Quem acompanhou os debates na Câmara dos Deputados nos últimos meses ficou com a nítida impressão de que os parlamentares evangélicos formam um bloco direitista coeso e homogêneo: dos 81 integrantes da “bancada da Bíblia”, 75 votaram a favor do impeachment de Dilma Rousseff. Essa constatação é reforçada pela pregação reacionária de diversos religiosos pentecostais. No dia 11 de maio, o Pastor Everaldo (PSC) batizou o deputado federal Jair Bolsonaro, notório defensor da ditadura militar, nas águas do rio Jordão. E, logo após a posse de Michel Temer, o pastor Silas Malafaia festejou a extinção do Ministério da Cultura por ser um antro de “esquerdopatas”.
Agora, contudo, esse bloco conservador começou a rachar: no último dia 14 de junho, a deputada Tia Eron (PRB), da Igreja Universal, votou a favor da cassação do presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), da Assembleia de Deus. E ela não foi a única: outros dois evangélicos, Marcos Rogério (DEM-RO) e Sandro Alex (PPS-PR), também votaram contra o peemedebista. Da bancada da Bíblia, só Washington Reis (PMDB-RJ) permaneceu ao lado de Cunha.
Contrariando o slogan “irmão vota em irmão”, a maioria da bancada evangélica (que apoiou em massa a eleição de Cunha para a presidência da Câmara em 2015) julgou mais prudente abandonar o peemedebista para não frustrar as expectativas de seus eleitores: desde o ano passado um “manifesto evangélico” contra Cunha vem circulando pela internet. As pesquisas realizadas pelo Datafolha indicam que, desde novembro do ano passado, de 77% a 82% dos eleitores defendem a cassação do deputado. Os políticos muitas vezes se descolam dos interesses de suas bases. Mas, num ano eleitoral, o custo desse distanciamento pode ser muito alto.
O historiador Rogério Ferreira do Nascimento, doutor em ciência da religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, observa que é um erro pensar “que os evangélicos ou os pentecostais são todos reacionários” e “possuem uma opinião monolítica e uniforme sobre o futuro do país e o destino da nação”: nada mais enganoso do que imaginar que todo pentecostal é de direita.
Essa predisposição conservadora de fato existiu nos anos 80, como explica o sociólogo Ricardo Mariano, da USP. Na eleição de 1989, as “lideranças pentecostais demonizaram Lula e seu partido, acusando-os de comunistas e vaticinando que um eventual governo petista iria restringir a liberdade religiosa, perseguir os evangélicos, transformar suas igrejas em supermercados e privilegiar a Igreja Católica. Por isso, optaram majoritariamente por apoiar Fernando Collor”.
A rejeição ao PT persistiu na eleição de 1994, quando “os pentecostais sobressaíram como o grupo religioso que mais rejeitou a candidatura de Lula”. Mas, a partir daí, essa aversão se dissipou. A crise econômica no segundo mandato de Fernando Henrique e a estratégia petista de se posicionar ao centro do espectro político contribuíram para viabilizar a eleição de Lula em 2002. Punida pela Receita Federal com uma multa de mais de R$ 100 milhões, a Igreja Universal apoiou Lula no segundo turno daquele ano, assim como uma parte das Assembleias de Deus. As pesquisas indicam que Lula e Dilma receberam mais votos dos pentecostais do que todos os seus adversários tucanos de 2002 a 2014. O PRB, ligado à Igreja Universal, só abandonou Dilma em março deste ano, quando a presidenta já tinha perdido o apoio de quase todos os partidos de sua base no Congresso.
Segundo Rogério Nascimento, o atual radicalismo de alguns políticos pentecostais “tem mais a ver com a ambição de muitos desses deputados em buscar apoio e suporte financeiro no setor privado, com algumas empresas, do que com a aceitação de uma ideologia de direita”. De acordo com o historiador, “o caso Everaldo é emblemático nesse sentido: de admirador de Leonel Brizola, e defensor de várias propostas do PT”, só recentemente passou a defender um “liberalismo radical”.
Apesar disso, “ele não recebeu o apoio dos evangélicos”: embora os evangélicos representassem 22,2% da população, o pastor recebeu apenas 0,75% dos votos. “Um fiasco eleitoral”, diz Nascimento. Segundo o historiador, isso demonstra que o “conservadorismo moral nem sempre se associa automaticamente ao conservadorismo político”. Na realidade, as demandas sociais dos evangélicos estão ligadas “às suas imperiosas necessidades de superação da pobreza”.
Como a grande maioria dos pentecostais pertence aos estratos de renda mais baixos, eles tendem a reivindicar uma forte presença do Estado. Como explicou Simone Bohn em Evangélicos no Brasil: perfil socioeconômico, afinidades ideológicas e determinantes do comportamento eleitoral, os evangélicos defendem que o Estado tenha um papel exclusivo na educação (72,4%), na saúde (74,3%) e na previdência social (76,1%). Um pouco mais da metade é favorável à estatização dos bancos (50,6%), e um pouco menos (48,5%) defende a reforma agrária. A posição dos pentecostais sobre esses temas econômicos não difere muito da orientação geral dos eleitores de baixa renda. De acordo com Mariano, “o fato é que os estratos de baixa renda, de forma pragmática, tendem a demandar elevada participação do Estado na resolução dos problemas sociais que os afetam”.
Talvez não seja incorreto dizer que, assim como Deus é um grande fornecedor de bênçãos, o Estado é um grande distribuidor de bens. De fato, como diz Nascimento, toda a visão de mundo dos pentecostais “se estrutura a partir de hierarquias: Deus, a Igreja e o Estado”: “Nesse sentido, é possível afirmar que há uma importante valorização do papel do Estado”. A redução do papel do Estado defendida por Temer vai exatamente na contramão dos anseios desse eleitorado. Pior: as acusações de que as empreiteiras pagavam propinas a vários políticos governistas vêm abalando a pregação moralista dos parlamentares pentecostais.
Esses períodos de “crise moral” podem provocar súbitas reduções na presença evangélica na Câmara, como aconteceu em 2006, após os escândalos do mensalão e dos sanguessugas, quando o número de evangélicos caiu de 59 para 48 deputados. Como explica Nascimento, “a maioria dos evangélicos possui um rigor moral acentuado. Isso significa que, para esse público, pactuar com aquilo que é errado, com a corrupção, seria um grande pecado”. Como ensina a Bíblia, “o que guarda a boca conserva a sua alma, mas o que muito abre os lábios a si mesmo se arruína”.
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