Agora que o poder mudou de mãos e os fundamentos da democracia foram relativizados, o Brasil passa por um momento inusitado. No cenário, há incertezas por todos os lados, a começar pelas perspectivas econômicas. Mesmo entre os que acreditam que a crise chegou ao fundo do poço e já começou a traçar uma curva ascendente, há dúvidas sobre o ritmo da recuperação. A rapidez ou lentidão do processo depende de elementos tão díspares quanto a relação do governo Michel Temer com o Congresso e os rumos da Operação Lava Jato. Fatores externos, como as eleições americanas e a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, também entram em campo. Isso para não citar uma possível reação da parcela de brasileiros inconformada com o retrocesso social que emana do Palácio do Planalto. Na prática, apostar no governo Temer é arriscar o salto no escuro descrito pelo filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855) em Temor e Tremor. Na obra, Kierkegaard discorre sobre a irracionalidade da experiência do real. Conclui que, na impossibilidade de fazer uma escolha racional, o sujeito muitas vezes se apega exclusivamente à fé e dá um salto no escuro.
Esse tipo de escolha pode até levar a uma queda em águas tépidas e cristalinas, mas, na situação atual do País, nem integrantes da tropa de choque de Temer acreditam nessa possibilidade. O senador José Agripino Maia (RN), presidente do DEM e figura de destaque da base aliada do antigo vice-presidente, vislumbra problemas no percurso: “São tempos difíceis. Até 2018 não vai ter tempo fácil. 2017 será um ano difícil. 2018 também. Não tem saída indolor para a crise”. Por outro lado, o senador acredita que, “em função da posição que Michel Temer está decidido a tomar”, acontecerá a retomada do crescimento.
Entre as “posições” alardeadas por Temer estão a reforma da Previdência e o limite do gasto público à variação da inflação por 20 anos, a partir de 2017. Como governo e parlamentares mantêm distância de medidas impopulares às vésperas de eleições, nenhuma dessas propostas tem chance de deslanchar de imediato, em especial porque afetam os investimentos em saúde e educação. O aliado Agripino Maia assegura que a maioria do Senado está disposta a colaborar para a saída da crise e não associa o entrave ao fato de as medidas serem amargas: “A razão é de ordem prática. É por conta do quórum, por causa da eleição em outubro. Toda eleição envolve a presença dos parlamentares em seus Estados”.
O economista Fernando de Holanda Barbosa, do curso de Pós-Graduação da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, defende que o equilíbrio das finanças brasileiras depende da aprovação dessas duas medidas ainda este ano. “É preciso limitar o crescimento dos gastos para que a dívida pública não aumente de maneira estratosférica e, por outro lado, equacionar a questão da Previdência, que é explosiva no médio e no longo prazo”, afirma Barbosa. “Resolvidas essas questões fiscais, o Banco Central pode começar a reduzir a taxa de juros e fazer com que a recuperação da economia seja mais forte.”
Sem levar em conta como se deu o processo de impeachment, o economista acredita que o simples afastamento de Dilma Rousseff sinalizou melhores perspectivas para o País. “A desorganização das contas públicas foi a principal obra do governo Dilma”, opina Barbosa. “Sabemos que agora não voltam mais os erros que aumentaram o déficit público, como a política de isenções, que não influenciou na produção.” Para ele, a dúvida para o futuro imediato diz respeito à velocidade da recuperação da economia: “Ela vai ser mais rápida ou mais lenta, dependendo, sobretudo, da aprovação do teto dos gastos e da reforma da Previdência”.
Um dos problemas é que há uma farra fiscal se avolumando no horizonte. Começou com a aprovação no Congresso de uma nova meta fiscal para 2016, com déficit primário na casa dos R$ 170,5 bilhões, contra a previsão anterior de R$ 97 bilhões. Tem tudo para se aguçar com os projetos de reajuste salarial do funcionalismo público já aprovados na Câmara dos Deputados. Um deles é relativo ao aumento dos vencimentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil, que funcionam como teto para o funcionalismo. Ou seja, têm efeito cascata. Estima-se que, aprovados, provoquem um impacto de quase R$ 70 bilhões entre 2016 e 2018.
Trocando em miúdos, por enquanto, a austeridade apregoada pelo novo governo deve atingir apenas os setores menos favorecidos da população. Na relação com o Congresso, Temer adota postura oposta à da ex-presidenta. Enquanto Dilma dava as costas para os parlamentares e falhava ao não dialogar, o antigo vice não para de conversar. Aliás, chegou ao poder por meio da negociação. Maquinou à exaustão com Eduardo Cunha, que, por longos e tumultuados meses, manteve o chamado baixo clero sob a sua liderança.
No decorrer do processo, as referências para a condução do País também mudaram. Na prática, representam polos opostos. Por isso mesmo, os analistas também estão divididos. Enquanto o economista Holanda Barbosa aposta no governo Temer para a retomada da atividade econômica e do pleno emprego, o engenheiro Pedro Celestino Pereira afirma que o modelo implica retrocesso. Presidente do Clube de Engenharia, Pereira argumenta que o ajuste proposto pela equipe econômica contraria os interesses do País, provoca tensões sociais, desaparelha o Estado e não induz ao desenvolvimento.
“Somos uma das dez maiores economias do mundo e estamos colocando a perder um enorme potencial de crescimento”, diz o engenheiro. “A proposta desse governo é desmantelar o Estado, transformando a Petrobras em mera produtora de petróleo bruto. Quer também tirar o papel de indutor do desenvolvimento do BNDES, reduzindo-o à condição de financiador de privatizações e concessões.” Nada acontece por obra do acaso. O presidente do Clube de Engenharia está convencido de que interesses multinacionais no setor petrolífero e na área de energia nuclear atuaram de forma decisiva no processo que culminou no impeachment de Dilma.
No âmbito atômico, o que está em jogo é a autossuficiência brasileira. De imediato, envolve a conclusão da usina nuclear Angra 3, em Angra dos Reis (RJ), e a construção de um submarino com propulsão nuclear, cujo projeto começou a ser desenvolvido pela Marinha do Brasil em julho de 2012. Antes de a crise econômica abalar o ritmo dos trabalhos na base naval de Itaguaí, no Rio de Janeiro, o primeiro submarino nuclear brasileiro estava previsto para 2017. Agora não tem prazo de conclusão. Trata-se de um projeto de interesse geopolítico, cuja tecnologia é dominada por apenas cinco países: Estados Unidos, China, França, Inglaterra e Rússia.
Quanto à Petrobras, o mais recente reflexo do desmonte em andamento foi a venda de 66% do campo de Carcará, na Baía de Santos, por US$ 2,5 bilhões, para a empresa norueguesa Statoil. Como a Brasileiros ressaltou em editorial na edição passada, “apesar de corroída pela corrupção, há décadas, com os prejuízos recentes estimados em R$ 6 bilhões, nada explica que, para fortalecer o caixa da empresa, se vendam ativos preciosos em um momento de baixa de mercado”. Partindo do pressuposto de que o campo de Carcará valha dez vezes mais do que foi negociado, a Febrageo (Federação Brasileira de Geólogos) tenta reverter a venda na Justiça. Para João Cesar de Freitas Pinheiros, presidente da Febrageo, foi “crime de lesa-pátria”.
O plano de desinvestimento da Petrobras atinge a empresa em um momento crucial da Operação Lava Jato, a investigação iniciada em março de 2014 para enquadrar doleiros que acabou desvendando um megaesquema de corrupção na empresa. Conduzida por uma força-tarefa liderada pelo juiz Sergio Moro, da Justiça Federal em Curitiba, a Lava Jato investiga atualmente 364 pessoas – físicas e jurídicas – em 81 inquéritos. Já homologou 41 colaborações premiadas no Supremo Tribunal Federal e repatriou um total de R$ 659 milhões. Nunca houve nada parecido no Brasil.
No imprescindível combate à corrupção, no entanto, a chamada República de Curitiba não demorou a dar mostras de que saía fora do eixo. Em um primeiro momento, por usar e abusar da prisão preventiva. Na sequência, por associá-la à delação premiada. Depois de uma temporada na cadeia, sem perspectiva de sair, muito investigado se dispõe a delatar até o que não viu, mas ouviu falar. Outra estratégia atribuída à força-tarefa é promover vazamentos seletivos de informações e até mesmo de grampo que não pode ser anexado aos processos, por ter sido obtido de forma ilegal, como o telefonema entre Dilma e Lula no primeiro semestre deste ano.
O futuro da Lava Jato é uma das principais incógnitas dos próximos tempos. Ela vai continuar? Vai investigar todo o espectro político? Enquanto o alvo da operação foram Lula, Dilma e o PT, o establishment não parou de aplaudir. Fez ouvidos de mercador a argumentos contrários ao impeachment emitidos por juristas conceituados, entre eles Celso Bandeira de Mello, Lenio Luiz Streck e Pedro Estevam Serrano. Também desconsiderou alertas de organismos internacionais, como o pedido de explicações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), que o ministro José Serra classificou publicamente de “besta” e “malfeito”.
Recebidos como heróis em determinados ambientes, os procuradores da força-tarefa coletaram mais de dois milhões de assinaturas de apoio ao pacote contra corrupção que apresentaram ao Congresso. Algumas das medidas são, no mínimo, polêmicas. Uma delas prevê a prisão preventiva por tempo indeterminado, antes da condenação, de suspeitos que tenham recursos fora do País. Outra medida muito controversa diz respeito à possibilidade de que provas obtidas de forma ilícita sejam consideradas válidas, desde que o investigador tenha atuado de “boa-fé”.
Uma reação inesperada às propostas que ferem a lei veio do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. “Não se combate crime cometendo crime”, afirmou Mendes, ao criticar a “onipotência” e os “delírios autoritários” dos procuradores, recomendando que eles calçassem “as sandálias da humildade”. O ministro, como se sabe, não havia se manifestado anteriormente contra nenhuma irregularidade imputada à Lava Jato. Pelo contrário. Ao suspender a posse do ex-presidente Lula como ministro da Casa Civil, ele levou em consideração o telefonema entre Dilma e Lula, gravado de forma irregular e vazado por determinação do juiz Moro.
A mudança de posição do ministro do Supremo, que agora também ocupa a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, ocorreu devido a vazamento envolvendo seu parceiro preferencial na Corte, o ministro José Antonio Dias Toffoli. A notícia, que não se confirmou de forma oficial, era sobre uma suposta relação imprópria de Dias Toffoli com Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS, preso em Curitiba. Antes, em diversas ocasiões, nomes de políticos adversários do PT, em particular do PSDB, também apareceram nas apurações, que não seguiram adiante, reforçando a hipótese de que não só os vazamentos, mas a própria investigação é seletiva.
Em seu salto no escuro, o Brasil também convive com a partidarização da mídia e com a desconfiança em torno do Judiciário, o poder mais refratário à transparência. O cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, considera que o País vive, em síntese, uma situação de esfacelamento, de quebra institucional. “Embora até aqui tudo indique que estivemos livres de ameaças de golpe militar propriamente dito, de todas as maneiras estamos vivendo uma experiência de esfacelamento institucional, especialmente na faixa político-partidária”, afirma o cientista político. “Essa situação é negativa, envolve riscos e complica muito o futuro.”
Em nome da estabilidade política, é provável e necessário que o País venha a rediscutir em breve a figura do impeachment, que abateu dois dos quatro presidentes eleitos depois da redemocratização. Deles, o processo mais questionável envolveu, sem dúvida alguma, Dilma. Apesar de os brasileiros terem rejeitado o sistema parlamentarista em dois plebiscitos (em janeiro de 1963 e em abril de 1993), ela acabou deposta depois de perder a maioria no Parlamento, “pelo conjunto da obra”, como definiu o senador Zeze Perrella, (PTB-MG), aquele do helicóptero.
“É patético que de repente tenha ocorrido um processo conduzido na fase final pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, sem qualquer consideração jurídica que seja relevante”, afirma o professor emérito Reis. No curto prazo, não há a menor garantia de estabilidade político-econômica, e muito menos social. O conservadorismo do novo governo revelou-se antes mesmo de ele esclarecer como será a “revisão na área social”, com mudanças nos programas petistas, que promete fazer neste pós-impeachment. Por enquanto, uma das marcas desse governo é anunciar medidas estapafúrdias e, pressionado pelas ruas e redes sociais, voltar atrás.
Nem a escolha de um filme para representar o Brasil no Oscar escapou da contenda. Um dos favoritos é Aquarius, do diretor Kleber Mendonça Filho, com Sonia Braga, que acabou de ganhar o prêmio do júri do festival World Cinema Amsterdam, na Holanda. Ocorre que em festival anterior, em Cannes, na França, diretor e elenco protestaram no tapete vermelho contra o golpe no Brasil. E, para a comissão que escolherá o candidato brasileiro ao Oscar, o governo nomeou um crítico de cinema que usou várias vezes as redes sociais para desqualificar Mendonça Filho.
Em apoio a Aquarius, dois diretores de cinema – Anna Muylaert e Gabriel Mascaro – não inscreveram seus filmes na disputa para representar o Brasil no Oscar. A atriz Ingra Liberato e o cineasta Guilherme Fiúza Zenha, por sua vez, desistiram de participar da escolha do representante brasileiro. “Como a comissão tem sua legitimidade questionada por grande parte de nossa classe, me retiro em respeito à minha própria tribo, lamento profundamente esse conflito e torço para que a nova comissão encontre legitimidade”, escreveu a atriz em sua página no Facebook.
De conflito em conflito, o Brasil se emaranha em uma “perspectiva odienta”, como define o professor emérito Reis: “Nem sequer em 1964, quando teve um golpe feio, que supostamente envolvia a ameaça comunista, nem sequer naquele momento tivemos um clima tão negativo”. O sentimento de intolerância na sociedade foi em grande parte construído por movimentos vinculados a organizações americanas de direita, a exemplo do que ocorreu nos anos 1960. Só que, em vez de mulheres “em marcha pela família”, agora a faceta mais visível dos movimentos de direita é formada por rapazes e moças pedindo “Estado mínimo”.
A socióloga Maria Victoria Benevides, da Universidade de São Paulo, acredita que o resultado no âmbito nacional das eleições municipais será fundamental para definir o futuro imediato do País. Antes de mais nada, ele indicará a força ou debilidade do novo governo para conduzir a economia. “Não há dúvida de que a grande variável é a política econômica, como será feito o tal do ajuste, a tal política de austeridade”, afirma Maria Victoria. “A única receita que eles têm é a neoliberal e uma pessoa que certamente terá um papel decisivo nesse tema é José Serra, que vai passar para a História como o traíra-mor do País”.
Senador do PSDB licenciado para ocupar o Ministério das Relações Exteriores, Serra planeja ser presidente do Brasil desde criancinha. Para ele, não basta o afastamento definitivo de Dilma do cenário nacional. Pela sua lógica, compartilhada com outros titãs da tradicional política brasileira, é preciso também impedir que Lula venha a disputar as eleições de 2018. Ou seja, é preciso torná-lo inelegível. Enquanto esse processo é encaminhado, Serra já tratou de mudar os rumos da política externa do País, a começar por impedir que a combalida Venezuela assumisse a presidência rotativa do Mercosul, cuja sequência é definida por ordem alfabética. “Estamos com um regime na Venezuela autoritário, discricionário, repressivo”, desqualificou Serra, quando chegou a vez do país, em conluio com a Argentina e o Paraguai.
“Serra está desmontando tijolo por tijolo a política externa de grande impacto que começou no governo Lula, com o ministro Celso Amorim e o assessor especial Marco Aurélio Garcia”, afirmou Maria Victoria. “Só falta ele imitar Juracy Magalhães e dizer: ‘O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil’.” Ex-governador da Bahia, Juracy fez a célebre comparação logo no começo da ditadura militar, quando foi nomeado embaixador do Brasil nos Estados Unidos, no governo do marechal Humberto de Alencar Castello Branco.
O realinhamento com os interesses americanos apontado por Maria Victoria ocorre justamente no momento em que os próprios Estados Unidos enfrentam uma eleição com impacto global imprevisível. No Brasil, a parte da população que reconhece o ciclo econômico pela abundância ou falta de comida à mesa, tende a concordar com o apelo final feito por Dilma aos senadores: “Não aceitem um golpe que, em vez de solucionar, agravará a crise brasileira”. Esse cenário, associado à falta de legitimidade de Temer, faz com que o tema central da obra Temor e Tremor, do filósofo Kierkegaard, esteja muito presente no horizonte brasileiro. Sem elementos racionais para escolher um caminho, salta-se no escuro.
Deixe um comentário