No fim da tarde?de sexta-feira, dia 26 de março, depois de uma pomba rondar a seu lado, Thomaz Farkas (1924-2011) disse “sim” (tão silenciosamente quanto o foi em toda a sua vida), e voltou para o Reino de Oxalá. Nome definitivo para a compreensão da fotografia brasileira, também produtor e diretor de cinema, Farkas perpetuou os seus dias com doçura e generosidade tanto quanto o fez com sua arte. Não foi a morte que o levou. Foi a vida quem triunfou. Naquele fim de tarde de sexta-feira, a fotografia brasileira se despedia fisicamente de um personagem que, para mim, resumiu a imagem da forma mais simples e certeira, como jamais ouvi de outro fotógrafo: “Fotografia é emoção!”. Apenas isso, emoção.
Econômico em suas imagens, discreto em seu olhar, esse húngaro que aos seis anos aqui chegou para viver em São Paulo e naturalizou-se brasileiro aos 25 anos, passou a amar esse País com tanta intensidade que, a partir de 1964 – e diante do anúncio perverso do que seria um longo esquema de repressão política -, imaginou que o melhor para o Brasil seria conhecer a si mesmo e deu início à Caravana Farkas: “Eu achava que dando essa consciência, mostrando para a população quem somos nós, seria tão revolucionário quanto uma revolução”, disse-me ele em uma manhã de junho de 2005, no meio das grandes salas da Pinacoteca, quando estávamos montando a exposição Brasil e Brasileiros no Olhar de Thomaz Farkas. Também me falou mais três coisas: que não gostava de legendas nas fotografias para que a imagem não tivesse interferência e pudesse “falar” em sua plena representação poética; que gostaria de ser “baiano” e de fazer uma grande exposição na Bahia.
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No dia 2 de agosto de 2010, à beira da Bahia de Todos os Santos, no Museu de Arte Moderna da Bahia, inauguramos a exposição Thomaz Farkas – O Tempo Dissolvido, dentro do projeto A Gosto da Fotografia. Durante todo o processo de curadoria, encontrei Thomaz algumas vezes. Em todas, ele me disse: “Leve o que quiser!”. Já com a saúde debilitada, foi mais uma vez me encontrar em seu escritório no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Na mostra em Salvador existia um Núcleo para o Afeto, onde estavam tesouros pessoais do fotógrafo, entre eles, um “santinho” enviado por Deoscóredes Maximiliano dos Santos, outro grande homem, o Mestre Didi. O cartão anunciava a “passagem” de Mãe Senhora, rainha absoluta do Ilê Axé Opô Afonjá. Tomado de “emoção”, ele me disse, quase em silêncio: “No Brasil, a coisa mais importante não é o dinheiro, mas, sim, a amizade”. Às 19h30, naquele 31 de julho, Thomaz entrou no MAM. Vestido de branco, sentou-se em uma cadeira ao lado do mar da Bahia. Ali, sentia-se o seu tempo dissolvido. Foi como num transe.
É essa imagem que guardo dele. Recortado pelas luzes da Ilha de Itaparica ao fundo. Sentado em seu trono, diante das imagens que fez durante a vida inteira. Com o mar da sua terra espiritual arrebentando em espumas flutuantes de brancura, memória e solidão.
*Escritor e curador de fotografia da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Tem publicado, entre outros, Ficção Interrompida – Uma Caixa de Curtas (Ateliê Editorial), prêmio APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte de São Paulo de melhor livro de crônicas e contos de 2010.
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