ao passar mal. Foram os gritos delas que levaram as outras presas exigirem socorro. A cena ficou em sua memória, mas não lhe tirou o medo: “Imaginava que se abrissem a porta, iam me pegar, pensando que sou terrorista”. Sua liberdade, dada pelo juiz no domingo à tarde, foi retardada pela burocracia e só ocorreu na segunda-feira à tarde. Uma semana depois, ainda revivia o pesadelo: “À noite, quando durmo, escuto as presas gritando”.

Louco por ti Corinthians


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