Quanto pesam as nuvens?

Przemyśl Poland
Em “Quanto Pesa Uma Nuvem?”, a paisagem reencontra o homem em uma viagem em que se mesclam, mataforicamente, a morte anunciada, a desilusão e a chegada ao apocalipse. formalmente, o video tangencia o filme Le Camion (O Caminhão) de Marguerite Duras, uma leitura dramática sobre o encontro e a ausência,durante o percurso de uma caminhão em uma estrada francesa



A estrada que nos leva
da Cracóvia a Auschwitz, através dos travellings do vídeo Quanto Pesa Uma Nuvem?, de Giselle Beiguelman, em cartaz no Galpão VB- São Paulo, é o fio condutor de uma narrativa particular em que o poético habita e se incorpora ao mundo contemporâneo contaminado pelo ódio, xenofobia, racismo, diáspora, homofobia. A história não se repete, mas a artista concorda que “o mundo está em perigo”.

O deslocamento de Giselle à Polônia, um convite do Adam Mickiewicz Institute, proporcionou o contato da artista com um país sobre o qual tinha referências fragmentadas. “Viajei, em outubro do ano passado, para visitar a cidade dos meus avós, sem uma prefiguração. Na minha cabeça a Polônia era um campo de neve enorme e visitar as cidades foi entender uma ausência, mais do que conseguir preenchê-la.” A história tem sido reapropriada pelos museus, como os de Varsóvia e de Auschwitz, mas foi nas cidades menores que a artista teve a percepção de que tudo está entre parênteses, e que pode recomeçar. Gisele fala da indústria do turismo, da canibalização que o design faz na memória e da descoberta de coisas mínimas como o sol da Polônia, o quanto as pessoas são parecidas com ela, as comidas que comia na casa da avó. Giselle viveu essa ambivalência o tempo todo, de pertencimento e exclusão. “Havia coisas que eu sentia dentro de mim e eu mesma como o produto de uma história de exclusão, de expulsão, de silenciamento.”

A instalação multimídia tem a curadoria de Ana Pato e trabalha com a estratégia do olhar nômade. Sua montagem provoca um trompe d´oeil. Em duas paredes, formando um ângulo de 90 graus, uma delas exibe uma imagem congelada da paisagem, que dá a impressão de uma projeção em câmara lenta. Na outra, o vídeo “corre” como se a câmara estivesse na janela de um carro, registrando o percurso da viagem sem imagens de construções urbanas ou pessoas. Parece um vídeo de dois canais, mas não é. De qualquer ângulo que se tente assisti-lo, temos a sensação de se tratar de duas projeções.

Em um contexto político/psicanalítico, Gisele trabalha sua desconfortável relação com o passado, ao mesmo tempo que negocia a forma de entrar em uma nova ordem subjetiva. A artista foi à Polônia, país de seus antepassados, tateando uma história sem rastros, que permanecia amordaçada há anos. “Meus avós não falavam sobre esse assunto.” A recusa das famílias de se debruçarem sobre o passado traslada o peso da história nas gerações subsequentes; assim se passou com Giselle e com outros artistas, como o alemão Anselm Kiefer. Ele foi influenciado pelo escritor Paul Celan, judeu, sobrevivente dos campos nazistas de extermínio. O historiador francês Daniel Arasse comenta que a obra de Kiefer se apresenta como um teatro da memória que serve para interiorizar e estruturar os documentos de um passado alemão que ele apenas conheceu indiretamente. Gisele acredita que todas as pessoas que são, de certa maneira, descendentes desse passado europeu do Leste, a despeito de a Alemanha, hoje, geograficamente estar no Leste Europeu, têm uma marca. “Isso é uma cicatriz e Kiefer é também um produto dessa situação e, nesse sentido, tem um embate com a espessura do tempo, do lugar, da palavra”.

Em Quanto Pesam as Nuvens, ela propõe, em termos de linguagem artística, a criação de uma situação na qual possa dar conta desse relato lacunar e de descoberta, que ela define como “estratégias de um diário narrado”. Na peça de áudio de 26 minutos, o relato das dúvidas e perguntas feitas para si mesma ganhou força nos carimbos e abarcam questões como: Os judeus eram os negros da Polônia? Todo homem tem um nome? Como rever uma história sem rastros? A dor tem cor? Todas fruto de seu embate com a paisagem. “Essa coisa da cor me encantou, mas por um bom momento me senti culpada, como se eu não devesse gostar de nada.”

A descoberta da paisagem resultou em fotos impressas em postais e que são definidas por ela como “perturbadoramente familiar” e podem ser levadas pelo público. Distribuídos sobre a mesma mesa, os carimbos, chamados de “mapa das perplexidades”, com as perguntas gravadas, reaparecem provocando o visitante a carimbar as paredes. Tudo foi pensado “expo-graficamente” para ser manipulado e visto pelo público de forma diferente das imagens dos vídeos.

Todo o conjunto de trabalhos que formam Quanto Pesa Uma Nuvem? é resultado dessa viagem e tem ligação com seus trabalhos anteriores, mas agora com a particularidade da presença de pessoas e de sua história pessoal. “A exposição, concebida especialmente para o Galpão VB, se encerra onde ela começa, porque, nesse conjunto, o vídeo Quanto Pesa uma Nuvem?, que dá nome à exposição, embora seja o meu percurso entre Cracóvia e Auschwitz, não mostra o campo de extermínio”. O vídeo, ao contrário do áudio, quando chega ao destino final é uma surpresa, cria uma zona em que parece tirar um pouco a referência do espectador. Quanto Pesa Uma Nuvem? é uma questão que ainda flutua no ar.


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