Um sul sem norte

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“América Invertida” (1943), Joaquín Torres Garcia



A ARTE!Brasileiros entrevistou Solange Farkas, fundadora e diretora do Festival Panoramas do Sul, e Marina ­Fokidis, fundadora e editora da revista South as a State of Mind, que se tornou temporariamente a plataforma de conteúdo da Documenta 14 até a abertura do evento. Elas falaram sobre o que significa o conceito de sul global em um mundo que está em constante estado de tornar-se. Fokidis será umas das palestrantes do IV Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, que acontece em paralelo à Bienal de São Paulo

ARTE!Brasileiros –  O chamado sul global inclui América Latina, Caribe, África, Oriente Médio, Oceania e alguns países da Europa e Ásia. Estamos falando de regiões e países com histórias, geografias e ideologias radicalmente diferentes. Quais são os denominadores comuns? O Sul corresponde a uma forma específica de subjetivação da realidade? É possível derivar um senso de comunidade e identidade transnacional em meio a tanta diversidade?

Solange Farkas São muitos os denominadores comuns, especialmente o fato de essas sub-regiões terem sido ou ainda serem periferias do poder nos âmbitos econômico, cultural e militar. O sul global está sempre em algum grau sujeito ao poder desse Outro – o Norte – e vem remoldando, ao longo das décadas, uma certa herança “ocidental”, que ainda é muito presente, e estabelece laços de dependência muito profundos.

Marina Fokidis O Sul é definitivamente uma topografia sensível e bastante complexa, como Solange apropriadamente descreveu. Um espaço (consistindo em lugares) que sofreu de condições extremas de opressão, espoliação, injustiça, violência, durante um processo de colonização que não termina nunca. Muito provavelmente, a noção de um tópos como sul global foi moldada a partir da necessidade de  lutar e resistir à colonização e a regimes autoritários. Sob essa luz, o termo sul global não só faz um conjunto aparente de histórias que surgem das práticas “doentes” comumente aplicadas pelos sistemas autoritários, mas também marca longas lutas por liberdade e justiça. No entanto, mesmo que seja uma noção necessária, uma ideia que desde o seu início marcou um momento na história e subverteu o pensamento histórico “global” centrado no Ocidente, pode ser que precise urgentemente ser repensado e reformulado. Como é de costume, termos como tal são adotados pelos sistemas autoritários que querem disfarçar suas estratégias atrozes e fazê-los passar como os esforços de amor e união. Parece que o sul global e a teoria pós-colonial são irmãs, ou mãe e filha. Eu sou um pouco crítica, hoje em dia (com a palavra dia eu quero dizer isso quase literalmente, pois não seria o mesmo alguns anos antes) em relação ao sentido dos dois termos: o sul global porque global pode ser bastante problemático na era do “fracasso” (fracasso real ou performado, ainda veremos) da globalização,  economia global e sindicatos globais, etc. E pós-colonial, porque, como está se tornando cada vez mais evidente, a colonização nunca terminou, mas apenas mudou. A teoria pós-colonial uniu teóricos do sul e do norte, leste e oeste, que inventaram as ferramentas críticas para superar as tensões entre o centro e a periferia, a ideia de primitivismo e assim por diante, e esse acontecimento é, sem dúvida, de grande importância. No entanto, da maneira como o mundo e as práticas coloniais estão desenvolvendo isso juntos, o prefixo pós e o prefixo neo podem ser redundantes. Será que a colonialidade de fato parou? O sul global é, por definição, uma “entidade” inventada. Um ser inventado, formado por muitas intensidades e preocupações compartilhadas, muitas afinidades e descontentamentos sentidas por pessoas em diferentes áreas devido a passados ​​sociopolíticos paralelos. E isso é muito válido. No entanto, quem inventou isso e quem o define? E por quê? É uma noção rígida que não permite a transformação? Ele descreve uma topografia geográfica restrita que não aceita qualquer tipo de mudanças? Por exemplo, aconteceu-me de ser corrigida de forma agressiva em uma palestra pública, porque me atrevi a expandir a noção de sul acima do Equador. A questão interessante é que eu fui agressivamente interpelada por um teórico/filósofo do norte europeu e não por alguém do sul da global. Não estou dizendo que o diálogo e o debate não são permitidos, mas é interessante pensar em todas as perguntas acima sobre o sul global em relação à noção de “controle”. Se conseguirmos desenvolver uma forte consciência do que está “realmente” acontecendo de novo e de novo, então ele pode ter uma chance de se manter e fortalecer uma comunidade transnacional do “sul” em toda sua diversidade, é claro.

De um modo geral, o sul ainda aparece como uma parte do mundo que é explorada e/ou que carece de certas qualidades ou atributos de seu “outro” – o norte. De qualquer forma, o norte é ainda o eixo, o ponto de referência por meio do qual o sul é definido e se define. Esta forma de pensar pode ser superada? Como podemos criar uma ideia do sul que não seja uma versão defeituosa do norte, mas definida em seus próprios termos? Seria isso um “novo estado de espírito”? Como tal estado de espírito pode ser definido?

Solange Farkas Acredito que já se tenta fazer isso há muitos anos. Os países do Sul – seus pensadores, artistas, pesquisadores de diversas áreas, ativistas – vêm, desde suas independências – e aí falamos de diversas formas de independência, seja do bloco soviético, seja do imperialismo do século XIX  –, buscando construir um pensamento autônomo que dê conta das condições reais do sul, em diálogo com nossas particularidades e necessidades. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, por exemplo, é uma figura representativa desse pensamento autônomo que só poderia emergir a partir do sul.

Marina Fokidis Isso me faz lembrar o nome de um grupo de punk da Grécia no final dos anos 80. Eles se denominavam sul sem norte –– provavelmente inspirados pelo livro de contos de Charles Bukowski com o mesmo título –, mas na minha mente eles estavam dando para o título outro significado. Estavam recusando-se a ser definidos por uma medida que favorece o Norte, escolhendo definir-se como um grupo de punk que vem de um sul fictício independente, que não precisa de um norte, de modo a existir e ser falado. Claro que isso é uma ideia utópica. Da maneira que o mundo se encontra hoje, norte/oeste ainda são o eixo do sul/leste, mas por quanto tempo isso seria evidente? Mesmo os seres humanos ainda são o eixo através do qual definimos as “máquinas”, mas por quanto tempo isso será verdade? Nós não sabemos. Entendemos nossos tempos como um momento precário na história, uma virada. Alguns argumentam que todo mundo em todos os tempos entende seus tempos como um ponto de virada. Talvez, entretanto, o indicativo de hoje seja a velocidade, a aceleração que faz com que  sintamos que as mudanças estão “acontecendo do dia para a noite”. Deve-se estar alerta e constantemente ciente deste ritmo. Creio que a questão não deve ser como criar uma ideia de um sul independente, mas como liberar a ideia de sul das más práticas do norte e do chauvinismo cultural. Já houve uma infinidade de tentativas para atingir esse ponto por muito tempo até agora — devemos continuar. Nós nem sempre podemos confiar nos filantropos, humanistas, intermediários e “benfeitores”, e todas aquelas pessoas de fora que querem controlar a ideia de “sul”, restringindo-a geograficamente e conceitualmente, tanto quanto possível. Não há necessidade ou espaço para mais apropriação pelo olhar do norte. No entanto, não queremos promover o sul como o lugar onde tudo de valor ocorre exclusivamente e sempre lá. Quando iniciamos a revista em 2012, que surgiu com o nome de Sul como um estado de espírito, estávamos pensando nas noções de sul como um ponto de encontro para intensidades partilhadas, mas não exclusivamente em termos geográficos. Não exclusivamente como um conjunto de regiões que partilham passados ​​coloniais comuns. Nós queríamos ir um passo além e ver como seria se o sul se tornasse apenas um estado, espírito de um processo de pensamento que deriva naturalmente, a partir dos legados e das histórias do sul global, mas não parar por aí, evoluindo mesmo para caminhos ainda indefinidos. A nossa ideia era não promover ou moldar mais uma identidade coletiva, mas nos abrirmos para outros interlocutores inesperados de outras regiões e áreas e bairros — entre familiares, amigos e estranhos que se tornem amigos. Nós pensamos o sul como se não fosse um lugar no mundo, mas uma ideia! Para citar o teórico grego-australiano Nikos Papastergiadis, que influenciou imensamente o início de nossa publicação, pensamos em Sul “como um espaço onde as pessoas se encontram para imaginar a possibilidade de outras formas de estar no mundo”. Uma “pequena esfera pública”. Por isso, fundamos a revista na base de uma ferramenta de troca — e de diálogo que iria produzir e manter a produção de um entendimento mútuo do mundo. E então … o mundo inteiro poderia ser parte desse estado de espírito, se desejado.

 A globalização não concedeu automaticamente para as pessoas do sul global direitos e confortos aos quais as pessoas do norte global já têm acesso. Ao contrário, tem servido, em muitos casos, para atualizar as velhas formas de dominação que amplificam desigualdades ou mesmo engendrado formas novas e sutis de (re)colonização em algumas partes do mundo que ainda estão lidando com as consequências do colonialismo. Não menos do que parte integrante dessa nova “lógica global” é a internacionalização do sistema de arte contemporânea e o surgimento da chamada “arte global”, que procuram uma experiência estética universal e acabam achatando diversidades e reforçando paradigmas hegemônicos ocidentais. A globalização dos museus, instituições de arte, galerias e feiras; a “bienalização” do mundo da arte; a mercantilização da arte contemporânea; e a massificação do turismo cultural são ao mesmo tempo a causa e o resultado desse processo. Como, então, as instituições de arte do sul global podem lidar com a urgência de serem cada vez mais “internacionais” e “globais”, ao mesmo temp que buscam preservar sua alteridade e da arte que representam/exibem, em face da hegemonia do Norte/Ocidente?

Solange Farkas A nossa prática institucional é mais cinzenta, mais precária. Tencionamos alguns padrões institucionais e buscamos alianças. Tentamos nos adequar a moldes de conservação, restauro e práticas, e ao mesmo tempo estamos constantemente nos adaptando e nos reinventando de acordo com as possibilidades e questões conceituais que estão se construindo. Estamos constantemente repensando o modelo à luz das nossas possibilidades, o que não é tarefa fácil. Como menciona Roberto Schwarz, somos uma elite liberal no sentido econômico e ao mesmo tempo escravocrata.

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Capa da revista “South as State of Mind”, publicação fundada por Marina Fokidis que agora funciona como plataforma de conteúdo para a Documenta 14

Marina Fokidis Eu não definiria uma instituição como uma instituição do sul global, mesmo se estivesse localizada nas regiões que são definidas como sul. Eu nem sequer seria tão cética quanto à massificação do turismo cultural em direção a uma região específica, sobre o sul e etc. Talvez a resposta não passe por como se tornar parte desse circuito mundial de instituições da forma, como o processo de globalização define. “Grande público, grande renda, grandes exposições”, espetacularização e assim por diante. Às vezes, a fim de ter um grande impacto no mundo, você precisa de uma ideia forte, um instinto e autêntica urgência. Bienais existiriam, megaexposições também, museus megaturísticos de arte contemporânea também e eles podem ganhar dinheiro, principalmente, do turista “mal informado”, “ignorante” que quer gastar tempo, dinheiro e energia para se esquecer da vida. No entanto, eu não estou tão certa sobre a importância de todas essas instituições intermediárias e megaculturais para diferentes povos e culturas e para a formação da história cultural. Acredito que estamos caminhando para o período de fortalecimento de redes de “conhecimento local”. Redes fortes, sem intermediários e com base em laços fortes e economias compartilhadas ao redor do mundo. E, eventualmente, quando isso se tornar evidente, esse tópos de existência e de radiodifusão não seria uma desgraça, mas completamente o oposto. Eu vejo o “centro” (de onde os museus globalizados e as bienais mais conhecidas vêm, e onde eles são baseados) implorando por um lugar na “periferia” (o sol). E isso é uma piada — mas não digo isso de uma maneira hostil. Eu não sou médium. No entanto, sinto que a falta de recursos vai levar o interesse da economia global para longe da cultura. Turistas podem não ser capazes de pagar as taxas de entrada dessas instituições globalizadas, ao mesmo tempo que as ligações mais fortes entre os “mais fracos” informados — organizações independentes que têm fornecido ao mundo seu conhecimento, ainda que às vezes até mesmo negociando seu exotismo — renderão as megainstituições culturais centralizadas, eventualmente  obsoletas ou limitadas. Tenho a certeza de que diferentes maneiras de conexão mais próximas das formas de um “telefone sem fio”, e não de uma explosão de fogos de artifício, em breve estarão fornecendo a plataforma central para a criação e distribuição das artes contemporâneas. Memo assim, os mercados culturais e a arte continuarão a ser os mercados com suas galerias e suas instituições ligadas a eles, mas eles talvez venham a expor dentro dos limites de uma sala de estar para os poucos “fortes”. E talvez as pessoas nas artes mais uma vez tenham de repensar e escolher tomar a pílula azul ou a vermelha (uma memória nostálgica do filme Matrix).

A documenta 14 vai acontecer simultaneamente na Alemanha e na Grécia. Por isso, para ver toda a exposição, o visitante terá que “migrar”, se deslocando entre os dois países. Como esse deslocamento pode ser tornado significativo em vez de representar apenas uma outra iteração do globetrotting de profissionais de arte, que acontece vis-à-vis com o turismo cultural e a bienalização do mundo da arte? Como evitar o risco de cair em um  “turismo de crise social”, ao mesmo tempo que se deve lidar com o setor de turismo da Grécia, que insiste que o país e as suas ilhas continuam a ser uma destinos idílicos, parecendo estar em em negação intencional da gravidade do problema migratório que assola o País?

Solange Farkas Essa, sem dúvida, é uma boa questão para a Documenta 14. Vamos ver como irão resolver isso, mas sem dúvida a documenta tem peso institucional e instrumentos para resolver esta questão. Um jeito de se distanciar disso é tentar uma perspectiva mais sóbria da injustiça e desigualdade que assolam a cena mundial no momento.

Marina Fokidis Eu acredito que o fato de a documenta 14 ser compartilhada entre dois locais, Atenas e Kassel, é um evento histórico, está acontecendo pela primeira vez desde 1955. Claro, já houve diferentes formas de intercâmbio substancial com outros locais no passado, mais notavelmente durante a documenta 11 sob a direção artística de Okwui Enwezor, com as quatro plataformas de conferências e workshops realizadas em diferentes regiões — Europa, Ásia, Américas e África –, que precedeu a abertura da exposição. No entanto, o que é diferente com a documenta 14 é que ela não é apenas sobre ou informada por vários locais, mas está realmente acontecendo em dois locais que estão sob condições sociopolíticas e econômicas completamente diferentes — mesmo se ambos estão situados na Europa. Existem dois lugares operacionais a partir dos quais a documenta 14 falará. Duas cidades diferentes em escala, estado econômico, hábitos culturais e muito mais. Desde o início da documenta 14, o diretor artístico Adam Szymczyk fez questão de organizar dois escritórios artísticos e dividir sua equipe entre os dois locais. Eu acredito que este “compartilhamento”, juntamente com o título de trabalho Aprendendo com Atenas, é o ponto focal, a essência, o “tema”, digamos, desta edição, que em seu sentido simbólico é claro que também serve como metáfora para a fundação do sentido moderno da democracia e sua falta. A ideia de Szymczyk de dividir a documenta 14, entre o chamado norte e sul — juntamente com todas as difíceis negociações políticas, sociais e culturais que têm de ser efetuadas para a realização de uma iniciativa como essa — me parece a resposta mais precisa para a sua preocupação em relação a um deslocamento significativo. Essa multiplicidade de locais para um evento institucional estabelecido como a documenta, na verdade, serve como uma crítica à ideia de bienalização e, ao mesmo tempo, desafia a autoridade de uma mega-instituição. Através dessa edição da documenta, Szymczyk quer reconectá-la com a noção e a realidade da “urgência”, que desencadeou o projeto em primeiro lugar. Atenas, como uma cidade irmã, era uma das possibilidades onde isso poderia acontecer. Eu acredito que a longa e orgânica convivência operacional dos dois locais — através do veículo de um mega-show como a documenta e seu processo organizacional que leva anos de duração — já foi oferecendo a Atenas um certo tipo de visibilidade que vai além dos tradicionais clichês. Talvez a documenta 14 vá lançar alguma luz — de maneira diferente da que a mídia tem feito durante todos esses anos de crise — sobre o espaço cinza cimentado entre o Parthenon e o porto de Piraeus, que leva para as belas ilhas. E esse pode ser o caminho para uma compreensão mútua da diversidade, bem como das nuances da semelhança de atitudes, estilos, vozes, dentro da Europa, mesmo dentro do sul e desafiadoramente dentro do mundo. A documenta 14 não quer forçar “migração” (que pode não ser a palavra certa para a prática dos globetrotters da arte) ou turismo cultural voluntário para ser mais precisa. Essa não é a ideia. Os eventos, as exposições e o projeto da documenta 14 serão estruturados de forma que os visitantes não sintam que estarão perdendo algo se não puderem viajar entre os dois espaços. Claro que vai ser uma bênção se todos os visitantes tiverem a oportunidade de estar presentes em ambos os lugares (e metaforicamente entre eles também). Esforços estão sendo feitos para tornar esse deslocamento o mais fácil possível. No entanto, o que é mais importante do que ver tudo, para os visitantes que irão visitar ambos os lugares, é ser capaz de ver o “mundo” a partir de diferentes posições, de baixo para cima e de cima para baixo e não exclusivamente de cima para baixo. A resposta mais precisa à sua pergunta pode ser encontrada nas palavras de Adam Szymczyk:”Os dois projetos, realizados de diferentes maneiras, aprendendo a partir de seus próprios lugares e com o outro, irão formar duas imagens que jamais poderiam ser sobrepostas para formar uma única imagem. Da mesma forma, as duas exposições não poderão ser apreendidas a partir de um único ponto de vista. Ao pedir aos visitantes da documenta que tomem uma rota semelhante a de seus produtores, e tomem seus tempos permitindo uma pausa na visibilidade ao viajar entre os dois locais, a minha esperança é que a exposição voltará a se envolver em um processo de transformação cultural “.

A Bienal de Berlim deste ano, com curadoria do coletivo pós-internet DIS, foi duramente criticada por sua suposta falta de preocupação com os eventos sociais ou políticos que estão ocorrendo na Europa hoje e por sua professada negação de práticas “artivistas”, tão na moda atualmente. Fixando firmemente seus olhos em um futuro especulativo moldado pela tecnologia, a Bienal e a arte que apresenta são acusadas ​​de não se engajar suficientemente nem com o passado nem com o presente, ignorando diferenças históricas, sociais, políticas e culturais ao redor do mundo. Em vez de permitir a coexistência de uma multiplicidade de temporalidades e epistemologias, são acusados de associar o “progresso” mais uma vez aos paradigmas hegemônicos do norte. Por outro lado, a arte do sul pode muitas vezes ser excessivamente “social” — no sentido de uma espécie de “sociologização” –, sendo, portanto, vinculada a uma realidade sociopolítica local, a qual está constantemente denunciando ou comentando. Esses dois “tipos” de arte são realmente opostos? Existe um meio termo ou um diálogo possível aqui?

Solange Farkas Sim, existem diálogos possíveis, sem dúvida. A questão não reside nos tipos de arte praticados, mas sim nos discursos que organizam, valorizam e validam essas diferentes práticas. Não importa que elas sejam diferentes, mas que sejam pensadas em teias de relação diferentes. A questão talvez tenha uma outra dimensão, mais prosaica e por outro lado mais grave: a produção artística reflete questões prementes de certas sociedades, regiões; assim, de uma certa forma, é natural que em certas regiões a produção artística e o pensamento curatorial não se ocupem de uma certa sociologia. Por outro lado, é um pouco assustador que isso ocorra, já que curadores e artistas dessas regiões ainda vivem em um mundo violentamente injusto e desigual.

Marina Fokidis Pode-se dizer talvez que essa questão contém também a própria resposta. De fato, algumas duras críticas têm sido feitas à última Bienal de Berlim, mas também algumas poucas bastante positivas. Acho que todo o conjunto apresentado naquela bienal foi bastante coerente e sólido. Para mim, foi tão errada que considero muito bem-sucedida. Não é fácil apresentar o erro — o erro cru, e não o erro performado e a injustiça. É um gesto corajoso também. Eu vi a última edição da Bienal de Berlim como uma ode ao “vazio”. O vazio social,  sentimental, mental e cultural. Fez-me lembrar um pouco a mesma sensação que tive quando vi um dos primeiros filmes de Jim Jarmusch, Stranger than Paradise (Mais estranho que o paraiso), no qual os três protagonistas oscilam entre asdiferentes paisagens dos EUA, totalmente sem palavras. Mudos não pela beleza ou o impacto da paisagem, mas, pelo contrário, porque eles não têm nada a dizer sobre o mundo como ele está se desenvolvendo. Porque sentem o vazio. Sob esse escopo, esta Bienal não poderia ter ignorado o passado e o futuro, e o presente social e político, como muitos pensavam, mas estava precisamente envolvida com ele da mesma forma como muitos se envolvem com ele em privado na frente de suas telas de computador. Navegam ao mesmo tempo entre as horríveis notícias do dia repletas de desespero, desapropriação, guerras e mortes e suas dietas livres de glúten e fóruns crossfit. Essa é muitas vezes a maneira pela qual vários praticantes — o que é fundamental para a Bienal — recebem suas informações de modo a aplicar seu ativismo e se manterem ocupados, transformando o mundo em um lugar melhor. Esse é talvez um problema maior do que esta edição da Bienal de Berlim. Claro que é muito importante para diferentes temporalidades culturais e diferentes histórias problemáticas de injustiça serem representadas nessas mega-mostras. Mas, como isso está se tornando uma norma, quase uma exigência para uma exposição bem-sucedida, perde sua relevância. É um gesto automático que se torna entorpecedor no momento em que atinge o solo de uma sala de exposições. Em meio a todas essas exposições necessárias — que incluem fortes debates sobre a migração, a exploração, as injustiças históricas, mas que obtêm fundos para a sua realização de empresas multinacionais, de regimes autoritários ou corporações multinacionais –, um projeto como a Bienal de Berlim é um interlúdio útil, uma espécie de “wake up call”, apesar de sua fraqueza. Esta edição foi um comentário muito específico e teve que incluir, eu acho, essas pessoas e obras (que a propósito foram representadas em outras megaexposições recentemente), a fim de trazer os seus pontos de vista.

O Brasil tem sido chamado de “o país do futuro”. A frase é muitas vezes completada, no entanto, com um “e sempre será”. Parece que o Sul está em permanente estado de “tornar-se”, de “vir a ser”. Em vez de apenas uma questão de espacialidade, o divisão norte e Sul parece ser uma questão de temporalidade também, ou na verdade, de temporalidades. Se o norte parece já ter chegado à chamada era pós-contemporânea (que é o tema da Bienal de Berlim deste ano, intitulada The Present in Drag), o sul parece estar ainda se debatendo com a ideia de modernidade (que ainda não foi devidamente historicizada), excessivamente ocupado com a história e suas reescritas, parece incapaz de conceber um futuro – ainda que se acredite que é justamente o sul que está mais bem equipado para inventá-lo.

Solange Farkas Ao meu ver, esta frase “o Brasil é o país do futuro” é desatualizada; trata-se de um clichê antigo cunhado durante a Segunda Guerra. Coexistem diferentes temporalidades no Sul, tal como no norte. Essas diferenças aqui são menos homogêneas que no norte, mas transitamos por contextos paralelos que expressam (ou sintetizam) diferentes temporalidades, algumas mais próximas a padrões do norte, outros nem tanto. No que diz respeito à invenção do futuro, o sul talvez tenha mais potencial – conceitual, afetivo –, mas é preciso expandir e sofisticar nossa autonomia antes que isso seja possível.

Marina Fokidis Acho que o norte e o sul, o Oriente e o Ocidente, tudo de fato chegou na pós- contemporaneidade. Somos todos interdependentes. Talvez isso seja expresso de forma diferente, em diferentes regiões — “expressão” é muitas vezes influenciada pelo ambiente, a política, a sociedade, a paisagem, o sol, a luz, o clima… Acho que o ponto é a “autonomia” do Sul. O mundo inteiro está em um estado constante de tornar-se e talvez o “Sul” como um estado de espírito pode desempenhar um papel importante nesta fase — para um mundo melhor.


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