O grupo de investigadores, acusadores e julgadores que conduz a chamada operação Lava-Jato está escrevendo um capítulo histórico na saga da Justiça brasileira.
Seus integrantes compõem provavelmente o conjunto mais harmonioso, mais afinado, mais sedoso de todas as instituições do Direito neste lado do mundo: o que os policiais investigam é aceito integralmente pelos procuradores, que por sua vez se revelam capazes de tamanha acuidade que suas denúncias são agasalhadas pelo julgador em toda sua plenitude, exigindo que se proceda incontinenti às detenções, posto demonstrar-se que todos os denunciados são indivíduos de alta periculosidade, cuja liberdade colocaria em risco o sagrado mister de fazer Justiça.
Nem mesmo experientes juristas, que vivenciam a heterogeneidade das interpretações na vida real, estranham tão maravilhosa proficiência.
A imprensa tradicional, a vetusta guardiã da moral pública, se desdobra em manchetes espantadas com o avanço do rolo compressor sobre aqueles que ousaram desafiar a tradição conservadora.
Se bem não haja espanto, porque os bravos paladinos da Justiça não descuidam de avisar os pauteiros dos principais grupos de comunicação sobre a hora em que serão realizados os atos profiláticos que irão salvar a sociedade brasileira de si mesma: foi assim também com a detenção do ex-ministro Guido Mantega, na quinta-feira (22/9): quando os policiais, armados e protegidos por coletes à prova de balas, partiram em operação militar para a costumeira sessão de execração pública de suspeitos, lá estavam repórteres, produtores e cinegrafistas da rede de televisão que é coautora do roteiro dessa novela.
E os impávidos ministros do Supremo Tribunal Federal não manifestam nenhuma estranheza com o fato de que a cada ação do grupo de justiceiros messiânicos é preciso convocar a força-tarefa midiática.
Mas aconteceu que o alvo da operação policial estava no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, mergulhado no intenso drama familiar causado por uma doença grave de sua esposa. Foi retirado das proximidades da sala de cirurgia para protagonizar o espetáculo vexaminoso que enlameia a memória de Rui Barbosa, de Clóvis Beviláqua, autor do Código Civil brasileiro, Goffredo da Silva Telles Júnior e de outros patriarcas do melhor Direito.
Não foi possível esconder a trapalhada, que até ao mais empedernido dos midiotas deve ter parecido um exagero, uma desumanidade, talvez mais um descomunal abuso de poder nessa sucessão de arbitrariedades que marca a tal operação.
A mídia hegemônica se viu obrigada a admitir que há alguma coisa errada em afastar o ex-ministro de sua esposa no momento em que ela estava sendo encaminhada ao procedimento cirúrgico.
Mas em nenhum momento o noticiário e as análises da mídia tradicional colocaram em dúvida a origem da denúncia que levou à ordem de detenção do ex-ministro. E a decisão nasceu de um mentiroso contumaz, o empresário Eike Batista, que construiu sua fortuna mentindo para investidores, ludibriando credores e engambelando jornalistas deslumbrados.
Em nenhum momento se colocou em dúvida a justeza da delação premiada de uma testemunha que tem muito mais contas a prestar à Justiça.
Não é necessário: até mesmo a estátua de Rui Barbosa no centro de São Paulo sabe que não se trata de um processo judicial, mas de um projeto político.
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