Não sei há quanto tempo não faço uma obra em casa. Obra mesmo. Grande. Um segundo andar. Meu Deus! Nem sabia que iria ter essa coragem! Mas aí vem a filha, os netos…
– Mãe, não posso ficar pagando aluguel! Eu e meus filhos não temos como pagar! A vida não está brincadeira!
Durante uma obra, a gente tem de pensar em O Segredo, aquele livro que ensina as pessoas a serem positivas, mesmo com um martelo batendo na sua cabeça, como Michelangelo na de David em um anúncio de remédio que vi outro dia.
E a serra? O que dizer daquele barulhinho irritante que se ouve nos motores dos dentistas de antigamente, só que muito mais alto? Então, tento ser positiva e olho para o segundo andar. Imagino a varanda pronta, com seus azulejos portugueses que consegui comprar da casa deslumbrante que foi de um amigo de papai e agora vai virar um prédio daqueles em estilo “neo-acredito”…
Estou tentando, finalmente, viver o presente, o que às vezes é engraçado, principalmente quando o Baiano vem me dizer que a casa está “repreta de humildade”.
Os pedreiros são baianos, cearenses, paraenses e trouxeram com eles essa parte de cima do Brasil.
– Por que a senhora não derruba essa árvore (uma mangueira centenária que cobre o meu pátio) e aumenta a casa até o portão? Ia ganhar um espaço grande e não corria o risco de ela cair em cima da casa.
Meu Deus do céu! Não me ponham essas coisas na cabeça! Só quero pensar no espaço que a minha família terá lá em cima, na varanda de azulejos… Tem até um Jesus entre eles, parecido com o São José que existia na parede do jardim da casa onde eu nasci, como o fado cantado por Amália Rodrigues: “Um São José d’azulejos sob um sol de primavera, uma promessa de beijos, dois braços à minha espera…”. Mas não vou voltar ao passado agora, então fico planejando o futuro da casa. Como será sua decoração, o que fica em cima, o que fica em baixo. Penso no dinheiro, me assusto um pouco, mas procuro ser otimista e imagino os trabalhos dando certo, a casa novinha, sem “humildade”, bem arrogante e colorida.
Então, já de noite, ligo a TV no Canal Brasil, no qual sou meio viciada. Vejo um documentário sobre o Festival da Canção de antigamente, no ano seguinte daquele em que Chico Buarque ganhou com A Banda.
Foi aquele em que Sergio Ricardo jogou o violão na plateia. Que maravilha de festival, com toda a Tropicália começando, Caetano, Gil, Nara Leão, Edu Lobo, Roberto Carlos, todos semidesconhecidos, uma garotada fumando adoidado com milhões de pessoas conversando no palco. Grupos que hoje são famosíssimos batendo papo. E Os Mutantes, maravilhosos, tocando junto com outro grupo que não me lembro o nome. Cidinha Campos, uma menina, entrevistando os cantores. Quando perguntaram quem era aquela moça loura que cantava com os Mutantes, ela respondeu:
– Acho que o nome dela é Rita.
O detalhe é que todos fumavam no palco, inclusive um apresentador que jogava a fumaça na cara do entrevistado.
A maravilha do documentário é que os artistas que hoje são os mais famosos do Brasil dão depoimentos sobre a época e contam histórias engraçadas.
Quando Edu Lobo foi chamado para cantar Ponteio, cuja letra dizia: “Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar…”, Roberto Carlos comentou com os amigos:
– Tá vendo? Se o Sergio Ricardo não tivesse jogado a viola fora, o cara não tava passando essa necessidade agora!
Com viola ou sem viola, passando necessidade ou não, Ponteio ganhou o Festival da Canção de 1967. E eu fui dormir cedo para ser acordada às sete e meia por Michelangelo martelando a minha cabeça como a de David.
*É atriz, atuou em mais de 50 filmes, 15 telenovelas e minisséries. Também é cronista do Jornal do Brasil – onde ainda tem uma coluna na versão on line. Seus textos foram compilados em O Quebra-Cabeças, publicado pela Imprensa Oficial, em 2005.
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