David, o rei das favelas

boa pedida Além da salada, o empresário do Chapéu Mangueira faz petiscos e outros pratos com ingredientes que vêm do mar - Foto: Marcos Pinto
BOA PEDIDA Além da salada, o empresário do Chapéu Mangueira faz petiscos e outros pratos com ingredientes que vêm do mar – Foto: Marcos Pinto

“Diz aí um jornal do exterior, qualquer um. Pode escolher”, pede David à repórter, de celular em punho pronto para fazer uma busca no Google. O empresário não se faz de modesto: “Já fui notícia em todos: The New York Times, Le Figaro, El País, Time Out… Eu devo ser o dono de bar de favela mais famoso do mundo. Os turistas aqui sempre dizem que foi a melhor comida que provaram no Rio”. Naquela terça-feira de outono, sentado no seu botequim, no Chapéu Mangueira, morro do Leme, zona sul carioca, David Vieira Bispo, de 44 anos, ainda comemorava o título de campeão do concurso Comida di Buteco, o maior do gênero do País, recebido duas semanas antes. No Rio, o Bar do David ultrapassou 46 bares com o prato Ressurgência, uma generosa salada de frutos do mar, com feijão fradinho ao vinagrete, por R$ 25,90. “Só hoje vou dar quatro entrevistas”, conta, de sorriso largo no rosto.

Nascido e criado na comunidade, é o caçula de dez irmãos – “costumo dizer que, quando meus pais acertaram, resolveram parar”, brinca – e teve uma infância dura, como quase todos os seus contemporâneos na favela. “A gente dormia em três ou quatro na mesma cama e, quando chovia, ainda botava panelas no meio para segurar as goteiras”, lembra. Seus pais, a cozinheira Otília e Lúcio Bispo, morto há oito anos, que era presidente da Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro, também nasceram e foram criados no morro. Até hoje, só um dos dez filhos se mudou da favela. “Eu me sinto como uma árvore: tenho raízes tão profundas no Chapéu que, se for transplantado, sou capaz de morrer”, compara David, enquanto comanda o trânsito de carros em frente ao bar, situado no alto da principal rua de acesso aos Morros da Babilônia e Chapéu Mangueira, comunidades vizinhas.

Desde a inauguração do botequim, em 2010, o empresário tem forte papel na transformação do Chapéu Mangueira como ponto turístico

Desde que inaugurou o seu internacionalmente famoso botequim, em abril de 2010, o empresário tem importante papel na transformação da favela em ponto turístico. O sobe e desce de gringos pode ser assistido de camarote no bar. “Hi! Where are you from?”, pergunta David a um grupo de quatro homens altos e brancos que passam por ele em ritmo apressado. “Holanda”, responde um deles em português. Tinham acabado de fazer uma das trilhas de mata a pé pelo morro. Mas se a circulação de turistas hoje existe por ali é também graças à implantação da Unidade de Polícia Pacificadora, em 2009. No entanto, a recente decadência do programa de pacificação – com o colapso financeiro do Estado, já teve 35% das verbas cortadas – tem atrapalhado um pouco os negócios. “Acho que a frequência do meu bar diminuiu nos últimos tempos”, diz o empresário. As ocorrências de crimes na região ainda são raras, ao contrário de outras favelas com UPPs, mas, em março último, um tiroteio matou duas pessoas na parte alta do Chapéu.

David se beneficia do fato de estar logo na entrada da comunidade, onde a movimentação policial é sempre intensa e o clima é de absoluta segurança. “Eu não quero saber: mesmo que eles não se importem com o povo da favela, vão ter que sempre garantir nossa proteção porque se preocupam com os turistas que vêm no meu bar”, provoca, para logo depois contar que o secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame, já esteve no bar. “E também o prefeito Eduardo Paes, acompanhado do prefeito de Nova York, Michael Bloomberg”, orgulha-se. “Paes me chama pelo nome. Ele atravessa a rua para falar comigo, se me vir do outro lado.”

 desde a inauguração do botequim, em 2010, o empresário tem forte papel na transformação do Chapéu mangueira como ponto turístico - Foto: Marcos Pinto
PAUSA  Gente amiga reunida nas mesas do Bar do David, localizado em comunidade com Unidade de Polícia Pacificadora – Foto: Marcos Pinto

A lista de personalidades que estiveram no bar é extensa, e ele cita logo os globais – enquanto exibe seus retratos com todos no celular: Mariana Ximenes, Marcos Palmeira, Bruno Gagliasso, Juliana Alves, Natália Lage, Daniel de Oliveira, Sheron Menezes. E não se esquece do sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Agora, está em plena campanha para receber o velocista jamaicano Usain Bolt, durante os Jogos Olímpicos. Como parte da estratégia, tem soltado nas redes sociais vídeos gravados por artistas, sugerindo que Bolt visite o Bar do David. Já fizeram seus pedidos os cantores Xande de Pilares, Diogo Nogueira e Dudu Nobre, entre outros. “Minha ideia é que ele seja recebido por 600 crianças do morro. E por que o Usain Bolt? Para servir de inspiração. Porque toda criança na favela já nasce correndo! É um esporte que elas podem praticar facilmente. Não dá para imaginar um menino ou menina aqui praticando hipismo, por exemplo”. 

David, como o ídolo Bolt, é também considerado um exemplo e serve de inspiração a moradores de favelas cariocas, sobretudo aos seus pares, donos de botecos e restaurantes em comunidades. “Eu gostaria de ver mais gente aparecendo como eu. Muitos me copiam, de certa forma, e isso é legal”, diz. No recém-construído segundo andar, mostra a réplica colorida da favela, de tijolos empilhados, obra do artista Cirlan de Oliveira, da ONG Projeto Morrinho – outra do mesmo gênero está exposta no Museu de Arte do Rio, o MAR, na Praça Mauá, no centro. E aponta as mudanças que ainda pretende fazer no lugar: toldo, estoque, laje com mesas, bar de drinques e até uma horta vertical. A falta de vista para uma paisagem bonita, comum em bares de favela do Rio, não afeta o negócio. “Aos finais de semana, recebo cerca de 400 pessoas”, revela o dono, que chega a atender e cumprimentar pessoalmente boa parte da clientela.

David não deixa de ir ao bar um dia sequer. Casado há 23 anos com a secretária Shirley e pai de Maria, de 13, não se lembra da última vez que tirou férias. Provavelmente, nos tempos em que gerenciava uma loja de artigos de pesca – antes de ser empresário, ele fez de tudo: foi menino de carreto na feira, pescador profissional e diretor de bateria na escola de samba São Clemente. Até pouco tempo atrás, ainda era mestre do bloco de rua Meu Bem Volto Já, no Leme. “Larguei tudo para cuidar daqui, até o futevôlei da praia”, diz, e enumera: “Graças ao esforço da família, que trabalha comigo, e à ajuda de muita gente, no total já ganhamos seis prêmios”. Entre eles, três vezes o Comida di Buteco – antes de ser campeão, foi terceiro e segundo colocado. Agora, se prepara para enfrentar os outros 19 finalistas do concurso nacional – os vencedores das 20 cidades onde o concurso se realiza vão competir entre si pela primeira vez este ano. “Não estou preocupado, não. Sou iluminado. Eles é que precisam se preocupar comigo.”


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