O “Fora Castelo” e o crime das mãos amarradas

 

Manoel Raymundo Alves, que foi morto pela repressão - Foto: Acerco de família
Manoel Raymundo Alves, que foi morto pela repressão – Foto: Acerco de família

Os carimbos foram esculpidos com miolos de pão que o ex-sargento juntou por dias a fio. Nas folhas de jornal recortadas para virar panfleto, ele carimbou mais de mil vezes “Fora Castelo” e “Abaixo a Ditadura”. Quando um carimbo amolecia, ele substituía por outro.

A ideia do ex-sargento era espalhar os panfletos por Porto Alegre no sábado 12 de março de 1966, quando a capital gaúcha receberia o marechal Castello Branco, o primeiro presidente da ditadura instalada dois anos antes. Uma sublevação militar já havia sido abortada na semana anterior.

O ex-sargento determinado a protestar contra o ditador se chamava Manoel Raymundo Alves. Nascido em Belém do Pará, ele tinha embarcado em um navio para o Rio de Janeiro aos 18 anos, para entrar no Exército. Era, na época, a possibilidade de ascensão social para rapazes pobres como ele.

Autodidata, apreciador de música erudita, Manoel logo se alinhou com os sargentos nacionalistas, defensores das reformas de base propostas pelo governo João Goulart. No trem para a Vila Militar conheceu o amor de sua vida, a operária Maria Elizabeth Chalupp Simão, a Betinha.

Betinha e cartas enviadas pelo ex-sargento - Foto: Acervo de família
Betinha e cartas enviadas pelo ex-sargento – Foto: Acervo de família

Os dois estavam casados quando ocorreu o golpe de 1964 e Manoel foi expurgado do Exército. Passados dois anos, ele estava clandestino em Porto Alegre, articulando um movimento de guerrilha, quando foi preso em frente ao Auditório Araújo Viana, por dois soldados à paisana.

Cinquenta anos depois, um livro recém-lançado pela editora Libretos, O Sargento, o Marechal e o Faquir, de Rafael Guimaraens, reconta a trajetória de Manoel e lança luz sobre o delator que provocou sua prisão. Era um sujeito conhecido como Edu Rodrigues, que à época pintava cenários para uma ópera.

O livro mostra como Edu, que “vivia de biscates e achaques” no submundo de Porto Alegre, tentou se firmar como faquir, revelou-se uma fraude e acabou trabalhando como pintor de cenários. Ao mesmo tempo, vendia informações para o SNI, o serviço de espionagem da ditadura.

O próprio Manoel, que acionara Edu para que ele distribuísse os panfletos, percebeu a traição, como comentou com Betinha, na primeira carta que conseguiu fazer chegar à amada: “Caí em uma cilada de um ‘dedo-duro’ chamado Edu e vim parar nessa ilha-presídio”.

Naquela altura, ele já havia passado pela máquina de moer gente da Polícia do Exército e do Dops. Levado para a Ilha do Presídio, que fica no Lago do Guaíba, o ex-sargento foi mantido preso ilegalmente por cinco meses, até ser retirado de lá por agentes do Dops.

O corpo de Manoel foi encontrado com as mãos atadas às costas e marcas de tortura nas margens de um rio. A repressão tentou culpar “os comunistas” pelo crime, mas todos os envolvidos na prisão, tortura e morte do ex-sargento foram apontados pelo promotor Paulo Tovo, que investigou o crime, conhecido como o Caso das Mãos Amarradas.

Ninguém foi punido.

O major Reith, do Exército, e a acusação falsa na primeira página - Foto: Reprodução Zero Hora
O major Reith, do Exército, e a acusação falsa na primeira página – Foto: Reprodução Zero Hora


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