Os abrigos das Nações Unidas nas cidades de Muna, Maiduguri e Banki, no nordeste da Nigéria, estão lotados de crianças refugiadas. Elas escaparam do terrorismo propagado pelo grupo jihadista Boko Haram no Chade, área central da África, que faz fronteira com a Líbia, o Sudão, a República Centro-Africana, Camarões e Níger, além da Nigéria. Centenas de mulheres vestidas com coloridos panos africanos e cobertas com o véu islâmico carregam bebês miúdos, a maioria com desnutrição grave – eles estão tão magros que têm dificuldade de sustentar suas pequenas cabeças. Os olhares desesperançados das mães denunciam o grau de esgotamento de quem enfrentou uma longa jornada para, finalmente, chegar a lugar mais seguro.
No final de agosto deste ano, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) publicou um relatório que demonstra que quem mais sofre na fuga do terrorismo e da fome são as crianças. O documento “Children on the move, children left behind” (em português, “crianças em movimento, crianças deixadas para trás”) revela que, desde 2013, cerca de 1,5 milhão de crianças foram obrigadas a deixar suas casas em busca de sobrevivência e liberdade nessa região. Estima-se que mais de 1,1 milhão delas estejam presas pelo grupo extremista. O horror é tamanho que, de acordo com a ONU, o Boko Haram usou nos últimos dois anos 86 crianças em ataques suicidas. Os dados indicam ainda que 475 mil crianças que vivem nessa área africana sofrem de desnutrição severa. É um dos lugares mais miseráveis do mundo. Qualquer um com filhos nessas condições correria para outro lugar sem se importar com os riscos. Nesses casos, perigoso é ficar em casa.
Os vizinhos africanos dos países que fazem fronteira com o Chade, ao contrário da rispidez de lugares como a Hungria, recebem os imigrantes de portas abertas. Maiduguri, cidade com população de um milhão de habitantes, por exemplo, já recebeu mais de 700 mil pessoas deslocadas. “Para mim, foi natural oferecer abrigo”, diz François, um camaronês que vive na região norte do país, no documento da ONU. “Se algum dia eles decidirem ir embora, será escolha deles. Mas se quiserem ficar, minha casa será deles quando eu morrer. Eles são minha família agora.”
Muitos ficam mesmo na África, mas outros seguem a rota do norte em busca de escapar pelo Mar Mediterrâneo, atrás do sonho de mudar de vida na Europa. Existem dois tipos de migrantes que chegam ao Velho Continente: os classificados como “refugiados”, que buscam asilo e escapam de guerras, terrorismo e conflitos políticos, e os que deixam seus países porque a situação é de absoluta miséria. “Os dois grupos estão se movimentando juntos nas mesmas rotas, enfrentando os mesmos contrabandistas e os mesmos riscos”, explica a pesquisadora Arezo Malakooti, especialista em migração e consultora do Centro Global de Pesquisa e Análise sobre Migração, das Nações Unidas. “Eles merecem nossa atenção, além de acesso aos direitos humanos. Todos precisam ser protegidos.”
Mas a legislação da União Europeia se refere apenas aos que se enquadram como refugiados. Para esses, o direito internacional também prevê uma série de princípios legais em acordos como a Convenção da ONU, de 1951, sobre o Estatuto dos Refugiados, a Convenção da Organização da Unidade Africana, de 1969, e a Declaração de Cartagena, de 1984, definindo direitos básicos que os Estados devem prover. Um dos mais importantes é a garantia de que essas pessoas não serão obrigadas a deixar o país, para que não precisem voltar a situações de risco em que a vida e a liberdade estejam ameaçadas.
Os migrantes que fogem da pobreza não estão protegidos por essa legislação internacional. Interpreta-se que esses escolheram deixar suas casas. Mas quem vive em situação de extrema vulnerabilidade, a ponto de arriscar a vida se lançando com a família na travessia mortífera do Mar Mediterrâneo, não teve escolha. Esse grupo acaba negligenciado ao entrar a Europa. “Faltam aos países europeus solidariedade e vontade de dividir responsabilidades”, alerta Malakooti.
Entre as nações que têm acolhido migrantes e refugiados, a Alemanha se destaca com políticas consistentes de integração e estimulando outros países a fazer o mesmo. Por outro lado, o Reino Unido tem políticas cada vez mais restritas. A escalada conservadora em diversos países tende a piorar o que já é muito complicado.
Para receber pessoas que fogem da morte, da guerra e da fome, o mais adequado seria prover não só um lugar para viver, mas também dar condições para que as famílias se estabeleçam com dignidade. “É preciso cuidar da integração, encontrar trabalho, permitir a geração de renda, legalizar documentos, dar acesso à educação para as crianças, ensinando o idioma local”, afirma a pesquisadora.
A Europa tentou por muito tempo parar as migrações e agir nas rotas de acesso ao continente. Mas essas ações foram inócuas. Os números estão aumentando e as causas para tanta fuga continuam existindo.
Para desenhar políticas, é preciso considerar esses motores, que fazem com que milhões de pessoas arrisquem a vida. “Em vez de tentar parar essas pessoas, precisamos regular esse movimento, de modo que a economia europeia também se beneficie da chegada dos imigrantes e refugiados”, aponta Malakooti.
É preciso coragem para fazer a travessia e um alto nível de resiliência para dar conta da batalha que começa ao aportar na Europa. “Nunca desista”, recomendou a nadadora síria Yusra Mardini, da equipe de refugiados, durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. “A gente continua porque tem sonhos.”
Os dados dos últimos dois anos mostram que nunca morreu tanta gente no Mar Mediterrâneo, rota de fuga para 64% dos migrantes do mundo. Até 23 de agosto passado, foram 3.167 mortes ou desaparecimentos, de acordo com a agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). É quase a mesma quantidade de vidas perdidas de todo o ano passado, que contabilizou 3.771 desaparecimentos.
Uma comparação entre o número de migrantes de 2015, de 2016 e o número de mortes revela que o perigo parece ter aumentado. Durante o ano passado, mais de um milhão de pessoas chegaram ao Velho Continente para escapar da guerra, da perseguição política ou da miséria, na expectativa de sobreviver, estabelecendo um novo recorde migratório entre África, Oriente Médio e Europa. De todos os que embarcaram em botes improvisados rumo a um destino incerto ou se arriscaram em rotas internas por terra até a beira do mar, 270.547 lograram atracar na Europa em 2016 (dados de agosto). Menos gente chegou em terra firme, mas o número de mortes no mar se manteve.
Esses índices fazem com que o Mediterrâneo seja a fronteira mais letal do mundo. Às vezes, são centenas que morrem de uma só vez, como no naufrágio que aconteceu na costa italiana em abril do ano passado, quando 800 almas afundaram no mar.
“O número de pessoas que chegam à Europa em busca de refúgio ou migram por questões econômicas está aumentando”, alerta a pesquisadora Malakooti. A Síria é, de longe, o país de onde as pessoas mais fogem. Mais de 30% dos que buscam refúgio na Europa correm da guerra no país, que acontece desde 2011. Os sírios que fugiram para a Europa já somam mais de 900 mil, segundo a Acnur. Depois, vem o Afeganistão, seguido pelo Iraque e a Nigéria.
Os países europeus em que os refugiados mais aportam são Grécia, Itália e Espanha, mas grande parte para no caminho, em países do Oriente Médio. Mais da metade dos que conseguiram chegar ao continente europeu são homens e quase 30%, crianças. Ao aportar em terra, no entanto, outra batalha se inicia: ser aceito no país ou em nações vizinhas, obter condições básicas de vida, incluir as crianças no sistema educacional e de saúde e conseguir um trabalho. Chegar, portanto, é o começo de um novo capítulo da luta pela sobrevivência.
CONTEÚDO!Brasileiros
– Na edição 99, de setembro de 2015, publicamos reportagem que tratava da ascensão do drama dos refugiados no mundo. Naquela ocasião, mais de 20 milhões pessoas viviam em situação de extrema vulnerabilidade. O Brasil, então, recebia mais de 8 mil refugiados, a maioria deles vindos da Síria. Leia a reportagem na íntegra.
– Na edição 106, de maio de 2016, publicamos entrevista exclusiva com o fotojornalista Mauricio Lima, então vencedor do Prêmio Pulitzer – aliás, o primeiro brasileiro a conquistar a honraria – na categoria Fotografia Breaking News, com o russo Sergey Ponomarev, o americano Tyler Hicks e o alemão Daniel Etter, pela série Exodus, realizada em diversos países em conflito e publicada pelo jornal The New York Times. Leia a entrevista na íntegra e veja fotos de Mauricio Lima.
– Leia o artigo Refugiados: responsabilidade humanitária, ética ou cosmética?, de João Alberto Alves Amorim, doutor em Direito Internacional pela USP e professor de Direito Internacional da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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