Em uma passagem do romance Macunaíma, do escritor modernista Mario de Andrade, a índia Cy tece uma rede com seus cabelos, para que ela e o herói sem caráter possam dormir juntos. A rede representa a união dos dois que, mesmo separados pela morte de Cy, permanecem enredados um ao outro. Foi esse trecho que inspirou a paraense Luciana Magno na criação de sua nova obra: uma rede tecida com o seu próprio cabelo. A artista, que ganhou o Prêmio Pipa Online 2015, não cortava seu cabelo havia 12 anos, com a intenção de “sentir a passagem do tempo, deixando que os fios crescessem livremente, com sua própria organização, assim como uma floresta selvagem”.
A obra foi produzida durante a sua estadia na Residência Artística Sacatar, na Ilha de Itaparica na Bahia. Durante o período, a artista frequentou um centro de formação artesanal do SESC, onde aprendeu a fazer a rede, tecida com cabelo e linha de algodão. Depois, Luciana Magno pretende realizar uma performance na qual ela amarrará um punho da rede no restante do seu cabelo, que será como uma extensão do seu próprio corpo. Segundo a artista, o trabalho é uma forma de questionar o ritmo acelerado cultuado na contemporaneidade. “Há esse estereótipo do baiano como preguiçoso, lento. Eu queria justamente fazer um contraponto a isso, realizando um elogio à preguiça. Penso que muitas das doenças do nosso tempo, como a depressão, são fruto dessa agressão ao tempo natural do corpo”, afirma. Sua obra dialoga com a exposição em cartaz O Direito à Preguiça, de Nuno Ramos, na qual o artista também defende a valorização do ócio, num cenário no qual, por conta da internet e da troca de emails, os horários de trabalho se estendem de forma abusiva. A temática do ócio também aparece na obra do coletivo carioca OPAVIVARÁ!, que retoma as redes como tradição indígena e espaço ancestral da preguiça.
Essa defesa de outra concepção do tempo é um tema recorrente na obra de Magno. A artista realiza performances na Amazônia, numa tentativa de “respeitar o ritmo das pessoas que vivem lá e da própria natureza”, afirma. São intervenções silenciosas na paisagem, em um diálogo no qual a artista olha para a floresta e também é atravessada por ela, num processo de sincronia entre o corpo e a paisagem. No vídeo Figueira Selvagem (reproduzido abaixo), por exemplo, Magno aparece nua em cima de uma árvore, seus cabelos compridos se confundem com as raízes aéreas da figueira. Já na obra Belterra, ela é filmada abraçando uma árvore, o suor que cai de suas costas se mistura com a seiva que sai da planta, em outra alusão de unidade.
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“Nosso organismo é constituído da mesma matéria orgânica que está na terra, na folha de uma árvore. Quando morremos, nosso corpo vai para a terra e serve de alimento para a grama, que depois é comida pela vaca. É um ciclo no qual homem e natureza estão interligados”, afirma Magno. A artista se refere ao fenômeno do ciclo carbono através do qual a energia captada pelas planas no processo de fotossíntese é transmitida para os animais que se alimentam delas e, posteriormente, devolvida à terra, durante a decomposição dos organismos.
Foi a partir dessa concepção “do homem como parte de um todo e não um ser pensante separado”, que a artista começou a produzir Orgânicos, série que desenvolve desde 2012. Um dos trabalhos que compõem a série é a videoperfomance Trans Amazônica, exibida no 19º Festival Sesc_Videobrasil, no ano passado. Na obra, a artista aparece em posição fetal, numa alusão aos rituais de sepultamento dos mortos, praticados por algumas etnias indígenas. Ela se posiciona num trecho inacabado da Transamazônica, rodovia construída durante a ditadura militar com a justificativa de integrar o território nacional e de ser uma via de escoamento da produção brasileira para o Pacífico. A estrada foi inaugurada pelo então presidente Emílio Garrastazu Médici, em 1974, e permanece inacabada até hoje. Segundo o antropólogo da Unifesp Edmundo Peggion, cerca de 10 mil índios da etnia Tenharim foram assassinados durante a construção da Transamazônica . Em sua obra, Luciana Magno chama atenção para a história dessa terra, marcada por sangue e conflitos, e a disputa por territórios que ainda está em jogo. Sua presença nesse local de difícil acesso, onde não se enxerga mais ninguém, é também uma forma de oposição ao esquecimento do genocídio indígena, tão presente ao longo da história brasileira.
Atualmente, a artista está em Londres, na Delfina Foundation, residência artística que ela recebeu como prêmio no 19º Festival Sesc_Videobrasil. Sua obra pode ser conferida na exposição Das Virgens em Cardumes e da Cor das Áureas, em cartaz no Museu Bispo do Rosário. Na mostra, ela apresenta a videoinstalação Mais rapidamente para o paraíso, inspirada em uma cena do filme Roma, do cineasta italiano Federico Fellini, na qual figuras da igreja católica, como padres, coroinhas e o próprio papa, desfilam numa passarela. No vídeo, a artista aparece nua, andando de patins sobre as nuvens. Ela se move tranquilamente, sem regras ou trajeto pré-definido. Seus cabelos compridos e esvoaçantes junto ao seu corpo nu projetam uma sensação de liberdade. Segundo a artista, o corpo aparece nesta obra, assim como no restante de sua produção, como “uma forma de resistência”.
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