Mais senzala que casa grande

Ao chegar à prisão da Inspetoria de Ordem Política e Social, no dia 19 de fevereiro de 1935, no centro da capital pernambucana, Recife, o cidadão Gilberto de Mello Freyre já preenchia suas fichas de identificação como “escriptor”. Afinal, o seu livro Casa-Grande & Senzala, lançado em 1933, àquela altura já era um sucesso. Tinha então 34 anos, era solteiro e residia na casa dos pais, o doutor Alfredo Alves Freyre e a senhora Francisca de Mello Freyre, à Avenida Rosa e Silva, 317. O bairro era o Aflitos, de classe média alta. Trazia a “barba feita”, portava bigode “castanho-escuro” e tinha os cabelos “castanhos e lisos”, conforme constou do seu prontuário, onde foram colhidas as digitais dos dedos das mãos esquerda e direita.

Não era alto, nos seus 1,71 m, mas ainda assim, quase franzino, foi fichado com a anotação: “agitador operários”, sem preposição, conforme ficou eternizado no documento localizado pela reportagem da Brasileiros no Arquivo do Estado de Pernambuco. As informações fazem parte do acervo da Polícia Política pernambucana, que o diretor do arquivo, Pedro Moura, orientou para ser organizado e disponibilizado para a consulta pública. “Informações contidas em arquivos públicos são informações históricas e pertencem à sociedade”, diz ele, por trás da mesa de sua sala, de dimensões acanhadas, na sede do arquivo, na Rua Imperador, 371, no centro de Recife.
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O que intriga é que acompanhando a ficha bem conservada, mas obviamente amarelecida pela ação do tempo, há outra, sem timbre ou carimbos. O papel recebeu o título de “ficha individual” – e tem aparência e grafia bem mais atual, onde a profissão de escritor a essa altura tinha perdido o “p” antes do “t”. Nela, consta que o “agitador dos operários” teve o prontuário de nº 2441 “incinerado”. Maiores explicações, para a atitude, não há.

A Brasileiros entrou em contato com a Fundação Gilberto Freyre, responsável pela guarda e conservação do acervo do escritor pernambucano, mas tudo que obteve foi uma resposta enviada por e-mail, com o seguinte teor: “Tentei falar com a responsável pelo acervo de Gilberto Freyre, mas ela está em Portugal, junto com a filha do escritor – Sonia Freyre – em um Colóquio (Identidades, Hibridismos e Tropicalismos). Elas são as duas pessoas que poderiam responder com mais precisão a informação que você está me solicitando. A informação que eu tenho é que, em 1930, Gilberto Freyre acompanhou Estácio Coimbra ao exílio. Não temos nenhuma informação de ele ter sido preso por fazer agitação”. Sibely Marques, Fundação Gilberto Freyre, Rua Dois Irmãos, 320, Apipucos, Recife (PE), Brasil, 52071-440. A revista solicitou aos zeladores da memória do escritor a informação sobre se tinham ou não conhecimento, não só da prisão, ocorrida no verão de 1935, quanto do porquê de os documentos sobre o episódio terem sido incinerados.

Hoje, visto pelo retrovisor, o episódio é prosaico e só enriqueceria a biografia daquele que fez a leitura da casa grande e da senzala, numa época em que as atenções ainda estavam voltadas mais para a primeira do que para a segunda. Mas pode ser também que esse alguém tivesse um olhar zeloso sobre o acontecido e preferiu evitar que olhos bisbilhoteiros descortinassem o que o arquivo detinha.

Nas diversas biografias escritas sobre Gilberto Freyre, constam outras passagens pela polícia, tão heroicas quanto a defesa dos operários de 1935. Uma delas, em 1942, quando denunciou, em artigo publicado no Rio de Janeiro, atividades nazistas e racistas no Brasil, inclusive as de um padre alemão a quem foi confiada, pelo governo do Estado de Pernambuco, a formação de jovens escoteiros. A ordem para a queima do prontuário não parece ter partido do doutor Francisco Freyre, pois a biografia que consta do site da FGF cita que, em 1942, “juntamente com seu pai, reage à prisão, quando levado para a imunda Casa de Detenção do Recife, sendo solto, no dia seguinte, por interferência direta do seu amigo general Góes Monteiro”. Seu pai era educador, juiz de Direito e catedrático de Economia Política da Faculdade de Direito do Recife.

Na época, Gilberto acabava de receber convite da Universidade de Yale para ser professor de Filosofia Social. O convite foi recusado. Na mesma ocasião, foi eleito para o Conselho Consultivo da American Philosophical Association e designado pelo Conselho da Faculdade de Filosofia da Universidade de Buenos Aires “Adscrito Honorário” de Sociologia e eleito membro correspondente da Academia Nacional de História do Equador. Em Buenos Aires, era publicada pela Comisión Revisora de Textos de História y Geografia Americana a primeira edição de Casa-Grande & Senzala em espanhol, com introdução de Ricardo Saenz Hayes. Ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro saía o livro Ingleses (José Olympio) e a segunda edição de Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife.

Uma possível alusão à prisão ocorrida em 1935 consta do verbete Prisões, na biografia disponibilizada pela FGF. A referência é a de um trecho de uma crônica de Rubem Braga, intitulada Recordações Pernambucanas, na qual ele conta como Freyre foi preso pela primeira vez, em 1935: “Gilberto, naquele tempo, andava pelos 35 anos, já publicara Casa-Grande & Senzala e estava acabando de escrever Sobrados e Mucambos, e era solteiro. E eu também era, o Cícero Dias também era. Assim fomos os três, num trenzinho da Great Western, à estação de Prazeres para subir o morro e participar da festa de Nossa Senhora, naquela igreja que domina as colinas de Guararapes, onde brasileiros e holandeses se guerrearam. Usava-se ir às antigas trincheiras apanhar folhas para benzer, pois as plantas dali tinham sido regadas pelo sangue dos heróis. E nas trincheiras aconteciam casos de amor. A certa altura, Gilberto sumiu e, depois de muito procurá-lo, Cícero Dias e eu fomos até a estação: lá estava ele preso por um sargento, pois atentara contra o pudor público fazendo amor com uma jovem mulata no capim de uma trincheira. Custou muita conversa e algum dinheiro, mas libertamos o sociólogo. Coisa que convém referir para que não seja esquecida em sua biografia. Nesses seus maravilhosos 82 anos de idade”.

Edson Nery, um dos estudiosos do autor, põe em dúvida a veracidade do relato. Ele escreve que Gilberto Freyre disse a seu filho, Fernando Freyre, que tal prisão nunca ocorreu. Caso tenha ocorrido, terá sido o típico encontro de um legítimo representante da casa grande (a aristocracia pernambucana) com uma descendente da senzala sobre a qual estendeu sua curiosidade de cientista e autor.

CURIOSIDADES DE INFÂNCIA
Entre outras curiosidades da vida de Gilberto Freyre, que morreu em 1987, estão fatos como a sua fuga de casa, aos 6 anos, para a cidade de Olinda. Seu amor pelo lugar foi demonstrado em 1939, quando escreveu o 2º Guia Prático, Histórico e Sentimental do município.
Chama a atenção o fato de que, ao iniciar seus estudos frequentando o Jardim da Infância do Colégio Americano Gilreath, em 1908, apesar de seu interesse, não conseguia aprender a escrever, fazendo-se notar pelos desenhos. Em 1909, morre a avó materna, que vivia a mimá-lo por supor ser o neto retardado, dada à dificuldade no aprendizado. São dessa fase suas primeiras experiências rurais de menino de engenho, quando passa temporada no Engenho São Severino do Ramo, pertencente a seus parentes. Mais tarde, escreverá sobre essa primeira experiência incluída em Pessoas, Coisas & Animais.


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