“Se por um lado, estamos testemunhando o imenso potencial da ciência e tecnologia em avanços na medicina e no atendimento à saúde; no outro, temos sérios desafios em diminuir o impacto de doenças em muitos países e comunidades”. Esse é trecho de prefácio de relatório inédito da Organizações das Nações Unidas, divulgado nesta quarta-feira (14), que detalha a contradição da nossa moderna medicina – a inovação cresce, mas o acesso a ela está longe de caminhar no mesmo ritmo.
O painel foi criado em novembro de 2015. Nele, estão presentes diversos especialistas –entre eles, Celso Amorim, diplomata brasileiro e Ministro da Defesa durante o governo Dilma Rousseff, e Jorge Bermudez, vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz. O documento é o relatório final desse painel, mas a ONU prevê uma convenção sobre o tema antes de 2018 para discutir estratégias de acesso a medicamentos.
O documento trata especificamente do problema mundial de acesso a remédios. A cada três pessoas no planeta, uma não dispõe de medicamentos essenciais – como analgésicos. Quando o assunto é tratamento de ponta, como os do câncer, a conta não fecha nem para os países ricos.
São muitos os desafios destacados pelo texto, que analisou as assimetrias de poder entre instituições, as incoerências na leis de países e os dilemas das diretrizes internacionais de propriedade intelectual e objetivos de saúde pública. Um dos principais aspectos citados no relatório é a necessidade de mais transparência nos diversos estágios de inovação e produção de tecnologia em saúde: dos dados de estudos clínicos ao quanto custaram.
Hoje, muitos preços de medicamentos praticados no mercado são justificados pelo investimento da indústria em pesquisa, mas, quando se faz a conta, os lucros superam em muito os gastos empreendidos. É o caso, por exemplo, dos medicamentos para a Hepatite C, já tratados aqui no Saúde!Brasileiros em diversas reportagens. No Brasil, o tratamento de 12 semanas custa US$ 6.900. A luta para que se diminua o preço do sofosbuvir é mundial. Há uma campanha brasileira para a diminuição dos custos e também uma outra campanha francesa.
Os desequilíbrios da propriedade intelectual
Medicamentos se encontram em meio a um dilema, com leis e regulamentações que não “dialogam”. Enquanto diretrizes voltadas à garantia de saúde não estão preocupadas com redução de tarifas e direitos intelectuais, também leis de propriedade não têm por objetivo a garantia do acesso à saúde. Cabem aos governos, diz o documento, observar essas discrepâncias e tomarem medidas proativas. Também a ONU chama a atenção para a incoerência do setor público, que subsidia pesquisas de laboratórios privados sem a contrapartida em menores preços posteriores.
Ainda, um dos imbróglios em questões de propriedade intelectual é o TRIP (sigla para “Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights”, algo como “Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio”). O acordo foi firmado em 1994, na Rodada do Uruguai, episódio em que também foi criada a Organização Mundial de Comércio. Desde então, o acordo tem sido um problema para governos. Se por um lado, países se valem dele por necessidades econômicas; por outro, também é esse mesmo acordo que cria rombos nos serviços de saúde pública.
A ONU, entretanto, lembra dois artigos do acordo que podem ser usados para flexibilizar direitos para o benefício da saúde pública. O artigo 7, que lembra que a propriedade intelectual deve caminhar com a inovação tecnológica e disseminação de serviços “para o mútuo benefício de produtores e usuários.” E também o artigo 8 que diz que membros do acordo podem “adotar medidas necessárias para proteger a saúde pública e a nutrição.”
De acordo com o relatório, o TRIP também prevê uma série de flexibilidades – dentre elas, a licença compulsória: quando um país produz um genérico do medicamento ou compra um sem a permissão do detentor da patente com a justificativa de proteção à saúde pública.
Isso ocorreu no Brasil, em novembro de 1996, quando o governo brasileiro sancionou lei que possibilitou a distribuição gratuita de medicamentos antirretrovirais no SUS. Os antirretrovirais têm sido objeto de grandes batalhas por aqui–e em 2007, uma portaria declarou o efavirenz, outro medicamento de combate a aids, de interesse público.
O Brasil não conseguia diminuir o preço do medicamento e sabia que na Tailândia ele era oferecido a US$ 0,65, quando aqui o preço fechado com a empresa era de US$ 1,59. Decidiu, então, derrubar a patente.
Medidas como a do Brasil, que foram adotadas no mundo inteiro, levaram à criação da Doha Declaration, em 2001. Ela assegura o direito de membros da Organização Mundial de Comércio de realizar a licença compulsória para alcançar objetivos de saúde pública. “A declaração de Doha assegura que flexibilizações nos acordos de propriedade intelectual [TRIP] não são exceções, mas fazem parte do funcionamento interno desses tratados”, diz o documento da ONU.
O relatório aponta também um desequilíbrio na aplicação dos recursos do TRIP, com países buscando mais a proteção da propriedade e menos a flexibilização para proteger a saúde de suas populações. O documento também denuncia que não raro “governos e corporações ameaçam de forma ilegítima com retaliações econômicas e políticas aqueles que buscam flexibilizações”.
Problema de países pobres e ricos
Um aspecto importante do relatório é que o alto preço de medicamentos tem estrangulado todos os sistemas de saúde – e não só o de países pobres. Nos Estados Unidos, o preço de medicamentos é um problema sério. Segundo o relatório, dos 12 medicamentos aprovados contra o câncer pelo FDA (agência que regula remédios nos EUA) em 2012, 11 tinham custo acima de US$ 100.000 anuais.
Também o relatório destaca frase do Ministério de Relações Exteriores da Holanda que discorre sobre os altos custos para o sistema holandês do medicamento sofosbuvir, para a hepatite C. “ O tratamento custa entre 48.000 e 96.000 euros. A Holanda tem cerca de 200.000 pacientes com a doença. O produtor defende o preço e aponta para o grande benefício gerado para portadores. Mas esse valor torna o sistema de saúde inviável.”
Recomendações da ONU para garantia de acesso
– Governos devem rever o acesso a medicamentos a luz de princípios de direitos humanos com a assistência da ONU. Relatórios nacionais devem ser preparados em intervalos regulares para analisar o status de acesso a medicamentos entre os países membros;
– É necessário fortalecer a coerência entre a propriedade intelectual e o direito à saúde com corpos inter-ministeriais capazes de coordenar leis. A sociedade civil deve ser financiada e exortada a participar para também enviar relatórios sobre acesso à inovação e à saúde;
– Governantes devem exigir que os resultados de testes clínicos sejam publicados de maneira fácil em mecanismos públicos de acesso, como o clinicaltrials.gov, mesmo se os testes forem positivos, negativos, neutros ou inconclusivos;
– Também os custos de todas as etapas do desenvolvimento da pesquisa devem ser disponibilizados, e governos devem exigir sua publicação.
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