O adorno como arma da resistência indígena

Foto de Paulo Nazareth da série "Genocide in America" (2012-2015)
Foto de Paulo Nazareth da série “Genocide in America” (2012-2015)

“Eu creio que nenhum dos senhores nunca poderia apontar atos ou atitudes da gente indígena do Brasil que colocaram em risco seja a vida, seja o patrimônio de qualquer pessoa, de qualquer grupo humano neste País. E hoje nós somos alvo de uma agressão que pretende atingir na essência a nossa fé, a nossa confiança de que ainda existe dignidade, de que ainda é possível construir uma sociedade que sabe respeitar os mais fracos, que sabe respeitar aqueles que não têm o dinheiro para manter uma campanha incessante de difamação… Que saiba respeitar um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas”, afirmou, em discurso na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, o líder indígena Ailton Krenak, ao mesmo tempo que pintava o próprio rosto com tinta preta de jenipapo. “Um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como um povo que é inimigo dos interesses do Brasil, dos interesses da nação, e que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil. E os senhores são testemunha disso”, concluiu Krenak, já com o rosto inteiro pintado. Tão impactante quanto a fala, o gesto de tingir a própria face explicitava que a resistência indígena não se dá apenas no discurso, mas, principalmente, na persistência de suas práticas culturais, incluindo aí a pintura corporal e o uso dos mais variados adornos e artefatos.

O breve e memorável discurso de Krenak está apresentado em um vídeo de pouco mais de três minutos, na exposição Adornos do Brasil Indígena: Resistências Contemporâneas, em cartaz no Sesc Pinheiros até 8 de janeiro de 2017. Concebida a partir de uma parceria entre o Sesc e o MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP) e com curadoria partilhada entre Moacir dos Anjos e a equipe do museu, a mostra coloca em diálogo adornos indígenas de diferentes épocas e trabalhos de importantes artistas contemporâneos. Fundamentada na percepção do adorno enquanto elemento de resistência e luta pelo direito à identidade – não apenas como objeto de embelezamento ou enfeite –, a exposição propõe um diálogo entre o acervo etnológico do MAE e a produção de artistas que, mesmo sem origem indígena, tratam de temas caros a estes povos. “A ideia não é colocar um universo simbólico submetido ou reduzido ao outro. Os artistas contemporâneos não estão ali simplesmente para espelhar questões trazidas pelos artefatos indígenas, nem estão ali para fazer um discurso completamente paralelo, afastado do acervo. Nossa tentativa foi justamente criar uma exposição onde estes dois universos estão coexistindo no mesmo espaço e criando aproximações, distanciamentos, atritos, acolhimentos e tensões, sempre dando ênfase à questão da resistência”, explica Dos Anjos.

Ailton Krenak na Assembleia Constituinte de 1987. Foto: Reprodução YouTube
Ailton Krenak na Assembleia Nacional Constituinte de 1987. Foto: Reprodução YouTube

Com trabalhos – entre fotografias, pinturas, vídeos e desenhos – de Ailton Krenak, Anna Bella Geiger, Bené Fonteles, Carlos Vergara, Claudia Andujar, Delson Uchôa, Fred Jordão, Lygia Pape, Nunca, Paulo Nazareth e Thiago Martins de Melo, além de adornos e artefatos de 23 populações indígenas brasileiras – dos Guarani do Sul aos Yanomami do Norte, dos Canela do Nordeste aos Bororo do Centro-Oeste –, a mostra é dividida em três eixos: o corpo como suporte de resistência; os testemunhos de resistência; as celebrações como resistência. Segundo o curador, ao colocar lado a lado produções nativas e de artistas contemporâneos, a exposição ajuda também a quebrar ideias naturalizadas e pensamentos estanques. “O conceito de arte, assim como o de estética, é estranho à produção indígena, e nesse sentido temos que ter muito cuidado quando tratamos dela. Desse modo, colocar a arte contemporânea e os adornos juntos pode nos ajudar a perceber que esses conceitos não são naturais, são construídos. Nos ajuda a questionar por que uma coisa é considerada arte e outra não, por exemplo. Ou mesmo pensar se é possível estabelecer outras formas ou conceitos em que essas coisas estejam juntas: como é que podemos entender uma obra fotográfica e uma pintura corporal no mesmo patamar conceitual?”, diz Dos Anjos. “Por outro lado, é preciso todo o cuidado para não tratar como se fosse tudo a mesma coisa, como se pudesse ser tudo reduzido ao conceito de arte ou de artefato.”

Para o curador, a fala de Ailton Krenak apresentada no vídeo tem um lugar especial na mostra justamente por ser mais que um discurso político. “É muito interessante como aquela fala é feita, porque está justamente no limite entre a pintura indígena como resistência e a performance artística.” É, também, um dos trabalhos que explicitam o quanto é preciso ouvir e aprender com os povos indígenas “As populações ameríndias podem nos ensinar a viver no futuro porque elas já passaram pelo fim do mundo”, diz Dos Anjos, remetendo a conceitos discutidos por “antropólogos como Eduardo Viveiros de Castro. “Quer dizer, o mundo deles já caiu. Então eles aprenderam a viver após uma hecatombe, digamos assim, que sofreram quando foram colonizados. Estão vivendo o ‘pós-fim do mundo’, e criaram formas de se adaptar a essa situação e de se inscrever nesse mundo pós-apocalíptico. Então temos muito a aprender com os índios, em como vivem, preservam…”.

Adorno que integra a exposição
Adorno que integra a exposição

Sobre a crescente atenção dada pela arte contemporânea às temáticas indígenas – algo notável em exposições, bienais e trabalhos de artistas –, Dos Anjos acredita que o fato se relaciona à urgência de tratar a questão em tempos de ataque constante aos direitos dessas populações no Brasil. “Não é à toa que a exposição tem esse caráter de resistência”, afirma. Para tratar do tema, além de todos os adornos e trabalhos artísticos expostos, três vídeos na mostra apresentam de forma mais didática tanto aspectos relevantes da cultura indígena quanto notícias sobre a situação, por exemplo, dos Guarani Kaiowá, um dos povos mais atacados no País. “Na verdade, a escolha do caminho de desenvolvimento econômico que foi feita no Brasil conflita, no limite, com a própria existência dos territórios indígenas e, portanto, com a existência dos povos indígenas. A sua existência conflita com esse desenvolvimento fundado no agronegócio, na mineração e na produção agropecuária para exportação que, no limite, vai passar por cima dos territórios e direitos indígenas”, diz o curador.

Dos Anjos afirma também que, apesar de a discussão estar crescendo no meio da arte contemporânea, ela ainda é tímida diante da gravidade da situação. “Você conta nos dedos, no universo dos artistas reconhecidos, aqueles que tratam dessa questão. Ainda estamos longe de ter esse assunto colocado com o destaque que deveria.” Exposições como A Queda do Céu (Paço das Artes, 2015), Variações do Corpo Selvagem: Eduardo Viveiros de Castro (Sesc Ipiranga, 2015), Histórias Mestiças (Instituto Tomie Ohtake, 2015), além das duas últimas bienais de São Paulo (a 31a edição, em 2014, e a 32a, atualmente em cartaz), assim como Adornos do Brasil Indígena: Resistências Contemporâneas, são algumas dessas mostras que têm dado visibilidade à pauta indígena, seja através de trabalhos dos próprios índios, seja de artistas contemporâneos.

“É importante enfatizar que a produção desses artistas não pode pretender falar em nome daqueles que sofrem a violência, porque fazer isso seria se apropriar inclusive da dor do outro. Esse outro tem que ter a possibilidade de anunciar sua própria fala, sua própria narrativa”, diz Dos Anjos. “Então acho fundamental considerar esta autorrepresentação das próprias populações excluídas, mas também acho importante destacar uma produção que busca elaborar questões sobre elas. No meio artístico, em que pouco se fala de exclusão, desigualdade, racismo, homofobia, machismo e genocídio das populações indígenas, me interessa falar dessas estratégias contra-hegemônicas. E esses laços de solidariedade que têm sido elaborados entre artistas e as vítimas desses processos excludentes no Brasil comportam mal-entendidos e conflitos, claro, mas são importantes, inclusive, para que os ‘marginalizados’ alcancem o protagonismo necessário para demandar aquilo que lhes cabe.” Voltando mais uma vez ao discurso de Krenak, feito em 1987 e ainda tão atual, Dos Anjos conclui: “Acho que o fundamental nessa fala, assim como na exposição toda, é a defesa pelo direito à diversidade. Sujeitos diversos no mundo têm o direito a falar e ser escutados, a viver do modo como escolherem viver e a serem respeitados desta maneira”.

Serviço – Adornos do Brasil Indígena: Resistências Contemporâneas
Até 8 de janeiro
Sesc Pinheiros – Rua Paes Leme, 195
11 3095.9400


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