Eleonora Menicucci de Oliveira é uma mulher acostumada a enfrentar desafios e marcar posição. Nos tempos de estudante de Sociologia em Belo Horizonte, ela não hesitou em alinhar-se às organizações de resistência ao regime militar instaurado em 1964. A iniciativa lhe rendeu sessões de tortura, além de dois anos e três meses de cadeia. Depois que se livrou das grades, dedicou-se ao movimento conhecido como a segunda onda do feminismo, que envolve o controle da mulher sobre o próprio corpo. Coerente, assume os dois abortos feitos nos anos de chumbo e advoga a descriminalização do procedimento. Sempre que fala do passado, enfatiza: “Não me arrependo de nada”. Ao mesmo tempo que defendia essas posições, ela não se descuidou de sua sólida carreira acadêmica, na área de saúde coletiva. Em fevereiro, era pró-reitora da Universidade Federal de São Paulo, quando a presidente Dilma Rousseff a convocou para integrar o ministério, “pelo conjunto da obra”. A escolha da presidente colocou em pé de guerra a poderosa bancada evangélica no Congresso e os militares. Em referência à nova ministra, até o padre Marcelo Rossi, que espera Dilma para a inauguração de uma mega-santuário em São Paulo, sinalizou que cerrará fileiras com os evangélicos, caso “algum candidato” se posicione a favor do aborto.
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Aos 67 anos, Eleonora tem agora o desafio de continuar em harmonia com sua trajetória e imprimir avanços nas ações da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. Não será uma tarefa fácil. Antes mesmo da posse, ao pedir a demissão da nova ministra, o deputado evangélico Eduardo Cunha (PMDB-RJ) não mediu palavras. Classificou Eleonora como “abortista” e “sodoministra”, em referência à Sodoma e Gomorra, as duas cidades bíblicas que teriam sido destruídas por Deus, por causa da imoralidade e perversão de seus moradores. Os militares, por sua vez, divulgaram um “Manifesto Interclubes”, no qual atacavam Eleonora por, no discurso de posse, criticar o regime dos generais e “homenagear os companheiros que tombaram na refrega”. Assinado por oficiais na reserva da Aeronáutica, do Exército e da Marinha, o manifesto também criticava a ministra Maria do Rosário Nunes, dos Direitos Humanos, por opinar em entrevista sobre “a validade da Lei da Anistia”. Lembraram ainda o discurso da vitória de Dilma, no qual ela prometeu ser a presidente de todos os brasileiros e brasileiros, sem nenhum tipo de discriminação.
Dilma enquadrou os militares sem pestanejar. Na condição de Comandante em Chefe das Forças Armadas, mandou o ministro da Defesa, Celso Amorim, convocar os comandantes das três forças e desautorizar o manifesto. A ordem foi cumprida em meia hora. Afinal, mesmo na reserva, eles são obrigados a respeitar o Estatuto Militar, que proíbe críticas ou confrontos com autoridades. Entre os companheiros homenageados por Eleonora estava o jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto sob tortura na sede da Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo, em julho de 1971. Pela versão do órgão de repressão, Merlino morreu atropelado, durante tentativa de fuga. Empenhada em recuperar a história do jornalista, sua família move uma ação contra o então comandante da OBAN, o hoje coronel reformado Carlos Brilhante Ustra. Eleonora é testemunha no processo. Em agosto do ano passado, em depoimento à Justiça, afirmou que, na ocasião, foi torturada na mesma sala que Merlino. Ela, na cadeira de dragão, ele no pau de arara, dois instrumentos de tortura usados no período. “O coronel Ustra”, garantiu Eleonora, “entrava e saía da sala”.
“Em outra oportunidade, o vi no momento de uma ameaça de tortura à minha filha. Ele entrava na sala e fazia assim ou assim, dizendo positivo ou negativo para os torturadores da equipe”, afirmou Eleonora à juíza Claudia Menge, fazendo o sinal de positivo e negativo com o polegar direito.
Maria, a filha de Eleonora, tinha um ano e dez meses quando foi presa com a mãe, em 11 de junho de 1971. Só foi entregue à família dez dias depois. Até hoje, não se sabe o que acontecia com a menina no período. Eleonora só via a filha quando a criança era levada à sala de tortura. Hoje, com 43 anos, Maria é designer e mora em Nova York. No Brasil, quando a mãe foi indicada ministra, acabou bastante citada na mídia, por ser homossexual e ter tido uma filha por meio de inseminação artificial. A advogada Maria Aparecida Costa, a Cida, tem outras lembranças de Maria. Com Eleonora, Cida cumpriu pena por subversão no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Na época, o pai de Maria, Ricardo Prata Soares, também estava preso e a menina vivia com a família da mãe em Belo Horizonte. “Quando ela chegava para visita, era uma alegria”, lembra Cida. “A partida também era muito triste, mas Maria gostava muito de desenhar. Na cela, Eleonora tinha uma infinidade de desenhos dela.”
Em seu apartamento impecavelmente arrumado em São Paulo, Eleonora ainda guarda uma caixa com desenhos e bilhetes feitos naquela época pela filha. Como a menina não sabia escrever nem sequer falava direito, a mãe de Eleonora ou uma de suas três irmãs registrava no papel as mensagens de Maria, do jeito que ela falava. Em trecho transcrito pela própria ministra nos anos 1990, o recado era direto: “Aí, a Malia gota muito do Ricado e da Nônola, mas aí no tabalho tem soldado no mulo que não deixa a Nonôla i pa Belizonte cum a Malia e o Ricado. O soldado vai dexá a Nonôna í pa Belizonte com a Malia e o Ricado? Eu vô pedi pa ele”. Muitas vezes, a portadora das notícias de Maria era dona Dilma Jane Rousseff, “a verdadeira Dilma Rousseff”, como ela declarou quando a filha foi eleita presidente do Brasil.
Eleonora e Dilma se conheciam desde os tempos em que estudavam em Belo Horizonte. Estreitaram o vínculo na Torre das Donzelas, como ficou conhecida a construção colonial circular que abrigava as presas políticas no Presídio Tiradentes. Após deixar o cárcere, Eleonora teve outro filho, Gustavo, que já lhe deu dois netos. Pós-doutora em Saúde Pública pela Universidade de Milão, a ministra costuma lembrar de que o aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil. Está convencida de que se trata de um problema de saúde pública, mas se declara disposta a conduzir com “muita serenidade” as políticas de governo. “O debate é da sociedade civil”, afirma. O tema também permeou a campanha presidencial de 2010 e chegou a ser apontada como um dos principais fatores que impediram a vitória de Dilma no primeiro turno. E a bancada dos evangélicos está cada vez mais forte. Um de seus principais líderes, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), acaba de assumir o ministério da pesca. Eleonora tem, portanto, uma boa briga pela frente.
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