Entre o real e o virtual

uPYV94KvciQ2wBkUczuX4w%2F02
Vista da instalação de Jon Rafman na Zabludowicz Collection. Crédito: Thierry Bal


Na investigação sobre a natureza
dos impactos de meios digitais na vida comum, o trabalho do canadense Jon Rafman envolve a combinação de um vasto repertório de esquisitices encontradas online e a criação de imagens, vídeos, esculturas e instalações que reproduzem, comentam e criam novos sentidos para esse acervo. O artista esquadrinha os cantos mais obscuros e indefinidos da internet para extrair entendimentos sobre seu funcionamento e interferência na experiência humana.

Em seus primeiros projetos, por exemplo, estão um avatar do Kool-Aid Man – mascote de uma famosa marca de sucos industriais – no Second Life (ambiente virtual e tridimensional que simula em alguns aspectos a vida real e social do ser humano); uma compilação heterogênea de imagens estranhas retiradas do Google Street View, nomeada Nine Eyes (Nove Olhos); assim como sites e vídeos que misturam paisagens tridimensionais e narrativas absurdas. São exercícios livres que se movimentam nas fronteiras entre os planos físico e aqueles abertos por novas mídias, cuja potência nuclear se dá no ponto em que tensionam sentimentos de familiaridade e repulsa diante das transformações radicais pelas quais estamos passando globalmente nas últimas décadas. Ao mesmo tempo  que posiciona críticas pungentes ao sistema de produção e consumo de massa, reforça uma cultura interessada por esses fenômenos e suas particularidades.

Entre atividades mais recentes, Rafman realizou, no fim do ano passado, uma exposição individual na Zabludowicz Collection, em Londres. Como uma grande instalação formada por diferentes momentos, os trabalhos ocupavam todo o espaço com dispositivos incomuns pensados para experiências audiovisuais. Sob um ambiente escuro e uma luz azulada, o público era convidado a viver em uma atmosfera de suspense futurista e a assistir a filmes em uma piscina de bolinhas brancas ou em uma cadeira de massagem. Como módulo central da mostra estava o curta-metragem Sticky Drama, concebido em parceria com o músico Daniel Lopatin (conhecido pela alcunha de Oneohtrix Point Never). O filme explora o universo estético e a simbologia dos chamados Live Action Role-Play – práticas em que jogadores fantasiados interpretam personagens dentro de uma história, e não raro protagonizam batalhas épicas em campos abertos. Acompanhamos assim a saga de crianças do subúrbio dos Estados Unidos em uma epopeia que envolve violência, computadores e vestimentas interplanetárias. Nesse transe costurado por máquinas e transformações orgânicas cria-se um enredo eletrizante, composto por impulsos sonoros eletrônicos e cenas visualmente perturbadoras.

Atualmente suas obras também podem ser vistas em duas enormes exposições: a Manifesta 11 e a 9ª Bienal de Berlim. Na primeira, em Zurique, o artista ocupa as instalações de um “float spa” – spa de flutuação terapêutica que funciona com terapia da privação sensorial –, para criar uma de suas instalações imersivas e repletas de provocações aos sentidos. Já na Alemanha, mostra uma experiência de realidade virtual site-specific usando o Oculus Rift – equipamento de realidade virtual. Em ambas as instalações, surge uma nova série de esculturas que destoam bastante de seus trabalhos anteriores. São representações estrambólicas de animais engolindo outros. Nessas fagocitoses impossíveis mas hiper-realistas, feitas com poliuretano de alta densidade e tinta acrílica, enxergamos um camaleão devorando um bicho preguiça, ou um cachorro suspenso ao comer um leão inteiro. Lembram assim souvenirs gigantes e indesejáveis vindos de um lugar disparatado.

Rafman demonstra plena habilidade para garimpar e manejar imagens impactantes, articulando conceitos complexos a partir de elementos banais, estranhos e repulsivos. Se às vezes seu caldeirão irônico-nonsense-dadaísta-futurologista pode perder o tempero em excessos ou resoluções superficiais, a maior parte de sua produção ativa fantasias que trazem – com alta eficiência – as contradições da consciência contemporânea para seu interior. Há em tudo, aspectos artificiais e climas densos comuns a um espaço distópico e já em derrocada, mas que conserva em seu próprio desenvolvimento um espírito irrefreavelmente curioso e inventivo. Uma arena em que a liberdade que atravessa as possibilidades abertas pelo avanço tecnológico encontra a melancolia do descontrole de mapas afetivos.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.