A menos de um mês da Olimpíada, o Rio de Janeiro está em estado de calamidade pública. O governo enfrenta uma grave crise financeira que afeta os serviços básicos, com o sucateamento das universidades, o atraso do pagamento dos servidores públicos e a precarização de escolas e hospitais. É nesse contexto de crise que a Escola de Artes Visuais do Parque Lage foi desalojada, por dois meses, para que o local se torne a sede da delegação olímpica da Grã-Bretanha. A comitiva alugou o espaço por cerca de R$ 2 milhões, dinheiro que será usado para amortizar as dívidas da instituição. Diversos alunos escreveram textos protestando contra o desalojamento da escola, que está em crise desde o ano passado, quando cerca de 40% dos funcionários foram demitidos.
Fundada oficialmente em 1975, a instituição tornou-se um centro de formação, reflexão e debates sobre a arte contemporânea. Por lá passaram artistas de peso, como Rubens Gerchman, Anna Bella Geiger, Alair Gomes, Iole de Freitas e Nelson Leirner, que lecionaram na escola. O local foi cenário de clássicos do cinema como Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, e Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. Também sediou exposições relevantes, dentre as quais se destacam Como Vai Você, Geração 80?, que reuniu a produção variada da década de 80, e a primeira mostra individual de Artur Bispo do Rosário, em 1989. Com cerca de 1.500 alunos em 2015, a escola oferece diversos tipos de cursos, além de contar com um programa de bolsas. Para entender como uma instituição deste porte se encontra nesta situação de precariedade, precisando abdicar de seu espaço por um mês, é preciso voltar alguns anos.
Desde o final de 2013, a escola passou a ser administrada pela Organização Social Oca Lage, a mesma que também é responsável pela Casa França. O convênio foi implementado pela então secretária da Cultura, Adriana Rattes, com o intuito de agilizar e modernizar a administração do equipamento público. A instituição permaneceu, portanto, vinculada ao Estado, mas sua administração ficou a cargo da OS (Organização Social). O governo do Rio baseou-se no exemplo de São Paulo, primeiro estado do País que implementou tal formato em equipamentos culturais, como a Pinacoteca do Estado e a Orquestra Sinfônica (Osesp).
No caso do Parque Lage, formou-se um conselho administrativo presidido por Marcio Botner, sócio da galeria A Gentil Carioca e ex-professor da instituição. Segundo Botner, o projeto funcionou de forma satisfatória por aproximadamente dois anos: “No princípio fomos muito bem-sucedidos, inclusive conseguimos trazer um grupo de experts, como a curadora Lisette Lagnado, que passou a dirigir a escola. O Estado cumpriu sua parte, repassando o valor de R$ 12 milhões, e nós captamos cerca de R$ 4 milhões de fontes privadas”, afirma.
No entanto, a partir de 2015, a situação alterou-se radicalmente. “Antes o Estado tinha uma capacidade maior, mas em 2015 o governo não conseguiu aportar os valores comprometidos”, declara Botner. A partir desse momento, a OS começou a arcar com os custos sozinha, enquanto esperava os repasses atrasados. Neste período, acumulou-se uma dívida de aproximadamente R$ 6 milhões, principalmente com os serviços terceirizados. Bolsas foram cortadas e cerca de 40% dos funcionários demitidos. Com o agravamento da situação, os membros da OS começaram a pressionar o governo, que admitiu que não seria mais possível continuar com o convênio. O final do projeto foi acordado e o Parque Lage agora volta inteiramente ao controle do Estado, como funcionava anteriormente. “É triste porque se trata de um projeto muito bem-sucedido, que terminou por questões financeiras”, diz Botner.
Foi justamente para diminuir a dívida que a OS decidiu alugar o espaço para a delegação olímpica da Grã-Bretanha. Segundo declaração da Secretaria de Cultura, a direção “estabeleceu parcerias com algumas instituições, como o Ateliê Guto Carvalhoneto e a Escola de Música Villa-Lobos, que estão abrigando professores e alunos de diversos cursos livres regulares da escola”. O comunicado também reforça que o aluguel do espaço trará benfeitorias à instituição, como a pintura das instalações, a construção de banheiros para portadores de deficiência, dentre outras reformas. Nesse meio tempo, a biblioteca e os espaços expositivos não podem ser acessados pelo público.
A medida gerou polêmica entre os estudantes. A artista Marina Marchesan tece algumas críticas ao projeto, principalmente devido à “falta de diálogo com os alunos”. Marchesan acabou de terminar o curso de pós-graduação em Ensino da Arte, oferecido pela instituição. Segundo a artista, os estudantes temem que, mesmo com o fim da Olimpíada, a escola não volte ao parque. “A situação está bem esquisita, não está claro qual será o futuro da escola. Fico um pouco desconfiada com o processo todo, principalmente porque não houve transparência quanto a essa decisão. Nós ouvimos rumores, mas demorou muito para que a direção informasse oficialmente o que estava acontecendo”. A ex-estudante também critica a atual gestão por “ter diminuído o número de bolsas, já no começo de 2015, quando o dinheiro ainda não era um problema”.
Já o artista Leo Ayres, por exemplo, é um dos que são a favor da transferência temporária da escola: “Eu acho que as pessoas estão fazendo tempestade em copo d´água. Essa mudança temporária ajudará a ativar outros espaços da cidade, o que é benéfico para a nossa cultura”. Ayres também ressalta que desde o período que iniciou seus estudos, em 2004, a instituição melhorou muito: “Na época em que comecei a frequentar o Parque Lage, os cursos não tinham muita estrutura, nem um planejamento adequado. Com a entrada da OS, a qualidade aumentou bastante”, ressalta.
A diretora da escola, Lisette Lagnado, reforça que a vinda da delegação britânica trará benefícios para a instituição, que ganhará reformas necessárias, todas sob a supervisão do Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), o qual garantirá a preservação do prédio, que é tombado. Lagnado também ressalta que a ocupação de outros espaços é uma forma de expandir a cultura na cidade e de resistir à situação. “Ninguém está mascarando a realidade. Pelo contrário, trata-se de partir para a ação, fazer novas proposições. É certo que toda mudança apresenta desafios e a questão agora é mostrar que a mobilização é grande, reunindo professores, estudantes e apaixonados pelo Parque Lage, para reafirmar a continuidade de seus cursos livres e até mesmo lançar novos cursos. É uma escola vinculada à liberdade e ao experimentalismo. A arte contemporânea não depende de um espaço físico, ela toma os espaços e refunda novas redes de solidariedade”, afirma a diretora.
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