Do gavetão ao armário aberto

Nos idos da década de 1970 no Brasil, o AI-5 vigorava com toda a força, e as bancas de jornal eram consideradas território de alta periculosidade. Titãs da mídia, como o jornal O Estado de S. Paulo, publicavam receitas de bolo e poesias para preencher os espaços deixados por textos censurados, sempre por razões das mais esdrúxulas possíveis, sob aplausos das famílias cristãs brasileiras, inebriadas pelo milagre econômico, o tricampeonato de futebol e pela coreografia geométrica dos desfiles militares. Boa parte dos políticos de hoje vivia no exílio, sem mencionar aqueles que foram presos e torturados. Quem mandava eram os militares; o resto obedecia.

Mas o mundo vivia ainda os efeitos da revolução sexual da década de 1960, que abriu para muitos a chance de experimentar seus desejos e vontades, e, mesmo na São Paulo da ditadura, em uma sociedade que considerava os homossexuais como doentes, havia uma animada vida noturna para eles. O termo “gay” não era sequer conhecido, viria do exterior mais tarde. Havia as bichas, os veados, as lésbicas e as sapatões, que desfilavam pelas primeiras casas noturnas, como a Medieval e a Nostro Mundo. Os bares ficavam pela região da Baixa Augusta e Rego Freitas, todos sabiam onde encontrar parceiros ou se divertir com os seus. Contavam, ainda, com um jornal próprio, O Lampião, que circulava abertamente.
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No teatro, a peça O Balcão, de Jean Genet, na produção de Ruth Escobar, com todas as suas cenas de sexo, nas quais sequer o padre, vivido por Sérgio Mamberti, era poupado de ser currado, era um grande sucesso de bilheteria. Afinal, a arte sempre deu maior liberdade à manifestação de costumes, e a montagem acabou por atrair da França o próprio autor, já um ícone e ativista homossexual mundo afora, que desembarcou no Brasil em junho de 1970, dando sempre um enorme trabalho à sua anfitriã.

Era por essa São Paulo que Celso Curi, que escreve sobre teatro para a Brasileiros, desfilava, sempre ligado ao teatro e vivendo abertamente sua homossexualidade, com a mesma alegria de hoje, inalterada pelos cabelos brancos. Para uma festa de aniversário, produziu uma genial série de camisetas com a estampa “Curi-Celso, marca registrada de fantasia”, imitando divertidamente as da Coca-Cola. Se hoje a imagem dos armários é usada para os homossexuais que se ocultam, ele define a década de 1970 como “um gavetão mais aberto”.

Mas a implacável lei de Newton: cada ação implica inevitável reação, vale também para a evolução da sociedade. Os agentes da ditadura caíram implacavelmente sobre a classe teatral, vários nomes conhecidos foram presos, em ações marcadas pelo total descaso pelos direitos legais e trâmites processais. Celsinho soube o momento de fugir para a Europa, onde viveu por cerca de um ano, na Alemanha Ocidental, voltando em 1973. A vida profissional tornou-se mais contida, mas não a social.

Em 1976, a convite de Giba Um, editor do jornal Última Hora, inaugurou uma coluna social abertamente voltada para o público homossexual, na qual, além de dar as dicas da noite gay, publicava cartas de amor em um divertido correio elegante. Brincando com a única loteria da época, a Esportiva, chamou-a de Coluna do Meio. Não teve temor nenhum em assinar seu próprio nome em vez de esconder-se atrás de pseudônimos. Sucesso absoluto, provocou a rápida investida do suspeitíssimo Poder Judiciário de então, que, primeiramente, custou a crer que o Celso Curi que assinava a coluna era o mesmo que recebera seus agentes na redação do jornal e que reconhecera, sem temor, ser a pessoa por eles procurada.

A coragem, honestíssima, valeu-lhe rapidamente a condição de réu em uma ação penal por “Atentado à Moral e Bons Costumes” e, acreditem, por “Promover a União de Seres Anormais”, curiosa designação para a troca de cartas publicadas pela coluna. Afinal, vivia-se o ano de 1976, a Presidência da República era ocupada pela figura prussiana do general Ernesto Geisel, auxiliado de perto pelo sombrio, e também general, Golbery do Couto e Silva. Anistia era um termo longínquo e teórico, em (poucos) dicionários. Para os chamados libertinos, liberdade nenhuma, mas sim os rigores da lei.

O curioso é que, mesmo sob o tacão do judiciário, a coluna não deixou de ser publicada, Celsinho continuou a trabalhar e a viver normalmente. São Paulo podia ser mais sombria aqui e ali, mas continuava a ter vida para gays e lésbicas, lá ainda estavam o Medieval e o Ferro’s Bar e outros já esquecidos, mas cujos endereços a Coluna do Meio publicava diariamente.

O processo correu durante três anos na Justiça e, em 1979, Celsinho acabou absolvido! Até mesmo a Justiça da época teve de reconhecer que a sociedade continuava inalterada, sua coluna não atentava contra os bons costumes, os seres podiam até mesmo ser anormais e doentes aos olhos de alguns, mas o processo acabou, lá estava ele livre para escrever. No entanto, acabou também a coluna! Em bem da verdade, o que acabou foi o jornal, engolido pela Folha de S. Paulo. Celsinho rapidamente voltou sua energia para a noite e abriu o clube noturno OFF, onde se divertia, afirmando que não se exigiria atestado de sexualidade na porta. Assim, conseguiu unir, durante vários anos, todos os públicos, até que, em 1986, transformou sua casa noturna em um teatro, embrião de seu maravilhoso guia teatral de mesmo nome, que edita até hoje. Coragem e espírito empreendedor, afinal, nunca lhe faltaram! São Paulo e o Brasil agradecem.

*Assina o blog 23B, como Lourenço Cavalcanti, no site da Brasileiros (www.revistabrasileiros.com.br/23b/).

O mistério do silêncio


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