O trocadilho adotado por Arismar do Espírito Santo em referência aos seus 60 anos, recém-completados em 9 de julho, dá boas pistas da vocação do músico para encarar a vida com espirituosidade e leveza. Em sua casa na Vila Ida, zona oeste paulistana, acompanhado de sua mulher, Eni Cunha, e de três grandes amigos, a flautista Léa Freire, o maestro Laércio de Freitas e sua mulher, Piki, produtora cultural, como Eni, Arismar recebe nossa reportagem para uma tarde de bate-papo sobre sua trajetória, enquanto Léa, Laércio, Piki e Eni cantarolam e proseiam na cozinha.
Na sala ao lado, apinhada de contrabaixos, uma bateria e um piano de parede Brasil, questionado se o trocadilho atribuído ao seu ingresso na chamada “terceira idade” diz respeito a assertividade de escolhas que vem com o passar dos anos, Arismar faz graça. “Quando chegamos à certeira idade a pontaria fica precisa. Hoje acerto o meio da maçã com muita tranquilidade. Antigamente até acertava, mas sempre tirava o topete da princesa. Na certeira idade o aroma da música fica mais perceptível. Como na cozinha, o tempo dedicado à música nos faz descobrir o valor da maturação, a arte de fazer as coisas com calma.”
Em seis décadas de vida, Arismar acumula mais de 40 anos de dedicação profissional à música. Jornada iniciada em 1973, quando, municiado do que chama de um “kit playmobil” (o figurino composto de paletó e gravata), ele cruzava diariamente a Serra do Mar, partindo, em ônibus da viação Cometa, do litoral de Santos, sua cidade natal, com destino ao centro de São Paulo, onde começou a se apresentar na boate Baiúca, espaço histórico para a música instrumental da capital paulista nos anos 1960 e 70. No comando das baquetas de um trio de samba-jazz formado por ele, o pianista Paulo Roberto, seu irmão, e o contrabaixista Carlinhos Monjardim, Arismar improvisava na Baiúca das 20h às 4h do dia seguinte. Depois, partia para o Igrejinha, outro emblemático clube da época, e estendia a noite em jam sessions que silenciavam às 6 da matina.
Enquanto esmiúça lembranças como essa diante do gravador, ele mantém nos braços um companheiro inseparável, seu violão de sete cordas. Entre uma piada relâmpago e um depoimento extenso, as mãos insistem em procurar acordes, frases e linhas de baixo nas cordas de náilon. A fruição das mãos no violão é acrescida de batuques na caixa acústica do instrumento. Compulsão que, diz Arismar, parece algo que foge do seu controle. “Às vezes coloco um abafador e fico tocando baixinho para não incomodar a Eni e a Maju, porque tem coisas que ficam oscilando na minha cabeça. Sabe quando baixa o caboclo da música?”
Maju, Maria Júlia, de 15 anos, é a caçula dos três filhos do músico. Além dela o trio é completado pela primogênita, a cantora Bia Goes, e o contrabaixista e guitarrista Thiago Espírito Santo – que acabou de ser pai da menina Luiza –, filhos do primeiro casamento de Arismar com a pianista Silvia Goes. O caboclo, esclarece o patriarca, tomou conta dele aos 8 anos de idade. Período em que a influência de sua mãe, Araci, cantora amadora, fundiu-se ao arrebatamento que sentia a cada vez que ia às rodas de samba e de choro na casa do violonista Horácio, bom sujeito, diz ele, marido de uma prima de sua mãe.
“Maria Thereza era uma mulata linda, tinha um cabelão… Ficava ouvindo eles tocarem com todo aquele sentimento. O voo deles era em cima dessa onda linda, brilhante e transparente, de onde nascem as grandes melodias. Foi então que decidi aprender violão. Ficava o tempo todo imitando o que eles faziam. Veio daí meu pé na África. Meu avô (pai de Araci e tio de Maria Thereza) era negro, baiano.”
Nesse período de descobertas, rock e “samba esquema novo” eram as predileções do futuro artista. “Gostava muito de jovem guarda e do Jorge Ben, que era o cara, o Rei do Balanço.” Outra grande influência do adolescente foi o primeiro emprego, em uma livraria de Santos. “Abria a loja às 8 horas, mesmo horário em que começava um programa da Rádio Eldorado. Nessa rotina, criei uma relação afetiva. Toninho Horta, por exemplo, com quem jamais imaginei que depois tocaria, ouvi na livraria pela primeira vez. Hoje, ele é meu irmão.”
Em meio às descobertas, não tardou para que o violão de Arismar fosse trocado profissionalmente pela bateria. A inspiração veio dos tempos em que gostava de ver as jam sessions que o irmão e seus amigos faziam em uma quadra poliesportiva de Santos. “Ficava sentado na escadaria, tomando sol, vendo a vida passar e curtindo o som deles. Aquilo, para mim, era samba, mas depois é que fui saber que era bossa nova, samba-jazz.” Com a saída de Douglas, baterista do combo de Paulo Roberto, Arismar arriscou as primeiras cadências no trio.
Em 1977, depois de quatro anos de idas e vindas, a mudança em definitivo para São Paulo, aos 21 anos, só fez crescer a rede de “irmãos” do multi-instrumentista (Arismar também é baixista, pianista e guitarrista). Entre parcerias autorais e colaborações, ele já esteve ao lado de craques como Dominguinhos, Hermeto Pascoal, Hélio Delmiro, Raul de Souza, Luiz Eça, Heraldo do Monte, Joyce, Paquito D’Rivera, João Donato, Jane Duboc, Roberto Menescal, Leny Andrade, Naná Vasconcelos, George Benson, Sivuca e Cesar Camargo Mariano.
Parceiro de Cesar no Som Três, o contrabaixista Sabá, também integrante do Jongo Trio, que acompanhou Elis Regina no começo de carreira, foi grande influência para a paixão de Arismar pelas quatro cordas graves. Outro impulso foi a proximidade física de sua bateria com o rabecão de Carlinhos Monjardim no diminuto palco do Baiúca: “O baixo acústico dele ficava vibrando o tempo todo ao meu lado. Foi como um chamado. Não pude resistir”, explica. Ao falar novamente do irmão Paulo Roberto, Arismar recupera lembranças do pai, Aristides. “Meu pai era um cara grandão, bem espiritualista, cuidava de um monte de gente. Fiz uma música para ele e dei o nome de Tidinho, seu apelido.”
Dispersando a emotividade da temática familiar, Arismar retoma o gancho da bossa nova para contar mais um caso hilário. “Uma vez vi uns caras tocando violão e sanfona, um lance meio caipira, mas com um motivo bem diferente. Um cara me perguntou: Que som é esse?. Respondi: ‘Isso é roça nova. Isso é muito natural’.”
Ao falar dos dois shows que fez em São Paulo no Sesc Pompeia para celebrar os 60 anos, o veterano repousa o violão e assume tom de voz sereno. “Foram dois dias intensos, dois concertos de puro carinho. Coisa mais linda, aquele é um lugar muito especial para mim. Já toquei naquele palco em shows de choro, de samba, com Hermeto Pascoal, com Roberto Sion.”
A relação com São Paulo, diz Arismar, foi fundamental para a formação de sua personalidade musical. Na metrópole, sua versatilidade se expandiu. “Nas primeiras vezes que vim tocar aqui, quando pediam para eu demonstrar minha música e eu só tocava standards de jazz, o que eu fazia de melhor. Foi em São Paulo que descobri o quanto a música brasileira é expandida. Fico feliz de ver que hoje tem muita gente boa tocando bonito, à vontade, compondo com base na tradição da música instrumental brasileira dos anos 1960 e 70. Gente jovem que defende as coisas que a moçada lá de trás bateu o pé para fazer acontecer. Quarteto Novo, o Sambalanço Trio do Toninho Pinheiro, Sabá e Cesar Camargo Mariano, o Zimbo e o Tamba Trio.” Ao falar do Zimbo, então formado pelo pianista Amilton Godoy, o contrabaixista Luiz Chaves e o baterista Rubinho Barsotti, Arismar comenta. “Uma vez toquei com a bateria do Rubinho e tive a cara de pau de alterar o set dele e tocar com agressividade. Ele me olhou de um jeito que pensei: ‘Isso não vai prestar’.”
Com seis álbuns autorais, um songbook e milhagem de sobra nos estúdios da vida, o contrabaixista também fotografa, pinta e escreve poesia. Planeja em breve lançar um livro de fotos e poemas e outro, em prosa, de memórias. Além disso, continua a arquitetar o sem número de produções que surgem em sua cabeça. Os novos lances incluem um documentário e um programa de TV, intitulado Visita Íntima, baseado em encontros onde pretende registrar perfis informais de grandes nomes da música brasileira e, claro, com eles tirar um som.
Entusiasmado com os planos para o futuro imediato, ele confessa, no entanto, um desejo não realizado. “Tenho o sonho de escrever para orquestra.” Intuitivo, Arismar não lê música, fator que dificulta a realização desse sonho, mas que não o impede de desaguar em estúdios e palcos o manancial de ideias que recebe do “caboclo da música”.
No fim da conversa, sucedida por uma deliciosa sessão de improviso entre Arismar, Léa e Laércio, o músico santista crava um balanço sobre a jornada sexagenária que o levou à certeira idade: “Tenho 43 anos de uma carreira que só me deu alegria. Comecei menor de idade. Tinha 17 anos, e não falei nada para ninguém, senão os caras não iam me deixar trabalhar. Uma vez pintou um cara do Juizado de Menores e eu disse. ‘Putz, tá ruim pro meu lado. Sou arrimo de família’. Ele sabia que meu irmão mais velho era pianista e disse: ‘Sai daqui, moleque! Arrimo de família o cacete!
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Veja a íntegra do programa Instrumental Sesc Brasil, gravado em 2014, com o músico
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