Em um ambiente escuro, quatro telas transmitem simultaneamente vídeos distintos, bastante experimentais, enquanto luzes de diferentes cores acendem e apagam esporadicamente em variados pontos do local. Ao mesmo tempo, programações sonoras eletrônicas, em alto volume, se mesclam aos áudios dos vídeos e percorrem as caixas de som espalhadas pelo espaço. O comando de todos esses sons, imagens e luzes está programado em um pequeno dispositivo eletrônico, o Emerging Paradigm (paradigma emergente). Criado pelo artista inglês Haroon Mirza, 39 anos, esse dispositivo controla a instalação multimídia descrita acima. A obra, que chega ao Brasil na mostra ããã, propõe ao espectador uma experiência imersiva que mais se assemelha a uma festa de música eletrônica do que a uma exposição tradicional. E é justamente essa a ideia, segundo Mirza: “Acho que a percepção do que é estar em um espaço de uma mostra de arte está mudando”, explica. No caso, trata-se de uma percepção sensorial que – prazerosa ou incômoda – dificilmente deixa o público passar ileso e que, em sua multidisciplinaridade, questiona paradigmas estabelecidos nas artes visuais.
“Com os avanços tecnológicos, a inteligência artificial e a situação política atual, o que vem depois em termos de evolução do pensamento?”, questiona o inglês logo ao início da conversa com a ARTE!Brasileiros. O artista se refere também ao que é chamado de “ponto de singularidade”, hipótese de que com a aceleração exponencial do progresso tecnológico a inteligência artificial (IA) acabará por ultrapassar a inteligência humana, causando uma descontinuidade no tempo e na história, com eventos imprevisíveis ou mesmo incompreensíveis que podem mudar o curso da humanidade e, consequentemente, das artes como um todo. “Tem um cara que já comissionou as dez primeiras pinturas que vão ser feitas pela IA depois que for atingido o ponto de singularidade”, afirma Mirza, em tom de espanto. Segundo ele, o mesmo avanço que pode possibilitar grandes realizações pode também destruir o mundo.
Antes que isso ocorra – se ocorrer –, porém, modelos já estão sendo ultrapassados. “Assim como o paradigma moderno foi substituído pelo contemporâneo, um ‘paradigma emergente’ está surgindo e é interessante pensar o que são essas novas práticas, essa nova arte”, explica Mirza. O autor não se propõe a dar respostas, no entanto, nem a definir o que seria esta lógica e esta arte emergente. Ainda que concorde que ela esteja relacionada ao que começa a ser chamado de pós-contemporaneidade, Mirza se preocupa menos com a categorização do que com a produção em si. Para ele, as próprias classificações “arte moderna” ou “contemporânea”, hoje totalmente acolhidas, surgiram principalmente como rótulos de mercado, e as práticas que surgem agora não necessitam de definições do mesmo tipo. “São práticas que se contagiam umas às outras, nas quais música, arquitetura e design, por exemplo, podem se unir de novo, em vez de serem disciplinas separadas”, afirma. Se fusões desse tipo estão explícitas na obra já citada, estão também presentes em grande parte da produção do inglês, um dos artistas mais jovens a receber o Leão de Prata da Bienal de Veneza, em 2011.
Apresentado pela primeira vez em Madri no final do ano passado, a instalação multimídia chega agora a São Paulo no Pivô, espaço de arte independente que ocupa 3.500 metros quadrados do icônico edifício Copan, no centro de São Paulo, e fica em cartaz até 13 de agosto. O trabalho exposto no Brasil se utiliza do mesmo dispositivo e equipamentos audiovisuais para apresentar novos conteúdos, montados no local com nova configuração. Ocupando grande parte do espaço expositivo, Mirza coloca seu trabalho em diálogo estreito com as curvas do prédio de Oscar Niemeyer (1907-2012): “É uma obra site specific, mas que pode ser específica para qualquer lugar. Quer dizer, o mesmo trabalho pode ser apresentado em diferentes espaços, mas vai sempre ser adaptado”. Neste sentido, o autor concorda que o termo situation specific pode também ser aplicado.
Para além da adequação à arquitetura, o conteúdo da obra foi todo produzido nos dois meses em que o artista passou em residência artística no Pivô. Quatro temáticas, uma em cada vídeo, dão base ao trabalho: o clima político brasileiro; a cultura musical local; os desenvolvimentos na física e cosmologia; e os enteógenos (substâncias alteradoras da consciência). “Podem parecer coisas aleatórias, mas definitivamente há paralelos entre elas”, diz Mirza, relacionando cosmologia com alucinógenos, estes últimos com experiências musicais, e assim por diante. “E a política, esta tem a ver com tudo”, conclui ele. Mais do que explicar essas relações, no entanto, o artista prefere que elas sejam intuídas pelo público através de uma vivência sensorial e imersiva. Sobre a polítca brasileira, por exemplo, Mirza admite a dificuldade de compreender o que se passa no Brasil hoje: “Eu não vou entender a política brasileira em dois meses. Então, se trata mais de usar sua imagem, se referir a ela e assumir que a situação é complexa e que eu não vou conseguir simplificar. Eu não posso dar as alternativas, as respostas, mas eu posso sugerir que existem alternativas. Todos nós podemos”.
A programação de vídeos – cheios de colagens de filmagens inéditas mescladas a outras apropriadas da internet –, áudios, ruídos e luzes, integrados em um grande sistema, resulta no que Mirza gosta de chamar de uma composição. Partindo da constatação de que “música é som organizado”, o inglês define a “composição como material organizado”. E o que são suas obras senão material audiovisual organizado em instalações multimídia? “Se sou artista ou compositor, são apenas palavras. E um artista é um compositor também. A questão é que as palavras que você usa, dependendo do contexto, mudam o jeito que as pessoas lidam com o trabalho. Talvez se eu não falasse que sou compositor, não tivesse tido a oportunidade de trabalhar com coreógrafos, com um balé, por exemplo.”
Ao demandar grandes espaços e estrutura, ao estimular diferentes sentidos e ao se propor a romper com paradigmas estabelecidos na arte, a obra de Haroon Mirza resiste a classificações ou explicações fáceis. Se dialoga com o trabalho de outros artistas contemporâneos, não se insere, no entanto, em nenhum movimento ou grupo. “O fato de meu trabalho não ser reproduzível, como um vídeo, foto ou pintura, no início me parecia um pouco frustrante. Mas hoje eu acho motivador. Gosto de pensar no que pode ser estranho, diferente, na era da reprodução digital”, diz o artista. Para além de suas grandes obras de imersão, que dificilmente podem ser vendidas – “a não ser que algum museu queira, mas isso talvez ocorra daqui a uns dez anos” –, Mirza também desenvolve trabalhos menores (esculturas luminosas e painéis, por exemplo), que podem ser comercializados. Mas não deixa de fazer críticas contundentes ao mercado: “O papel do mercado de arte no mundo é obscuro. Mas o fato é que eu tenho que lidar com ele, vender coisas, até mesmo para eu poder fazer trabalhos como este que estou apresentando aqui”, conclui.
Serviço – ããã
Até 13 de agosto
PIVÔ – Edifício Copan, loja 54, Avenida Ipiranga, 200, São Paulo, SP
(11) 3255 8703
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