Professora pantaneira

A distância não é muito grande, cerca de 50 km, se o caminho fosse uma linha reta. Mas as voltas das estradas de terra e os obstáculos encompridam a viagem. São alagamentos, atoleiros, buracos, lagoas e vazantes para atravessar ou contornar, só em veículos 4×4. E mais as invernadas e as cercas com porteiras para abrir e fechar de volta.

Assim, o trajeto entre as sedes da Baía das Pedras e da Primavera varia de duas para mais de três horas, apesar de as duas fazendas serem vizinhas. A jornada também é longa para quem vem das outras fazendas do núcleo Primavera: Baía Bonita, São Geraldo, Santa Maria e Luzeiro. Ou das fazendas de outros núcleos: Taboco, Santana, Querência, Tupã Ciretran e Campo Novo.

[nggallery id=15887]

É por isso que no Pantanal mato-grossense as escolas têm um calendário diferenciado, regulado pela altura das águas e pela condição das estradas. Os alunos – filhos de peões e trabalhadores das fazendas – não podem ir e voltar todos os dias. Então, pernoitam na escola. Quer dizer, moram mais na escola do que nas fazendas onde os pais trabalham. Ficam de duas semanas a quatro meses de cada vez. As aulas iniciam em março-abril, quando a cheia começa a ceder, e terminam em meados de dezembro.

E quem cuida das crianças entre os horários de aulas? Na Escolinha da Alegria, do Núcleo Primavera, é Mariza Aparecida Gomes Pinheiro, 33 anos, professora e mãe “adotiva”. Recebe salário por 40 horas semanais da Prefeitura de Aquidauana (131 km de Campo Grande, MS), mas cuida de seus alunos 24 horas por dia, 168 horas por semana. A meninada chega a partir dos 7 anos e todos frequentam a mesma sala, do 1o ao 5o ano do Ensino Fundamental.

“Amo trabalhar aqui. Tenho vontade de escrever um livro sobre a diversidade pantaneira, principalmente a escolar que é tão rica. Os alunos às vezes dizem que pirei, quando pulo e vibro com a leitura das crianças. A maioria dos educadores tem dificuldade nessa primeira fase da escolarização, pois o processo é lento. Mas considero o retorno do que ensino gratificante. Mas tenho outras felicidades.” Em sua lista, Mariza inclui a troca de conhecimentos. “As crianças que moram em fazendas trazem de casa uma grande bagagem de conhecimentos rurais e nas rodas de conversa trocamos informações.” Em especial, quando o assunto é educação ambiental. Ali ninguém consegue abstrair a natureza. Basta olhar pela janela para ver um tuiuiú pescando, um gavião-belo ou uma família de veado-campeiro. Sem contar as ocasiões em que alguns animais resolvem visitar a escola, como quatis, tamanduás, morcegos.

“É mais rico trabalhar com o meio ambiente aqui do que nas escolas urbanas. Além de livros e internet, os alunos podem visualizar a fauna e a flora de perto. Conhecem o ambiente pantaneiro, os cuidados com o meio, a biodiversidade local e as interações entre plantação, gado e conservação”, diz a professora, nascida em Campo Grande.

Mariza assumiu a escola em 2009. Formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Aquidauana, antes trabalhou em escolas rurais do município de Anastácio. “Não existe, na rede de ensino rural de Anastácio ou Aquidauana, nenhuma escola com estrutura física igual à Escolinha da Alegria.”

A estrutura física a que ela se refere – garantida pelos fazendeiros – é uma sala de aula multianual, uma sala com uma pequena biblioteca e alguns computadores, uma estante com livros didáticos e paradidáticos, mais os materiais usados em atividades escolares ou tarefas e brinquedos.

Ao lado da classe fica o dormitório dos alunos, com um quarto cheio de beliches para os meninos, outro para as meninas, e os respectivos banheiros. Mais adiante está a casa da professora, com a cozinha onde são preparadas as refeições de todos. As crianças às vezes circulam descalças, mas têm acesso à internet e contam com Mariza para tudo.

“Os carinhos, broncas, punições, alegrias, descobertas, a atenção são momentos trocados entre nós, não só comigo, mas com as outras pessoas que trabalham aqui. Meu marido, Daires Azevedo dos Santos, é como um segundo pai. Os meninos adoram sair com ele para pescar.” Daires também trabalha na sede da Fazenda Primavera e, de vez em quando, dá um jeito de sair para levar a garotada para observar os animais e esfriar a cabeça. Essa estratégia ajuda a aliviar as tensões. “Quando eles resolvem tirar o dia para brigar um com o outro, fico exausta”, diz Mariza. “Outra situação é quando a criança não consegue acompanhar o ritmo dos colegas e precisa de uma atenção individual. Mas não considero dificuldade, só um cuidado a mais.”

Mesmo com tantas tarefas diuturnas, a professora ainda arranja tempo para estudar. Em outubro de 2011, terminou um curso de especialização em Metodologia do Ensino de Artes, com o tema Arte Indígena Terena, incluindo o artesanato e as danças desenvolvidas nas escolas indígenas, em especial na aldeia Bananal, localizada na região. Gostaria de estender suas pesquisas, mas guarda a vontade para quando puder viajar com esse objetivo. Por ora, os alunos estão em primeiro plano. Entre seus autores favoritos figura o filósofo Cipriano Carlos Luckesi, um educador que vive na Bahia. “Há mais de dez anos, ele trabalha com o tema avaliação. Defende esse instrumento como mecanismo para a construção do processo de ensino-aprendizagem”, explica. “A avaliação deve ser contínua e processual para o desenvolvimento do aluno. Não deve ser examinadora. Aqui no Pantanal, o fato de morarmos com os alunos favorece o acompanhamento na assimilação dos conteúdos e podemos retomar sempre que necessário. Isso nos dá meios de avaliarmos a aprendizagem diariamente, como sugere Luckesi.”

Problema mesmo é quando os alunos deixam a escola devido a mudanças no trabalho dos pais. A rotatividade dos alunos é alta, mesmo para os padrões de escolas públicas, pois as crianças acompanham os pais no vai e vem entre fazendas ou mesmo entre retiros da mesma fazenda (locais afastados para onde o gado é levado durante boa parte do ano). “Em 2011, iniciamos as aulas em 4 de abril com 22 alunos, mas encerramos em 15 de dezembro com 17. Isso ocorre em todos os núcleos. Existem fazendas que iniciam com cinco alunos e encerram com dez”, conta Mariza.

O entra e sai prejudica o rendimento dos alunos. E traz mais desafios para a professora, obrigando-a a fazer um plano de aula individualizado. “Em setembro passado, três alunos iniciaram o ano letivo no final do mês e um deles, com dez anos, nunca havia frequentado a escola. Os dois outros, com 12 e 13 anos, respectivamente, não eram alfabetizados. Tivemos também uma aluna paraguaia, que quase não falava português e estava iniciando sua alfabetização aos 12 anos.”

A menina só chegou à escola no final de julho e saiu em dezembro sem saber ler direito. Isso é comum na escola pantaneira, bem mais flexível quanto a entrada e saída de alunos, durante todo o ano. Em alguns casos, a persistência e a dedicação da professora leva ao sucesso. Em outros casos, não há tempo hábil para fazer milagres.

“Até porque cada criança tem seu ritmo e as particularidades são muitas.” Difícil mesmo é conter o choro quando os filhos “adotivos” vão embora. “Sou muito chorona. Cada vez que uma criança deixa a escola, fica aquele vazio… Sempre penso: será que vou vê-la algum dia nesta vida? Espero ter contribuído o mínimo que seja em sua formação. Peço a Deus que ilumine o seu caminho.”


Comentários

Uma resposta para “Professora pantaneira”

  1. Nobre colega. Moro em Miranda-MS, onde trabalho ministrando aulas de historia, filosofia, sociologia, geografia,e ed. religiosa.Gostaria de trabalhar na Escola Pantaneira mas não sei como enviar meu curriculun. Sou pantaneiro e formado em historia e preciso de uma chance pra ajudar na educação nas fazendas onde fui criado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.