Manifesta aborda as relações entre identidade e trabalho


Conhecida por seu viés político
e por abordar temáticas que refletem o contexto sociopolítico da cidade-sede, que muda a cada dois anos, a Manifesta 11 (Bienal Europeia de Arte Contemporânea) começa no dia 11 de junho em Zurique. A escolha da sede gerou uma série de questionamentos. Diante da profunda crise que atinge o continente europeu, por que expor na Suíça, um lugar pouco atingido pela recessão? Embora considerada um país politicamente neutro, a Suíça foi o local de nascimento do Dadaísmo – que celebra seu centenário este ano – e tem uma população cuja identidade social é fortemente definida em relação ao trabalho, tema do evento deste ano.

Num contexto marcado pela recessão econômica, conflitos migratórios e crescimento de movimentos de direita, a Manifesta 11 enfrenta um dilema: como produzir obras de arte que dialoguem com a realidade europeia? Trata-se de um grande desafio em um momento no qual conceitos como democracia e direitos humanos, pilares da modernidade ocidental, estão sendo questionados e reformulados. Mas, como sugere o filósofo Vladimir Safatle, talvez a arte seja justamente um dos meios mais potentes para se pensar as incertezas do presente (não à toa, o título da Bienal de São Paulo deste ano é Incerteza Viva).

Essa abertura para novas possibilidades é um dos traços do trabalho de Christian Jankowski, curador da Manifesta 11. A opção por Jankowski representa uma exceção na história do evento: é a primeira vez que um artista é curador da Manifesta (leia mais sobre o tema artista-curador aqui). Ele foi escolhido justamente por sua obra ter um caráter colaborativo, incluindo pessoas que não são do círculo das artes, e refletir sobre o papel das novas mídias digitais. Segundo o curador, a Manifesta 11 vê o artista não como uma ilha isolada, mas como um indivíduo engajado com seu ambiente e que, talvez, consiga dizer algumas coisas sobre essa realidade através de seus trabalhos. “Esse é o momento de sair do estúdio, do cubo branco, e talvez, até mesmo, das interpretações usuais que fazemos das obras de arte”, diz Jankowski.

É justamente essa tentativa de expandir a arte para outros espaços que marca o tema desta edição: o trabalho. Intitulada What People Do for Money: Some Joint Ventures, a Bienal terá uma exibição histórica – organizada em diversos museus da cidade –, na qual serão expostas obras que falam sobre a representação do trabalho ao longo da história. Além disso, 30 artistas foram comissionados para criar obras inéditas em colaboração com profissionais locais da cidade de Zurique. A lista de profissionais parceiros é diversificada, sendo composta por um dentista, um pastor, um meteorologista e um segurança, entre outros.  A artista mexicana Teresa Margolles, por exemplo, observou o cotidiano de uma profissional do sexo, a travesti Sonja Victoria Vera Bohorquez. Já o escritor francês Michel Houellebecq esteve com o médico Henry Perschak. Nesse processo de convivência, os artistas e os trabalhadores criaram uma obra coletiva que será exposta no próprio ambiente de trabalho dos profissionais/coautores, como uma padaria, um posto de polícia e uma estação de tratamento de esgoto, chamados satélites.

Além dos satélites e das exposições históricas, que estarão espalhadas por museus da cidade, a Manifesta 11 terá uma plataforma central chamada Pavillion of Reflections (Pavilhão de reflexões). Desenhado e executado colaborativamente por 30 estudantes de Arquitetura da universidade ETH Zurich, liderados pelo Estúdio Tom Emerson, o pavilhão será uma estrutura flutuante sobre o lago Zurique, uma espécie de ilha urbana com um cinema a céu aberto e uma piscina integrada, além de área de alimentação e bar. A ideia é que o espaço funcione como ponto de encontro, diálogo e reflexão entre participantes e público. É no pavilhão que os estudantes de audiovisual da Universidade de Artes de Zurique ( ZHdK) exibirão os filmes que registraram o processo de criação dos 30 projetos colaborativos comissionados.

A opção pelo tema é justamente uma forma de falar sobre a incerteza que caracteriza a Europa hoje. Hedwig Fijen, diretora da Manifesta, comenta sobre essa escolha: “É impressionante que ­Jankowski, um artista-curador, tenha desenvolvido um conceito com o tema do trabalho. O século XXI é marcado por uma mudança fundamental na forma como nós consumimos, produzimos e nos relacionamos. Essa alteração é conduzida pela convergência de esferas biológicas, psicológicas e digitais, uma virada conhecida como Quarta Revolução Industrial”. Nessa nova conjuntura de poder, na qual os direitos trabalhistas foram flexibilizados e o próprio Estado do Bem-Estar Social está ameaçado, como é possível se identificar com o exercício de uma função? Os projetos comissionados da Manifesta abordam essa relação entre trabalho e identidade, sugerindo como a colaboração entre artistas e outros profissionais pode estimular outras maneiras de pensar e, até mesmo, sentir o ofício.  A própria prática colaborativa no campo da arte, tendência cada vez mais forte entre jovens artistas, denominada “virada social” (social turn) pela crítica inglesa Claire Bishop, será colocada à prova. Questões como os efeitos específicos dessas práticas nas comunidades envolvidas, as relações entre trabalho compartilhado e transferência de conhecimento – teórico, empírico ou somático – e a possibilidade de usar esses modelos de ação coletiva para além do campo da arte contemporânea serão objeto de reflexão.

O Dada e 0 Cabaré Voltaire

Entre os motivos da escolha de Zurique como sede da Manifesta estão as comemorações dos cem anos do Movimento Dadaísta, que nasceu na cidade no contexto da Primeira Guerra Mundial.Considerado anarquista, o movimento desafiava a crença numa razão universal e na ideia de progresso. Ao opor-se a essa lógica positivista, o Dadaísmo propunha uma arte desorganizada e pautada pelo desejo do choque. O grupo se reunia no Cabaré Voltaire, clube literário que funcionava ao mesmo tempo como galeria de exposições e teatro, e promovia encontros dedicados à arte. A Manifesta 11 converterá o Cabaré Voltaire em um grêmio do qual qualquer artista poderá se tornar membro, bastando inscrever uma proposta de performance que seja realizada colaborativamente com outra pessoa que não provenha do universo das artes.  Em diálogo com o tema da Bienal, o espaço interior do cabaré será similar ao de um escritório, propondo novas formas de pensar a arte, num contexto de incerteza social e crise das relações trabalhistas.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.