Acerto de contas

Que a memória cultural brasileira tem lacunas imperdoáveis estamos cansados de saber. Músicos como Luiz Bonfá, Eumir Deodato, Dom Salvador, Sergio Mendes, Raul de Souza, Astrud Gilberto, Airto Moreira e sua esposa, Flora Purim, exilaram-se artisticamente em outros países, estabeleceram carreiras de êxito comercial ou de grande respeito, mas por aqui seguem anônimos. Se o País tem esse débito com seus próprios artistas, destino pior tiveram aqueles que não assinavam obras, mas foram determinantes para elevar a qualidade delas. Grandes arranjadores e produtores, como Lyrio Panicali, Rogério Duprat e Waltel Branco, que desde o final dos anos 1950 foram disputados por compositores e intérpretes, e o carioca Arthur Verocai que, quase 40 anos depois, teve seu álbum autoral – uma pequena pérola, lançada sem a menor repercussão, em 1972 -, apresentado pela primeira vez no País em dois concertos, ocorridos em abril, no SESC Pinheiros, em São Paulo.

Como um valioso segredo, o álbum homônimo de Verocai transitou em rodas globais de pesquisadores de música brasileira, até ser reeditado no mercado americano, em 2003. O crescente culto em torno dele fez com que, em 2009, o maestro se apresentasse para uma plateia de 1.200 pessoas no Los Angeles Theatre Center, acompanhado de um grupo de quase 40 músicos que reproduziram, com máxima fidelidade, os arranjos originais do álbum. O espetáculo foi filmado e lançado em DVD no mercado americano, como um dos títulos da série Timeless, da produtora Mochilla, dedicada à memória de grandes arranjadores esquecidos ao redor do mundo, como o etíope Mulatu Astatke que, recentemente, também fez duas apresentações memoráveis em São Paulo.

Para aqueles, hoje, com mais de 35 anos, é praticamente impossível afirmar que nunca ouviu o trabalho de Verocai. Sua grande arte está na memória afetiva de muitos brasileiros. Basta dizer que Ivan Lins, Jorge Ben Jor, Elizeth Cardoso, Luiz Melodia, Gal Costa, Tim Maia, Erasmo Carlos, Quarteto em Cy, MPB-4, Nelson Gonçalves e Marcos Valle tiveram arranjos assinados por ele. Horas antes da primeira das duas emocionantes apresentações, com sabor de acerto de contas, no Teatro Paulo Autran, nos reunimos com Verocai para um bate-papo sereno e bem-humorado sobre sua formação, a indústria fonográfica nos anos 1960 e 1970, o talento inato de Luiz Melodia e uma aguda percepção da importância de acreditar em seus ideais e não abrir concessões.

Brasileiros – Arthur, conte um pouco sobre suas origens. Você teve influências musicais dentro de casa?
Arthur Verocai –
Sou filho de mineiros, mas meu avô paterno, Florentino Verocai, nasceu no Rio de Janeiro. Ele era filho de italianos e, como os meus pais, os dele também migraram de Minas para o Rio. Meu avô cresceu no Rio e encarnou o carioca malandrão e boêmio, gostava de tocar violão e, por influência dele, meu pai sempre gostou muito de música. Cresci em um ambiente onde ouvíamos discos de orquestras e música americana. Ficávamos o tempo todo ligados na Rádio Nacional. Com quatro anos, eu mesmo colocava os discos que queria ouvir na vitrola.

Brasileiros – Sua irmã também teve grande influência em seu aprendizado…
Sim, no final da década de 1950, quando estava surgindo a bossa nova, minha irmã estudava violão. Morávamos na Urca, e eu tinha por volta de 8, 9 anos. Ela fazia aula com essas professorinhas que, ao fim do curso, davam um recital. Aquele violãozinho pobre, uma batidinha “tchacundum”, meio folclórica, quase um boi. Quando fui parar no colégio interno, aos 10 anos, ganhei uma gaitinha que tocava de ouvido e não me esqueço de que havia um órgão de tubo na capela. A gente ia para a missa e o órgão inundava o ambiente com aquele som poderoso. Algo muito extasiante para mim.

Brasileiros – Depois disso, sua irmã foi estudar com o Carlos Lyra…
Sim, anos mais tarde, ela começou a estudar violão com o Carlinhos Lyra. Daí, eu filava o caderninho e o violão dela e tentava aprender a tocar sozinho. Ficava horas escutando discos do Baden Powell, do Paulinho Nogueira e do Luiz Bonfá, tentando tirar músicas de ouvido, pois sempre tive um ouvido muito bom. Em 1962, comecei a ter umas aulas com o Roberto Menescal e ele me apresentou os grandes compositores da bossa nova. Fui tomando gosto pela obra de Johnny Alf, Tom Jobim e outros. Comecei a estudar muita bossa e, em 1963, passei a dar aulas na academia do Menescal.

Brasileiros Em paralelo a esse interesse pela música, veio a formação em engenharia civil. Você tinha mesmo a pretensão de seguir carreira nessa área?
Não, não mesmo. A gente vem de um ambiente burguês, e ser músico é algo sempre associado a um futuro muito incerto. Uma perspectiva fantasmagórica para alguns pais e os meus, apesar de amarem a música, não pensavam diferente.

BrasileirosUma profissão formal era inevitável…
Sim, era algo que inevitavelmente teria de fazer. Me formei, e a cerimônia aconteceu no Copacabana Palace. Quem entregou o diploma foi o general Arthur da Costa e Silva – então presidente, e meu xará. Fui o primeiro a receber. Ele me entregou o canudo, desci as escadas do Golden Hall do Copacabana e o entreguei à minha mãe – que conseguia a façanha de gostar de Chico Buarque e Costa e Silva ao mesmo tempo!

BrasileirosE você chegou a exercer a profissão de engenheiro?
Trabalhei somente dois meses. Vi que realmente não era aquilo que eu queria da vida. Não iria aguentar sair de casa todos os dias às oito da manhã e só voltar às oito da noite. Ter de trabalhar sábado, domingo e, diga-se de passagem, um trabalho chato pra caramba.

BrasileirosE, a essa altura, como é que você dava vazão ao Arthur músico?
Nessa época, surgiram muitos grupinhos de música na minha turma. Eu, o Paulinho Tapajós, o Antônio Adolfo, o Danilo Caymmi. A gente se reunia todo sábado para tocar e, cada vez mais, eu percebia que era isso que eu queria. Formei um conjuntinho de bossa nova em 1963 – um quarteto que sequer tinha nome – e quando chegava o domingo, fazíamos algumas jam sessions na happy hour do Little Club, onde, à noite, tocavam os grandes nomes. Raul de Souza, Sergio Mendes, Maestro Cipó, Ed Maciel.

BrasileirosE o que te deu segurança para jogar tudo para o alto e virar a mesa?
A Elis defendeu uma música minha (Um Novo Rumo) no Festival Universitário do Rio de Janeiro, de 1968, e eu estava em outro astral. Mergulhei de cabeça na música e comecei a fazer um curso de harmonia funcional, o que me deu muita prática para escrever arranjos. Pesquisei alguns livros e tentei ter aula com o maestro Erlon Chaves, que me saiu com essa: “Arthur, não posso te dar aula, pois sou autodidata”. Daí concluí: “Ok, se ele é autodidata, eu também posso ser. Vamos nessa!”. Fui escrevendo e treinando meus arranjos com alguns conjuntos de Além Paraíba, a terra de minha mãe. Na época, eles só tocavam iê-iê-iê, e eu escrevi arranjos de Wave, Corcovado, as coisas mais populares do Tom, para sax, trompete e trombone.

BrasileirosE como é que você, que vinha dessa experiência empírica, foi parar em um ambiente tão formal quanto a indústria fonográfica?
Rolavam muitos festivais e comecei a inscrever algumas músicas minhas e fazer arranjos para elas. Pude mostrar meu trabalho para outros compositores. Conheci o Ivan Lins, nessa época, e o levei para a Polygram, pois o Paulinho Tapajós, que era meu grande amigo trabalhava lá como diretor artístico.

BrasileirosE também foi ele que te levou para a Polygram?
Um pouco depois disso. Meu primeiro arranjo gravado foi uma música cantada pelos Golden Boys, A Menina e a Fonte, composição minha e do Arnoldo Medeiros. Fiz esse trabalho para a Odeon e acabei indo parar na Polygram, que tinha o selo Forma, onde fui convidado a fazer o primeiro disco do Ivan Lins. O disco vendeu muito e, do nada, virei um cara meio da moda. Todo mundo queria ter arranjo meu. Acabei fazendo muitos outros discos, programas musicais na TV, trilhas de novelas. A carreira deslanchou a partir daí.

BrasileirosVocê fez muitos trabalhos para TV Globo nesse período…
Fiz vários musicais para a Globo, e fui maestro do programa Som Livre Exportação, que era apresentado pela Elis Regina e pelo Ivan. Tive a oportunidade de fazer arranjos para muita gente boa, até para o Nelson Gonçalves, que foi convocado para cantar Insensatez e Corcovado. Aqueles “gênios” achavam que tinham de colocar o Nelson para cantar bossa nova. Justo ele, com aquele tremendo vozeirão! Um baita contrassenso, a bossa sempre foi intimista, sussurrada.

BrasileirosFalando em grandes intérpretes, como foi trabalhar com o Luiz Melodia?
Sou grande fã do Melodia. Estava escrevendo os arranjos de Presente Cotidiano, aquela que diz assim: “Tá tudo solto na plataforma do ar/tá tudo aí…“. Essa música é uma marchinha em compassos de três tempos, mas ele cantava um compasso em três e outro em quatro: “Quem vai querer comprar banana…”. Daí, eu me perguntava: “Essa música é em três ou em quatro? Se eu fizer assim, da maneira que está, nego vai dizer que eu sou doido!”. Mas ele não estava nem aí se eram três, quatro ou sete. Fazia isso sem pensar. Não tinha essa de dizer: “Vou fazer uma música em três por quatro!”. Simplesmente acontecia, pela força intuitiva do cara.

BrasileirosE todo esse respeito que você conquistou te deu a liberdade de, em pouco tempo, fazer seu disco da maneira que bem entendesse…
A Continental sugeriu fazer o disco. Topei, prontamente, mas exigi: “Vamos fazer, mas vamos fazer do meu jeito e da forma que eu quiser”. Eles abriram as portas para tudo. Usei 12 violinos, quatro violas, quatro celos. Gravei onde bem quis, e com os melhores músicos que eu pude reunir. Uma grande realização pessoal, pois quem eram meus ídolos? Caras como Wes Montgomery, Tom Jobim e Eumir Deodato. Caras extremamente musicais, mas que não necessariamente eram grandes vendedores. Pouco me lixei para o fracasso do disco. Estava a fim de fazer música, não de vender disco. Eu era um idealista.

BrasileirosE como foi o trabalho de composição das letras com o Vitor Martins?
Eu gostava muito das letras do Vitor, ele era um cara muito de esquerda. Como a censura estava no auge e a barra pesadíssima, ele escreveu letras bem metafóricas como Pelas Sombras, que dizia “Quem viaja nas sombras/por trás dos seus ombros/por trás dessa blusa de lã“, ou Presente Grego, que era exatamente o que significava a ditadura para o povo brasileiro, um presente de grego “… Debruçado na Grécia antiga/nas ruínas de homens ou tribos/ouço um grito de dois mil anos… por trás das barbas de molho/o olho por olho/pedra por pedra/conta por conta…”. Ninguém entendia nada do que ele queria dizer – nem a censura, que liberou tudo! E um troço desse, que ninguém entendia, não podia mesmo vender. Mas era o que ele queria dizer, concordava com tudo e, para mim, estava ótimo.

BrasileirosO que você ouvia nesse período?
Ouvia de tudo e tinha a mente muito aberta. Gostava de Frank Zappa, Stan Kenton. Ouvia folk, country, gostava muito do Crosby, Stills, Nash & Young – adorava as vocalizações dos quatro e ouvi muito o álbum Dejavú. Meu disco tem também algumas texturas mineiras, afinal de contas, filho de mineiro, mineiro é! Eu tinha muita afinidade com o Toninho Horta e com o Milton. Misturei essa mineirice com o funk, com o soul, com o jazz, um pouco de bossa nova e fiz um trabalho livre. Do primeiro ao último minuto, o disco foi feito exatamente do jeito que eu quis.

BrasileirosEm seguida, você migra para a publicidade. Essa decisão teve a ver somente com o fracasso do disco?
Comecei a fazer jingles em 1973, e tinha muitos clientes bons no Rio. Negociava preços muito altos e, muitas vezes, recebia com antecipação. Ganhava em um jingle o que eu ganhava para arranjar um álbum inteiro, em um, dois meses de trabalho. Quando gravei o segundo disco do Ivan para a Polygram, eles estavam começando me tachar de maluco. Depois que fiz meu primeiro disco, chegaram à conclusão de que eu estava mesmo maluco! Minhas ideias cabiam cada vez menos no mercado, e se fosse para fazer as coisas do jeito que eles queriam, preferia nem fazer. Cansei de recusar arranjos. Não vou dizer nomes aqui, mas já ouvi de grandes estrelas coisas do tipo: “Olha, Arthur, não complica muito, não, viu?!”. Fui obrigado a responder, na lata: “Então chame outro. Prefiro não fazer!”.

BrasileirosFoi resistente a imposições e concessões?
Tinha essa postura porque estava na bronca do disco não ter acontecido. Fiquei bastante frustrado. Dias e noites me perguntando: “Será que estou fazendo tudo errado? Será que estou por fora e eles é que estão por dentro? Estou mesmo ficando maluco?”. Cheguei à sábia conclusão de que música não era bem aquilo. Música era uma outra coisa, muito mais elevada e importante que o mercado. Se o negócio era comércio, fui fazer jingles. Pelo menos sustentava meus filhos numa boa. O mercado e suas imposições que ficassem para lá.

BrasileirosE como é que surgiu esse oba-oba recente em torno do disco?
O Kassin (o produtor carioca Alexandre Kassin), muito amigo do meu filho Ricardo, aparecia às vezes no estúdio: “Poxa, Arthur, o teu disco está superfalado na Europa. A imprensa de lá tem falado dele”. E o disco engavetado por décadas, em casa. Isso começou a acontecer no final dos anos 1990, e eu pensava: “Bobagem, é um publicozinho minúsculo”. Em 2002, decidi abrir um site e, por intermédio dele, a Ubiquity, uma gravadora independente americana, passou a me procurar, e relançou o álbum no ano seguinte. Aos poucos, ele foi sendo difundido na cena do hip hop, que é movida pelos DJs, os caras que fazem os beats, as bases das músicas.

Brasileiros E como foi apresentar esse repertório pela primeira vez fora de seu País e 37 anos depois?
Foi inacreditável. Por uma noite fui “O Cara” em Los Angeles. Quando olhei aquele mar de cadeiras vazias, pensei comigo: “Ninguém aqui me conhece. Como é que isso vai encher?”. Estava na coxia, quando ouvi meu nome ser anunciado e um tremendo estardalhaço tomou conta do lugar. Uma ovação absurda e a casa lotada! Um público bem diverso. Muitos jovens. Gente que foi de Nova York a Los Angeles, outros que rodaram mais de 500 km, vindos do interior dos Estados Unidos, só para ver o show. Foi emocionante e, ao mesmo tempo, foi como pisar em um território desconhecido, pois sempre trabalhei por trás dos bastidores. Os músicos da orquestra eram ótimos. Vinham falar comigo do enorme prazer que tiveram em tocar minhas músicas. Curtiram à beça, pois por mais que aquilo fosse um prato raro para a maioria, eles reconheciam matrizes americanas, como o soul e o funk. Meu amigo Airto Moreira, que vive lá, deu canja na percussão. Voltei com o ego na estratosfera e pensando: “Naquela época em que todos pensavam que eu estava maluco, eu estava certo, muito certo!”.


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