… O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.
Maiakóvski (1927)
“Para um romancista, nada mais dramático do que o comparecimento de Lutero diante do Reichtag de Worms, no dia 18 de abril de 1521”. Afinal? Lutero se retrata? Não. “Talvez”, continua Braudel, “ele tenha até dito, para concluir, o que é o texto citado de ordinário: ‘Não posso fazer de outro modo. Estou aqui de pé, onde me encontro. Que Deus me ajude! Amém’”. O que terá compreendido o Imperador desta cena grandiosa? O que terá ele compreendido desse discurso em latim e em alemão? “Não domina nenhuma dessas duas línguas”. Mas o Imperador redigirá, em francês, o seu veredicto: Lutero estava banido do império.
Essa passagem foi narrada por muitos historiadores, mas nenhum teria assumido, de forma tão aberta, como o faz Fernand Braudel, a dramaticidade que a cena exige. Sabemos que as fronteiras entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional têm se tornado cada vez mais tênues, dados os múltiplos desenvolvimentos dos protocolos da escrita e de suas múltiplas articulações com diferentes saberes e percepções do real. Afinal, o que teria exatamente dito Lutero ao Imperador? Seu conhecimento não alteraria o curso da História? Não, mas certamente a possibilidade de reconstituição de um diálogo agrada aos leitores/espectadores.
O filme Francofonia (2015), de Alexandr Sokurov, nos conduz nesse mesmo jogo entre realidade e ficção. Personagens da história real são postos em cena num diálogo imaginário. É o que faz Ettore Scola, por exemplo, no belo filme Casanova e a Revolução, quando coloca numa mesma diligência, a caminho de Varennes, os “personagens” Restif de laBretonne, Thomas Paine, uma dama de honra de Maria Antonieta junto com seus consortes e, no meio do caminho, o velho Giacomo Casanova. É que a grande História, ensina o sábio diretor, não se faz sem aquela dos indivíduos, com seus sonhos, seus delírios e suas fraquezas.
A proposta de Sokurov, no entanto, vai além. Pois nesse jogo em que se colocam no mesmo plano o real e o imaginário não há lugar para a distinção entre gêneros narrativos. Tampouco há uma linha fronteiriça clara entre o documentário e a ficção. Nesse sentido, a postura do cineasta russo se aproxima muito à do historiador francês, quando este tenta persuadir o leitor/espectador de que naquele embate entre Lutero e Carlos v não havia como traçar uma linha rígida entre o romance e a história. Tanto para o historiador, quanto para o cineasta, o drama é a base de tudo.
O drama é a base de Francofonia. No passado, uma Paris sitiada pelos alemães. O que teria dito o Führer ao Marechal Pétain, após seu triunfo sobre a “cidade luz”? Um diálogo sem importância. A imagem de Hitler na tão sonhada capital da francofonia já diz tudo. Por outro lado, o velho Pétain, que entregou a França sem resistência, apenas confirmou a postura vacilante de um homem sem qualidades. Ao sobrevoar a Paris ocupada, uma imagem se fixa na retina. A do Museu do Louvre. Ali, certamente, vamos encontrar diálogos muito mais instrutivos. Centra-se no Louvre uma questão preliminar: como foi possível salvar da gana nazista aquele rico acervo de arte?
Diferentes temporalidades são evocadas para se desvendar esse mistério. Num passado distante, um museu que se ergue às custas do butim de guerra tomado pelas tropas napoleônicas. A grandeza do museu se faz, então, sobre os escombros das guerras. Mas a francofonia precede a grande obra de Napolão Bonaparte. É preciso recuar um pouco mais e, ao mesmo tempo, buscar além seu grande símbolo. Vemos, então,a Marianne de Delacroix. Ela perambula pelas galerias do Louvre, como em delírio, numa caracterização cênica exagerada, um tanto démodée. O que teria dito Marianne a Napoleão? “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Este é o seu mantra. Mas Napoleão nada escuta. Diálogo? Não, monólogo. Napoleão só olha para si.
No presente, oo diretor tenta entabular um diálogo difícil, entrecortado, pela internet. Do outro lado da linha, um marinheiro lutaem vão para salvar obras de arte que sucumbem, em alto mar,no meio de uma tempestade. Estabelece-se, então, entre o diretor e o marinheiro um elo singular com aquele passado posto em cena. Vejamos. O diretor sugere ao marinheiro que abandone as obras para salvar sua vida. Mas ele resiste. Ao mesmo tempo, o diretor olha para o passado e conta a história da Paris sitiada e se pergunta sobre o destino das obras de um museu. É quando entram em cena o diretor do Louvre, Jacques Jaujart, e o conde Franz Wolff-Metternich, responsável pela Kunstschutz do Reisch, na França. O que teria dito von Metternich, em bom francês, a seu honorável subordinado? Somos então convidados a conhecê-los mais de perto, a ouvi-los, observá-los em suas manobras sutis, as quais, finalmente, salvaguardaram as obras do Louvre. Ao contrário do que se passou noutras partes, elas não se tornaram um butim de guerra alemão. Assim a questão preliminar foi resolvida por uma espécie de pacto entre cavalheiros.
Todavia, o filme não passaria de uma especulação tola da História se não levantasse uma questão mais profunda e atroz para o espectador. Os homens arriscam suas vidas para salvar aquilo que consideram de valor. O nobre, o funcionário e o marinheiro não conheceram barreiras e não impuseram condições para o cumprimento de sua missão civilizatória. A francofonia, sabemos, é a madrinha da razão. Nessa medida, o que nos resta, como no diálogo que abre este texto, são diálogos encenados e imaginados que emergem de situações limítrofes, nas quais um projeto europeu, ou um ideal de civilização europeia está à deriva no mar revolto da história. Ele aparece cindido e dilapidado pela própria irracionalidade humana. Entretanto, não é um francês quem o diz. Tampouco um alemão. Sokurov é um homem russo, amante de suas origens, como bem o demonstrou em seu irretocável Arca Russa. Ele conhece a beleza e seu reverso. E sabe que é preciso atravessar a guerra com a grandeza do povo russo, “como uma quilha corta a onda”. Em Francofonia, a placidez de uma Paris sitiada contrasta com o horror do cerco de Leningrado. Da arte que sucumbe à barbárie. E, como um bom russo, ele não se esquece de que a Europa se voltara em coro contra a Rússia revolucionária. Ironia da história, enquanto Jaujart e von Metternich mergulham num diálogo silencioso e a França silencia em sua batalha surda, Churchill e Stálin, vitoriosos, entabulam diálogos assaz instrutivos. Mas esta é outra história.
Diante de uma civilização à deriva, faz sentido esse pacto que Sokurov firma com a história. E se Francofonia reconstrói um ideal de cultura adormecido, resta saber quantos homens ainda estão prontos a dar sua vida para salvaguardar a Cultura. E nem mencionemos, aqui, os crimes a que temos assistido nas civilizações do Mediterrâneo antigo. Nesse ponto,o diretor não vacila. Como os historiadores, ele olha adiante. Ele sabe que no relativo sucesso dessa reposta repousa a sobrevivência da própria História. E dessa totalidade complexa e variada a que chamamos Civilização.
* Professora da Escola de Comunicação e Artes da USP e colunista de Brasileiros
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