Existem 191 residências artísticas no Brasil. O número surpreendente foi obtido por uma pesquisa realizada pela Funarte, no âmbito do Ministério da Cultura, e consta do livro Mapeamento de Residências Artísticas no Brasil, organizado por Ana Vasconcelos e André Bezerra, em 2014. A ótima publicação é disponibilizada gratuitamente online (goo.gl/EbxbDl) e revela um importante incentivo do governo federal, desde 2008, a esse tipo de proposta.
Muitas dessas residências não se concentram em apenas uma linguagem artística, mas aquela com mais destaque é a de artes visuais, que está presente em 118 espaços. A diversidade, contudo, marca as residências pelo País, muitas delas ainda abertas à dança (90), ao artesanato (52), ao circo (50) e até a jogos eletrônicos (10), só para citar algumas áreas. Segundo a publicação, a Aldeia de Arcozelo, em Paty do Alferes, próxima à Petrópolis, no Rio de Janeiro, fundada em 1965 pelo teatrólogo e diplomata Paschoal Carlos Magno, é apontada como a primeira residência artística formal no Brasil. Para proporcionar a jovens artistas de todo o País um espaço de criação, ela ocupou uma fazenda histórica colonial de 1792 com 54 quartos e, após reforma conduzida por Magno, passou a abrigar teatro, galerias de arte e restaurante. Fechada entre 1980 – ano da morte de seu criador – e 1988, atualmente é administrada pela Funarte.
Contudo, a prática de imersão em um contexto específico para criação, o que caracteriza uma das questões essenciais de uma residência artística, é uma atividade que remonta há muito antes no Brasil. Já no período da invasão holandesa, no século XVII, artistas como Albert Eckout (1610-1665) e Frans Post (1612-1680) vieram ao país por longo período trazidos por Maurício de Nassau e foram incumbidos de pintar os tipos humanos e a paisagem nativa. Mesmo cumprindo tarefas oficiais, as pinturas realizadas por ambos são as primeiras imagens do continente americano e representam uma importante fase na carreira de seus autores.
Para a produção artística, a busca por novos estímulos sempre esteve presente por meio de viagens e muitos são os criadores que usaram e usam o deslocamento como estratégia para novos trabalhos. Muitos modernistas se encaixam neste perfil, e no Brasil o nome mais óbvio é Tarsila do Amaral, que após passar por Minas Gerais e Rio de Janeiro, em 1924, deu início a sua fase Pau-Brasil, agregando à sua obra cores e temáticas tropicais.
Artistas que usam o deslocamento como forma de se reposicionar em sua obra adotam, em muitos casos, um método que a crítica de arte Suely Rolnik aponta como “cartografia sentimental”: “O que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem”.
Entre os artistas que usaram essa estratégia, Pina Bausch (1940-2009) consolidou isso de fato como um método de trabalho. Desde 1986, a coreógrafa alemã criou 14 espetáculos baseados em coproduções, batizadas pela crítica de dança Helena Katz de “coreo-geo-grafias”. Para a concepção de suas peças, Bausch e seus bailarinos passavam um período relativamente curto de três semanas em busca de ampliar seu próprio repertório. “As viagens, com as experiências que elas proporcionam e as pessoas que encontro, me trazem muitas inquietações. Elas são muito importantes para mim”, dizia a coreógrafa. Em 2000, ela passou por Salvador para criar Água, sua peça “brasileira”, que estrearia aqui no ano seguinte.
Com seu contexto cultural complexo, sua natureza exuberante, seus conflitos sempre aparentes, o Brasil, de fato, tem sido um destino recorrente. Outros artistas contemporâneos de renome criaram obras aqui, caso de Anselm Kiefer com uma série de pinturas e o livro Über Euren Städten wird Gras wachsen (Sobre vossas cidades irá crescer grama), de 1999, ou Matthew Barney, com o filme De Lama Lamina, realizado no carnaval baiano, em 2004. Mais recentemente, Marina Abramovic passou por locais místicos do País, antes de apresentar a mostra Terra Comunal, em 2015, e agora Robert Wilson estreou Garrincha – Uma Ópera nas Ruas.
Contudo, todos esses artistas estiveram por aqui mais por iniciativas pessoais – apesar de Abramovic e Wilson terem viabilizado suas obras graças ao Sesc. Outras instituições, no entanto, têm tido um trabalho mais sistemático de apoio à residências, caso da Associação Videobrasil e a Bienal de São Paulo. Desde final dos anos 90, tornou-se “estratégico para o Videobrasil proporcionar experiências de intercâmbio aos artistas que participam ou são premiados no festival”, afirma Solange Farkas na publicação Em Residência: Rotas para Pesquisa Artística em 30 anos de Videobrasil, lançada em 2013.
Já a Bienal deu início às residências em 2006, na sua 27a edição, intitulada Como Viver Junto, com curadoria de Lisette Lagnado, em uma parceria com a Faap, quando dez artistas estrangeiros passaram largas temporadas no País. Desde então, todas as demais bienais deram sequência a essa prática.
Em um momento que aposta na padronização dos costumes a partir do consumo, na diluição da importância de costumes locais e no trabalho como única forma de socialização, as residências artísticas se tornam uma estratégia de criar fricções e “inquietações”, como afirma Bausch, que podem tirar a arte do seu lugar hoje mais visível: o mercado.
Deixe um comentário