Sob o domínio do mal

Foto: Luiza Sigulem
Foto: Luiza Sigulem

Crises de meia-idade podem ser desastrosas. Ou produtivas. Esse foi o caso de Bernardo Carvalho, um dos melhores escritores brasileiros (e mais premiados: dois Jabuti e um Portugal Telecom) desde que começou a carreira, em 1993, com os contos de Aberração. Completar 50 anos teve o peso de uma condenação, diz hoje, aos 56, na entrevista feita em seu apartamento em São Paulo.

Bloqueio criativo, insatisfação sexual, amorosa, medo da morte, repulsa ao envelhecimento, irritação extrema com a situação do mundo e do País, raiva (“se o PT tivesse isenção absoluta, eu sairia armado na rua”). Tudo isso e mais um pouco serviu de material para Simpatia pelo Demônio, seu 12º romance e certamente um dos mais intensos. À semelhança de outros de seus livros, em especial Nove Noites, trata de uma busca (de identidade, por alguém, por uma razão existencial) que leva o personagem à autodestruição, ou algo próximo disso. A diferença está na estrutura da narrativa, mais fragmentada, com grande flutuação no tempo. Um arranjo a um só tempo engenhoso e visceral, ativado pelo fluxo imprevisível de fatos e sensações, memórias e reflexões.

Simpatia pelo Demônio é, segundo Bernardo, um romance em que o narrador diz muito, interfere, subverte o rumo da leitura. Discorrendo sobre Proust, Tcheckóv, Bataille, Freud, as pinturas de Bosch (que ilustra a capa), ele se coloca numa linha tênue entre o próprio escritor e o personagem central, Rato, funcionário de uma ONG humanitária, como se fosse um papagaio de pirata (“contar uma história é se duplicar”).

Outro “animal” no livro é chihuahua, o mais explícito postulante ao Demônio do título. É um mexicano baixinho (daí o apelido, com minúsculas mesmo), estudante de neurociência em Berlim, que acredita no poder do olhar para vencer a violência. Tem, sim, o poder de seduzir homens como Rato, desesperado por uma experiência renovadora depois de uma vida se escondendo das próprias ambiguidades. O amante manipulador gosta de ser chamado de “raposinha” na cama, mais um termo zoológico, o que faz pensar em cobaias de laboratório – tanto o narcisismo bestial de chihuahua quanto o romantismo suicida de Rato são analisados clinicamente pelo narrador. A experiência sentimental e sexual irá se revelar destrutiva, assim como a missão a que Rato é incumbido, de levar o resgate para libertar o refém de uma facção fundamentalista islâmica. Mas perto do estrago emocional, das obsessões e ciúmes, a tarefa mais claramente perigosa parece libertadora. Como em uma das frases iniciais: “É possível visitar o horror alheio e sair ileso, mas ninguém escapa ao próprio horror”.

 CULTURA!Brasileiros – Fiquei com a sensação de que tem muita raiva nesse livro…

Bernardo Carvalho – É um livro raivoso, né? Pode ter a ver com essa coisa da meia-idade, com esse “foda-se” da meia-idade. Estou com um pouco de medo da recepção, não sei o que vai acontecer. É diferente dos outros. Ao mesmo tempo acho que ele parece com o Nove Noites de um algum jeito, no personagem principal. O primeiro, Aberração, também era super-raivoso, de alguma forma. Em compensação, o Reprodução, o anterior, tem muito humor, embora muita gente não veja.


Mas o Simpatia também é bastante reflexivo…

É um livro que “diz” muito. Isso foi deliberado. Eu queria fazer um romance na contramão dessa regra do realismo – que é mais do romance anglo-saxão -, segundo a qual você não diz, você mostra. Por acaso eu estava lendo Sodoma e Gomorra, do Proust, e ele “diz” o tempo inteiro, mesmo também sendo realismo. No Proust é incrível: você pode ler cem páginas e ser um saco, mas aí vê que tudo aquilo foi uma preparação para chegar na descrição de uma janela de um jeito que ninguém fez na história da humanidade, com uma precisão tal que é como se a gente estivesse descobrindo a janela pela primeira vez. E aí resolvi que queria um narrador que pensa, interfere e reflete o tempo inteiro sobre os personagens, como se fizesse uma análise de caso clínico, um retrato dos personagens de tudo que é lado.

 

Nos seus livros – e este não é exceção – há uma série de temas recorrentes: o personagem central sempre em trânsito, em lugares dis­tantes, por vezes exóticos; a busca por alguém, entre detetivesca e sentimental; a autodestruição e a violência; a reflexão ensaística e a citação de outros autores; a preocupação com os sentidos ocultos da linguagem.

Tem umas obsessões. No caso desse personagem, o Rato, que não é o narrador, mas que é identificado com o narrador, está numa crise de meia-idade muito forte. No meio da vida, ele tenta renovar o amor e o sexo, que estão em falência. Mas tem um germe de morte nessa renovação: ele vai justamente procurar se abrir, ou se tornar vulnerável, para aquilo que é a destruição dele. É como se, nessa tentativa desesperada de renovar a vida pelo amor e a paixão, ele cometesse um suicídio. É um sacrifício, como a prostituta em Rocco e Seus Irmãos, que se entrega à faca do assassino. É por isso que eu acho que tem um contato com o Nove Noites, em que o homem da razão vai para o meio dos índios e lá ele encontra o germe da morte, que não só o contamina como se torna uma espécie de espelho com o qual ele vai se identificar. É como se o objeto da ciência fosse a destruição da ciência. Esse paradoxo da busca por algo vital que ao mesmo tempo te destrói é, para mim, uma obsessão permanente e que está nesses dois personagens, tanto no Rato quanto no antropólogo do Nove Noites. O W.G. Sebald, com quem tenho alguma relação tangencial, ou gostaria de ter, fala num capítulo de Os Anéis de Saturno um negócio sensacional: ele define o ser humano como uma espécie de suicida, alguém que precisa do fogo, elemento fundamental para a sobrevivência, mas para quem esse mesmo fogo é elemento de destruição. E a gente está, de fato, queimando tudo, é fatal, não tem volta, a gente vai destruir o meio ambiente. Tem um negócio suicida que está no âmago da gente e a consciência disso não é suficiente; todo mundo fala em ecologia, que o planeta está acabando, mas a gente não para, é irreversível. A consciência de que eu não posso andar de carro ou de avião não me faz parar de andar de carro ou avião; eu continuo caminhando para o precipício, sabendo que eu vou cair – e vou correndo. É fascinante, mas me faz ter raiva também, me dá vontade de gritar: vocês não estão vendo? O próprio Sebald tem outro ensaio num livro sobre literatura austríaca em que ele escreve que a beleza da literatura é falar sobre o que é irremediável. Tem um desespero, mas ao mesmo tempo é esse desespero que dá vida à literatura. O bom-mocismo americano, por outro lado, diz “ah, esse livro é muito niilista, Beckett é niilista, Thomas Bernhard é niilista…” Não são, é o contrá­­­­­­­rio! Aquilo ali é uma literatura de resistência. Se fossem niilistas, eles se matavam, não escreviam. Escrever aquelas obras demanda um esforço incrível, uma força vital incrível. Se eles escrevessem só sobre flores e alegria, você não veria essa resistência. Ela existe justamente porque esse paradoxo está embutido na obra e na circunstância daquela obra.

 

Essas ambiguidades e essa busca autodestrutiva têm a ver com o título do livro…

Sim, o cara vai procurar a vida e dá com a morte. Mas não dá para não procurar. Eu adoro esse personagem. Ele diz “tudo bem, o amor é uma ilusão, mas a vida sem essa ilusão não me interessa. Eu quero uma vida com amor.” Então ele vai, mas se dá mal. É uma relação adolescente com o mundo, ou uma recriação da adolescência na meia-idade. Ao mesmo tempo ele tem uma clareza clínica do chihuahua, que é uma caricatura do mal, num certo sentido. Como você não está nunca com o chihuahua, ele é um desejo projetado como um processo suicida. O que não faz o Rato deixar de ser vítima e cair na armadilha o tempo inteiro, mesmo com toda essa consciência da situação. É irrefreável.

 

O Rato foi baseado em alguém?

Não necessariamente. Tem a ver com gente que eu conheci, mas também com coisas minhas. Conheci, por exemplo, um sujeito que trabalhava na Ásia, nesses lugares de conflitos absurdos, e que coleciona pulseiras “étnicas”. E eu fiquei fascinado com a ideia desse personagem e essa ambiguidade, porque é um negócio fútil colecionar as pulseiras desses povos que ele está defendendo. Tem um monte de coisas no livro que eu fui pegando ao longo do processo. Eu sou uma esponja, vou incorporando.

 

E como começa esse processo?

Esse, em especial, aconteceu de um jeito estranhíssimo, pois veio em fragmentos. Tem coisa aí que eu escrevi quando estava na Alemanha, em 2011, sendo que eu só comecei a escrever o anterior, o Reprodução, no final da minha estada na Alemanha. As peças do Palhaço (ator, namorado do chihuahua), por exemplo, eram fragmentos que não tinham nada a ver com esse livro (uma delas está no quadro da página seguinte). Escrevi em Berlim, junto com outras coisas. E aí veio a crise da meia-idade, quando fiz 50 anos, essa história da falência do amor, do sexo, seu corpo se desmilinguindo. Mas tem essa coisa estranhíssima que você não quer largar o osso, adoro estar vivo. E você começa a se perguntar: como é que eu vou renovar esse negócio. E aí você está perdido, porque o negócio da renovação é justamente você ir se adaptando à derrocada e não resistir a ela. Eu quis voltar para trás, não queria ficar velho de jeito nenhum (risos). Por exemplo: eu nunca quis ter filho e nesse momento isso pareceu uma necessidade urgente. Fiquei louco, passei um ano querendo ter um filho, de qualquer jeito. Aí desisti. Foi o ápice da crise. Eu nunca tinha sentido isso. E também veio a necessidade de me apaixonar. E aí é qualquer pessoa, porque é uma projeção absoluta. É horrível porque é desestruturador, é que nem a puta do Rocco. Mas o Rato prefere isso a continuar vivendo com racionalidade e moderação e uma distância sábia do mundo. Claro, ele sou eu e não sou eu. O cara é um bobo, né? Mas todas as coisas que ele vai refletindo são as coisas que eu fui vendo ao longo do caminho.

 

A psicanálise parece informar muito o livro, que fala bastante de narcisismo, cita Freud, Melaine Klein. Você faz análise?

Fiz análise dos quatro aos 21 anos e agora de novo, com essa crise. Gosto muito de ler o Freud, mais do que qualquer um em psicanálise. Tem uma espécie de sistema ali que quando você está procurando entender o mundo te dá um acolhimento. Ele dá nome para tudo e, na hora que você dá nome para as coisas, elas ficam mais fáceis de ser enfrentadas, desmistifica. Aí você entende o que está sentindo. Talvez aquilo seja verdade, não sei. O fato é que funciona muito bem: tudo se encaixa, se relaciona e faz sentido. É uma proteção contra a vulnerabilidade. Enquanto você só sente os efeitos, não tem como brigar com aquilo.

 

A antropologia também informa bastante o livro, como em Nove Noites e Mongólia.

Com a antropologia é a mesma coisa. Quando você tem um cara genial como o Lévi-Strauss, é um sistema que explica tudo de uma forma que é incrível. Mas o Proust também faz isso. Então tem uma relação entre esses autores, Freud, Proust e Lévi-Strauss, que me encanta, porque é um sistema que se aplica ao mundo como uma epifania da razão, que explica as coisas, pode ser a janela do Proust, ou o parentesco e o simbólico em Lévi-Strauss. Isso me fascina. O personagem do Nove Noites fura esse sistema e ele próprio morre. O Lévi-Strauss não poderia ser o Rato de jeito nenhum. Ele é o cara que vai ali e faz o que tem de fazer, entende o que tem de entender e sai com o que ele precisava sem que aquilo o deixe vulnerável em coisa alguma. Mas o que me interessa é esse outro personagem, que vai ali e é destruído.

 

Engraçado que o Rato é muito esperto em situações de violência, mas muito tolo no amor.

Exato, ir para a guerra, para ele, é a paz, é um escudo, é uma forma talvez inconsciente de tentar evitar essa vulnerabilidade. Ele escolher trabalhar em zona de conflito é uma forma de tornar a coisa objetiva: ali, a violência está fora e não dentro. Com a violência que está dentro ele não sabe lidar.

 

Outra coisa que chama a atenção no livro é o tempo nada linear da narrativa…

Na última prova descobri que tinha uma incoerência de datas, foi difícil me acertar com os tempos, porque eles vão e voltam, voltam e vão, e de repente você está no mesmo lugar. Nunca tinha sido desse jeito. É um negócio meio proustiano, de não saber onde está o tempo, uma coisa fluida, como se estivesse boiando em um monte de lembranças. Eu queria poder transitar nesses fragmentos, nessa geleia do tempo, em que cada trecho também pudesse ser lido de forma autônoma.

 

Como você definiria seu estilo?     

Acho que tem uma coisa muito seca, a frase é depurada ao mínimo, é uma luta ali dentro, como se eu tivesse vergonha de ter uma cornucópia de recursos, como se usar do floreio fosse falso, como se alguma coisa na pobreza da linguagem me aproximasse da verdade, como se dispor de um leque de possibilidades retóricas me afastasse do que eu quero dizer. Claro que tem um moralismo nesse negócio que talvez seja uma bobagem, mas que está muito entranhado em mim. Uma metáfora me dá vergonha, mas às vezes é lindo, a poesia é feita disso. É a tal da ambiguidade, eu quero fazer uma coisa bonita, mas ao mesmo tempo tem uma sabotagem, pois essa beleza é falsa. É uma linguagem que fica o tempo inteiro nesse dilema, tentando expressar e sabotando essa expressão. Ao mesmo tempo é muito complexa no jeito de narrar, o que talvez se contraponha a isso. Compensar a falta da riqueza de expressão por uma riqueza estrutural, não sei. Talvez isso aconteça inconscientemente. O fato é que a complexidade estrutural não é pensada previamente, ela vai acontecendo.

 

A montagem de BR-3 - Fotos: Divulgação
A montagem de BR-3 – Fotos: Divulgação

Você teve aquela experiência superbacana com o Teatro da Vertigem em BR-3. E tem duas minipeças inseridas no livro. Continua a fazer teatro?

Fiz uma peça que estreou na Bélgica e foi para o Festival de Avignon, com o Teatro da Vertigem. Foi escrita junto com o Reprodução. Era uma encomenda do então diretor do teatro do Odéon em Paris, e o tema era a crise financeira. Chama Dizer o que Você Não Pensa nas Línguas que Você Não Fala. Tem a ver com o fascismo embutido na linguagem, assunto que está no Simpatia também. O Tó (Antônio Araújo, diretor do Vertigem) teve a ideia genial de montar a peça na Bolsa de Valores, no centro de Bruxelas, que é um prédio horrendo construído com o dinheiro do Congo belga, que foi a colonização mais violenta da história. Foi um sucesso relativo, o Libération fez uma entrevista longa comigo. Tem uma coisa talvez um pouco esquemática, porque estava muito colada na realidade, mas eu gosto muito do texto. O BR-3 também teve gente que adorou e gente que odiou.

 

Falando em teatro, achei especialmente interessante a discussão sobre a peça Ivánov, do Tchekhov, que o Rato vai ver com a mulher…

Aquele negócio aconteceu comigo. Eu fui mesmo ver uma montagem do Ivánov. Ele é o sedutor casado com uma mulher que está morrendo e que não dá atenção a ela, porque está apaixonado por outra, jovem e saudável. O médico dá uma lição de moral nele. Quando eu saí da peça me identifiquei com o médico. Aí vi um texto do Tcheckhov dizendo que se alguém se identificar com o médico é porque ele é um fracasso como escritor. Me senti um bobinho. Porque a gente é o Ivánov. Ele é um predador, mas também é uma vítima. Me interessava esse negócio do mal dentro do bem. Já na peça do Vertigem tinha isso de dizer o que você não quer. Você é atravessado por um monte de coisas que não controla. Ninguém é moralmente perfeito. O cara que se põe como representação da moral é sempre um falso, porque todo mundo vai fazer coisa errada na vida, todo mundo está vulnerável ao mal, todo mundo vai sacanear com alguém, mesmo que seja uma pessoa maravilhosa. Pode ser passivamente, involuntariamente. Quando você não está apanhando, está batendo. O político que fala uma coisa impopular no palanque é que é bacana. Aquele que admite ser corruptível e que propõe tentar tornar as coisas incorruptíveis. É difícil, porque você tem de abrir o flanco e dizer: podem atirar.

 

Como foi, afinal, aquela polêmica na última Flip sobre não estar nem aí para o leitor?

Teve muita demagogia e má-fé nesse episódio. Claro, o livro é feito para ser lido, é um jogo. Mas não faço uma literatura que inspire identificação no leitor, é uma literatura que quer jogar justamente com o contrário da identificação. É meio contraditório, como se uma criança fizesse pirraça, mas com o objetivo de seduzir; então é uma literatura que tenta conquistar o leitor, mas pelo contra, pela provocação. E não dá para se preocupar com o que vão pensar. Aposto que para todo escritor é igual, pois senão você não escreve. Imagina se você pensasse: não posso escrever isso porque fulaninho pode ficar ofendido ou porque, sei lá, isso aí contraria não sei quem, ou porque estão esperando que eu escreva um livro igual ao último – meu livro que mais vendeu foi o Nove Noites; se fosse assim, iria passar o resto da vida escrevendo o Nove Noites. É isso que é triste hoje, tem uma retórica da demagogia que é o que funciona, as pessoas não estão a fim de pensar, de enfrentar contradição, de refletir, de entender que o cara não escreve pensando no leitor, ele escreve o que ele pode. Eu não escrevo best-seller porque não posso. Se escrevesse, seria uma tragédia, ficaria ridículo, como eu suponho que, se um escritor best-seller tentasse escrever um livro como os meus, também ficaria muito ruim. Então cada um faz o que pode. Você não é um gênio do mal ou do marketing que pensa: agora vou escrever aquela frase que fará com que 50 mil leitores se apaixonem por mim.

 

Você já disse, inclusive, como outros escritores também, que o leitor é um coautor do livro. No caso de Simpatia pelo Demônio, em que “tudo está dito”, qual o espaço para o leitor?

O espaço do leitor aí é que tem muita ideia lançada no texto e nada acaba se amarrando, as coisas vão se compondo, elas coexistem, não tem uma conclusão. Tem uma armação, mas tem limite.

 

Acredita que a melhor literatura é aquela que deixa as coisas “em aberto”?

O que eu acho que a gente precisa é de uma impressão de que aquilo está aberto para a gente, como leitor; agrada saber que você tem lugar ali dentro, mesmo quando a coisa está totalmente fechada como no Tchekhov; embora ele dê a impressão de simples observação do mundo, o mundo nele está totalmente construído. É ambíguo isso aí. Uma medida para saber se um livro é bom ou não é quando você quer voltar a ele sempre, mesmo se foi você que escreveu esse livro. Tenho vontade de voltar ao Simpatia, por exemplo; tem uma certa riqueza ali, uma complexidade de pontos de vista e de entendimento do mundo que, por mais que tudo esteja sendo dito, continua me dando a possibilidade de descobrir coisas novas. Eu gosto muito desse livro, muito!

Muito da literatura atual combina ficção com ensaio e autobiografia, mas às vezes fica apenas no jogo intelectual, sem se arriscar no que foge ao controle racional. Como você vê isso?

Acho que não interessa ficar girando em falso. Tem um negócio que é o desconhecido, e é isso que todo mundo quer. Você nunca vai chegar lá, mas tem de ter a vontade de chegar, senão não tem ciência, não tem nada no mundo, é mero formalismo. A linguagem do Sebald é totalmente precisa, ensaística, fria até, mas tem uma dor ali, o que ele está contando não é aquilo, é um outro negócio. O Bataille sugere que o livro não pode ser escrito, porque esse negócio é inatingível, está em outro lugar, mas você usa o livro para tentar chegar lá. E todo livro, mesmo sendo do Proust, é uma ferramenta meio canhestra para tentar atingir o inatingível. O bacana dos grandes escritores é a vontade de chegar ao lugar onde você não vai chegar, nem com o livro mais bem escrito do mundo, mais lindo. Por isso é que você se contentar só com entretenimento é uma furada. Só que, nessa tentativa de chegar ao inatingível, tem o risco de o retrospectivo ser mais importante que o prospectivo. Essa é a crise da meia-idade. De repente você fala, putz, é mais fácil administrar o que já passou, o esforço que eu já tive, do que continuar a fazer esforço. Essa é a roubada. O negócio é você falar não, não vou administrar o passado, vou prosseguir. Mas essa passagem é uma dor, porque prosseguir é prosseguir para a morte, se abrir para o risco. Têm escritores excelentes que na velhice fizeram livros que são muito ruins. Mas é lindo, pois eles disseram: não vou parar. É o risco de estar vivo. Ou administro o que eu já fiz, ou me esforço para fazer uma coisa que pode estar sempre aquém do que eu já fiz. Os dois levam à morte, porque você vai se destruir de qualquer jeito. Quer dizer, é vida, mas é morte. O Rato faz isso. Ele diz: eu quero a ilusão do amor, eu quero ser vítima, quero que você me mate. A paixão é cega, é um clichê, mas é verdade: você às vezes se apaixona pelo pior. A coisa do sexo é complicada. As pessoas casadas há 30 anos, elas não transam, não é possível, não acredito (risos).

 

E como você está lidando com a nossa violência institucional?

Eu fiquei histérico, histérico. Sou dessas pessoas que gritam, estou perdendo amigos. Fico louco, dizendo: está querendo me enganar (risos)? Não vai me enganar não! Eu tenho muitos amigos coxinhas. Alguém falou que na minha caderneta só ia sobrar o h, de homecare (risos). Fui almoçar na casa de uma amiga e o irmão dela me disse: quer que eu mostre a panela dela? Era uma panela toda amassada (risos). Realmente é grotesco. Não tenho nada a ver com o PT, mas o negócio é o seguinte: tem um engodo aqui, uma enganação. São dois pesos, duas medidas. Eu sou um cara de esquerda e o que está acontecendo no Brasil é uma vergonha. Não sei se dá para governar limpo com um Congresso desse jeito. O fato é que, uma vez maculado se abriu o flanco. Entrou no mesmo time. Dizem que a Dilma não é feita para a política, o que é um elogio. Pode ser que ela seja burra, incompetente, não sei. Lula e FHC souberam lidar de forma esplêndida com a escrotidão. A Dilma é corajosa, dura na queda e, em termos de dignidade, se sai melhor que qualquer pessoa, mas não foi feita para aquilo, de fato. Votei nela, mas na hora que eu vi a cara do Temer na urna eu falei, “cara, é rezar para Deus”. Se o PT fosse a isenção absoluta, eu estaria armado na rua. Só que eu não vou para a luta armada por quem não é transparente comigo. Houve uma total conspiração para tirar o PT da sala, derrubar o governo, de forma estranhíssima, no mínimo. Só que você quer tomar partido de um lado, e aquele lado não está claro para você. Não dá para se entregar de braços abertos. A situação é constrangedora e a esquerda está perplexa. Se não fosse isso, metade do País estava armada e não tinha impeachment nenhum. O impeachment só aconteceu porque a gente está de boca aberta dizendo: me traíram, tem alguma coisa errada. Agora, aí tem o oportunismo do coxinha, que é insuportável.

Foto: Divulgação
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MONÓLOGO DA MULHER DE BURCA

“A peça que ele acabara de apresentar, coberto com uma burca, no Festival de Mulheres Palhaças de Nova York, era obviamente uma provocação. Quando os holofotes se acenderam, a figura de burca já estava no centro do palco, imóvel, coberta da cabeça aos pés, de modo que não dava para saber que era um homem. Foi só quando começou a falar, com a voz rouca e a solenidade de quem traz más notícias, que os espectadores, entendendo que estavam diante de um travesti, começaram a rir: “Vim aqui porque vi meus irmãos morrerem sob o fogo americano. Não sei se vocês sabem, mas os americanos fizeram uma merda danada no Iraque. Vim aqui porque perdi minha casa, minha família. Vim me vingar. Vim aqui seguindo meu marido, que vai ali na frente. Ele é aquele que tem as pernas tortas e anda como um barril balançando de um lado para o outro. O jeito dele de andar me irrita mais do que qualquer outra coisa. Quero morrer vendo ele andar, para não ter dúvida de que estou indo em boa hora. Não quero me arrepender. Não quero ter dúvida de que é melhor ir embora a continuar com a visão desse espetáculo patético. Não há nada mais irritante do que meu marido andando. Por isso, pedi que fosse na frente. Apelei para a submissão da mulher quando percebi que desta vez ele queria que eu abrisse o caminho. Não! Sempre fui atrás. Não vai ser agora, na reta final, que você vai me forçar a tomar a dianteira. Para o meu marido, toda mulher é uma inimiga em potencial. E uma traidora. Ele temia que eu não explodisse. Rá! Queria ter certeza de que eu não ia abandoná-lo na última hora, deixar ele explodir sozinho. Lá vai ele, como um barril de pólvora balançando de um lado pro outro. Planejamos este dia com muita antecedência. Quer dizer, meu marido planejou, porque eu não penso. Ele me disse que eu estava revoltada com a perda de meus irmãos sob o fogo americano. Meu irmão mais velho me currou quando eu tinha doze anos. O do meio, quando eu tinha quinze, e o menor, que era dois anos mais moço que eu, quando eu tinha vinte. Os três garantiram a meu marido que eu era virgem. Os três deram sua palavra de honra e o ameaçaram de morte se, depois de me desvirginar na noite de núpcias, ele por algum acaso pensasse em me devolver, alegando que tinha sido enganado e que eu não era virgem. Meu marido me disse que o que eu queria era vingar a morte de meus irmãos, mortos sob fogo americano. Que é que eu podia dizer? Ele me mandou repetir para ter certeza de que eu estava morta de raiva. Sim, estou morta de raiva. Vou vingar a morte de meus irmãos, soldados de Deus. Está tudo gravado, pra depois ninguém duvidar. Meu marido é um homem desconfiado. Não queria que depois o acusassem de ter me forçado a fazer o que eu não queria. Na verdade, pra quem olha de fora, tenho mais razão pra querer vingar a morte de meus irmãos do que ele, que é cunhado. E, além do mais, eles o enganaram, ele devia estar contente por terem morrido sob o fogo americano. No vídeo, ele diz que está vingando a morte dos irmãos dele, que caíram sob o fogo americano. Meu marido não tem irmãos, mas ninguém sabe. No vídeo, ele está usando o termo no sentido mais genérico, majestático. Meus irmãos, meu povo. Meu marido sempre teve uma propensão profética. Agora, lá vai ele, como um barril oscilante. Não foi à toa que sugeri uma festa de casamento para ocasião. Tem um peso simbólico, no meu caso. E foi a minha única contribuição. Tudo foi sincronizado para detonarmos nossas bombas ao mesmo tempo. Eu, pra falar a verdade, não aperto esse botão enquanto ele não apertar o dele. Nunca me deixou ir na frente, não vai ser agora que vou me adiantar. Vou deixar ele ir primeiro. Aperto depois.” De repente, ouvia-se uma explosão, mas a mulher continuava ali, impávida, olhando para a plateia: “Meu marido acaba de explodir. E eu de me dar conta que esqueci o detonador no carro. Rá! É o que eles chamam de inconsciente. Eles, os americanos. As pessoas estão correndo como loucas à minha volta. Como vocês já entenderam, este é um lobby de hotel e agora estou correndo com elas, na mesma direção, desenfreada, para fora deste lugar onde um atentado suicida acaba de ocorrer durante uma festa de casamento. Corro como se fosse uma vítima potencial. A única diferença é que estou coberta de bombas.”


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