O jasmim que inspira o norte da Africa

A Tunísia é um país encantador, não apenas por suas lindas praias no Mediterrâneo, pela herança que ficou do Império Romano, pela riqueza cultural, arquitetura tradicional em harmonia com o ambiente natural, mas também pelo humor, alto astral e hospitalidade de seu povo (ok, isso não é uma observação cientificamente fundamentada…).

Quando estive na Tunísia pela primeira vez, fui recebida com um sorriso aberto e um presente pelo chefe da família que me hospedava. Ao me entregar uma túnica bordada dessas que se usa em casa no verão, ele disse: “Bem-vinda. Ao entrar na minha casa, você passou a fazer parte da minha família”. Nos dois anos seguintes, nas muitas conversas que tive com o senhor Hamadi Zahrouni e perante meu interesse em ler sobre a religião e os costumes do país, ele falou: “Não se preocupe com isso. Deus é um só. Ele é o mesmo para mim e para você”. Não estou segura de ter, naquele momento, a completa compreensão de que algo muito especial tinha entrado para sempre na minha vida. Mas é certo que tolerância, aceitação, inclusão e acolhimento são ingredientes fundamentais da vida na Tunísia. E isso ficou provado nos acontecimentos políticos recentes.

Parece evidente que estamos vivendo um momento histórico de grande importância.

Mais de quatro meses se passaram desde o grave incidente que disparou uma onda de mal-estar, seguido de fortes protestos, até a massiva mobilização social na Tunísia. Em 17 de dezembro de 2010, Mohamed Bouazizi, um tunisiano de 26 anos, vendedor ambulante, pôs fogo em si mesmo em protesto contra o confisco de sua mercadoria e a humilhação a que foi submetido por policiais municipais em Sidi Bouzid, cidade com cerca de 40 mil habitantes no centro do país. No mesmo dia, manifestações começaram na cidade, vários outros casos de autoimolação aconteceram na Tunísia e em países do norte da África e Oriente Médio e, após morte de Bouazizi, no início de janeiro, a mobilização ganhou amplitude nacional e internacional. Ali começou o que ficou conhecido como a primavera dos povos árabes e a Revolução do Jasmim na Tunísia.

A catarse nacional que eclodiu na Tunísia desde então é uma resposta a um modelo político e econômico excludente, fechado e que engessou o país em um quadro de baixo crescimento econômico, altas taxas de desemprego, poucas oportunidades e restrições sobre as liberdades civis. Não cabe aqui retomar a cronologia das revoluções que começaram ali e tampouco relembrar fatos amplamente noticiados pela imprensa mundial. A proposta é, então, procurar traçar em grandes linhas o quadro econômico e social nos países islâmicos do norte da África, correndo o risco de passar por cima de algum detalhe das experiências nacionais.

Como se sabe, a presença europeia nesses países foi determinante na definição de seu modelo de desenvolvimento e os processos de deseuropeização assumiram graus bastante distintos de violência e ruptura com o antigo colonizador, para usar um termo geral. O fato é que todos esses países mantiveram uma proximidade econômica com a Europa – particularmente com a França, no caso da Argélia, Marrocos e Tunísia. Todos eles têm a Europa, em especial a antiga metrópole, como o principal parceiro comercial.

No plano político, cristalizaram-se no poder grupos originados nos movimentos de construção nacional após o período de presença europeia, em vários casos com estilo populista e que, por diferentes meios, prolongaram sua permanência no poder, estabelecendo regimes com poucas características das democracias ocidentais. Para os países mais desenvolvidos, esse déficit de democracia não foi uma barreira para a manutenção de negócios e o estabelecimento de alianças com os países árabes norte-africanos.

O Egito, por exemplo, conseguiu manter um equilíbrio delicado entre as expectativas por mais democracia vindas da Europa Ocidental, um papel importante nas relações com os Estados Unidos na questão árabe-palestina e ainda a cultura e valores muçulmanos. Porém, os controles sobre a oposição política, a falta de liberdade e a piora do quadro econômico foram responsáveis por um crescente descontentamento das parcelas mais jovens da população, elemento-chave na queda do governo de Hosni Mubarak.

Discute-se em Economia Política a ideia de que a capacidade das elites de acumular ou perder apoio político depende, em grande medida, de como a política econômica e seus resultados em termos de crescimento e desenvolvimento afetam a renda dos diferentes grupos sociais.

A crise internacional, agravada a partir de 2007 e mais fortemente concentrada nos países industrializados, levou a uma redução do comércio mundial, com efeitos sensíveis para esses países. Diminui a demanda por suas exportações, isso tem efeitos sobre a produção doméstica e o nível de emprego. A recessão instaurada e a redução da oferta de alimentos ficam ainda mais difíceis de suportar sem democracia.

Quando os governos no poder deixam de garantir um padrão mínimo de crescimento da renda, o desemprego cresce entre a população urbana e é natural que se formem focos de tensão. A estagnação da economia, com restrições sobre as liberdades civis, em um mundo interconectado pela tecnologia de informação, mais do que retirar apoio político a esses governos, aos poucos vai estabelecendo as condições para uma explosão social.

Aconteceu a revolução na Tunísia e no Egito em relativa calma. Ambos os ditadores saíram de cena, em diferentes situações. A revista britânica The Economist publicou matéria em 20 de janeiro, intitulada “Ali Babá se foi. E os 40 ladrões?”, e trata da corrupção no país e das incertezas referentes à formação de um novo governo. Para além dos escandalosos casos de corrupção, restam muitas questões sobre a construção dos novos governos.

Imediatamente após a derrubada dos governos, povoaram a imprensa manifestações de temor em relação ao possível ganho de importância de grupos islâmicos mais radicais no cenário político desses países. Seja pela repressão a que foram submetidos por décadas ou por escolhas precisas das populações tunisiana e egípcia, não se pode dizer, atualmente, que isso será inevitável. De partida, sabe-se que os grupos fundamentalistas não foram protagonistas das revoluções.

Na Tunísia, foi anunciada a realização de eleições em julho próximo. Em meio a incertezas com relação à nova composição de forças políticas, cerca de 50 agremiações se preparam – atomização que poderia favorecer os grupos islamitas. No Egito, é esperada a organização de eleições para agosto. A Líbia está em guerra civil, com participação ocidental, como bem estamos acompanhando.

No plano econômico, várias questões cruciais estão sobre a mesa. Antes de tudo, para os Estados Unidos, Europa e outros países industrializados sem autossuficiência energética, um conflito em região petrolífera com desdobramentos e duração desconhecidos é assunto de primeira importância. Para o mundo todo, a oscilação nos preços do petróleo tem impactos em custos, decisões das empresas, nos índices de inflação, para citar apenas os fatores mais imediatos.

A Tunísia vive grandes preocupações em relação ao horizonte econômico mais próximo. O jornal de negócios do mundo árabe publicado na internet em três idiomas, L’Expert, afirma que a economia tunisiana tem dois pulmões: o mercado europeu e a Líbia. A Europa estando ainda às voltas com o rescaldo da crise internacional e a Líbia em pleno conflito armado, a economia tunisiana aumenta seu quadro de asfixia.

Se o descontentamento com a situação econômica detonou as revoluções no norte da África, é certo que os cidadãos esperam respostas para suas necessidades concretas. Imediatamente, melhoras substantivas estão fora do alcance de qualquer governo que venha a se formar. Restam profundos problemas estruturais que deverão ser enfrentados com um grande esforço de investimentos. A instabilidade atual não deve ajudar.

O projeto de desenvolvimento em prazo mais longo, um modelo econômico novo ou reformado deverá ser ponto de primeira importância na agenda das campanhas eleitorais e do debate político nesses países.

Previsões são difíceis, mas a luta pela democracia na Tunísia e no Egito abriu as portas para mudanças fundamentais no mundo. Que construam governos e modelos de desenvolvimento includentes. É o que se pode esperar agora. Inshallah!

*Economista e professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.


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