Crítica – Los Carpinteros, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil

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“Dos camas” (2008), Los Carpinteros

Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964), no Brasil chamado Dr. Fantástico ou Como Aprendi a Parar de me Preocupar e Amar a Bomba, dirigido por Stanley Kubric, é uma tragicomédia que explora a ambiguidade das relações Estados Unidos e União Soviética a partir da Guerra Fria. A tradução em português do nome do protagonista, Dr. Fantástico, nem de longe se aproxima do emblemático sentido do título original – strangelove –, no qual desejo e suspeita marcam as conexões indissociáveis entre os dois países, mas também entre categorias opostas que organizavam a compreensão do período, como bomba e paz, capitalismo e comunismo, Oriente e Ocidente, trabalho e consumo, entre outras. Ainda que a Guerra Fria tenha terminado oficialmente no início dos anos 1990 e a cena econômica e cultural tenha se alterado drasticamente desde aquela década, a sombra de Dr. Strangelove [1] continua a cobrir muitas das perspectivas e ações no campo da cultura e da arte, sem que, na maioria das vezes, seja percebida por parte dos autores, sua matriz geradora.

Esse não é o caso da dupla de artistas – Dagoberto Rodríguez e Marco Castillo [2] – em cartaz com a exposição Los Carpinteros: Objeto Vital, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), São Paulo, na qual o que se observa é exatamente o que, no período da Guerra Fria, foi muito bem percebido pelos governantes norte-americanos: o território privilegiado da guerra é o campo da indústria cultural que pode articular de forma estratégica, às vezes sutil e indireta, desejos, antagonismos e consumos. Com curadoria de Rodolfo de Athayde, a mostra é dividida em três blocos cronológicos/conceituais: Objeto de Ofício, Objeto Possuído e Espaço Objeto, demonstrando que a produção de Los Carpinteros pode ser lida à luz das relações geopolíticas dos blocos da Cortina de Ferro e seus desdobramentos posteriores, hoje encampados pelas políticas neoliberais, pelos esforços intelectuais e civis para garantias legais das diferenças e pelas inúmeras releituras das ideologias vigentes naquele período. Essa divisão em blocos promovida pela curadoria permite acompanhar de forma clara a passagem de uma produção que estabelece um forte vínculo com a origem e influência socialista de matriz soviética para um mergulho total nas relações produtivas e de consumo capitalistas, sem deixar de lado seu contexto inicial.

 

Em Objeto de Ofício, primeira parte da mostra, estão presentes as origens do grupo na Faculdade de Artes Plásticas do Instituto Superior de Arte de Havana (Cuba) e, por isso mesmo, é o momento de maior estranhamento para o visitante. Os trabalhos expostos provocam a percepção de uma distância imposta pelas histórias, territórios e culturas, tais como o realismo socialista do stalinismo – presente, por exemplo, em Havana Country Club (1994); a precariedade material pela qual passava a sociedade cubana – inferida em La Nieve (1994); a formação soviética nas escolas e a influência tanto das vanguardas heroicas e históricas europeias construtivistas quanto do exercício conceitual. Já Objeto Possuído e Espaço Objeto indicam um roteiro que vai da Cuba em crise pela fragmentação da União Soviética e consequente desaparecimento de uma fonte financeira e moral até o momento atual no qual a arquitetura do poder e o poder da arquitetura ocupam o interesse dos artistas. São segmentos que evocam as relações dos trabalhos exibidos com a produção de Marcel Duchamp, também com o Surrealismo e a Arte Pop, pela presença dos jogos de palavras; pela fetichização dos objetos/mercadorias, que têm vida própria e se rebelam contra o sentido cristalizado e estabelecido; pela ampliação para o espaço; e pelo exame das práticas de arquitetura herdadas da influência soviética ou modernista. Em cada uma das peças percebe-se o viés sarcástico e contraditório sobre o passado da utopia não realizada, ora nas estruturas sem serventia, em construções revestidas pelo design de superfície, ora nos projetos que indicam o estado de abandono do projeto social. As mesmas características – sarcasmo e contradição – resultam em desenhos, pinturas e objetos nos quais Los Carpinteros observam e apontam para o desejo e distanciamento provocados pelas mercadorias.

Se existe um eixo forte pelo qual se pauta a proposta temática da dupla, talvez esse seja o da desmistificação dos monumentos, compreendidos em sua forma simbólica e material. De forma obsessiva e irônica, dirigem suas ações para a desconstrução dos acervos de perpetuação de memórias presentes no cotidiano, na arte, e na suposta história universal. O que é Podium (mobília em papelão ondulado e velcro, 2008) senão, e ao mesmo tempo, um comentário debochado que junta precariedade material, Olimpíadas (um indício da glória cubana), as longas dissertações públicas de Fidel Castro e os trabalhos laudatórios de parlatórios para Lenin, de 1920, idealizados por El Lissitisky? Essa marca de Los Carpinteros se presentifica em inúmeras maquetes e projetos de monumentos apresentados na exposição (e em sua produção, de forma geral), que enfatizam as relações com o ícone dessa categoria artística, a Maquete para Monumento à 3ª Internacional, de Vladimir Tatlin (1920), ao mesmo tempo uma promessa e, vista à distância, um mausoléu, um túmulo.

Ao final, o roteiro de visitação entrega ao visitante uma declaração amarga e tragicômica de desejos de sociedade nunca realizados na vanguarda construtiva e, por extensão, do próprio projeto socialista. Mas, como indicado no filme de Kubric e como nas próprias análises militares sobre a Guerra Fria, a destruição de um é o fim do outro, e novas formulações são bem-vindas para pensar a vida e as sociedades.

[1] Dr. Strangelove, cientista e nazista, era um dos personagens e foi interpretado pelo ator britânico Peter Sellers, que projetava um ataque nuclear.

[2] Iniciado como dupla (Alexandre Arrechea e Dagoberto Rodríguez), transforma-se em trio com a entrada de Marco Castillo, e atualmente é de novo uma dupla, constituída por Rodriguéz e Castillo.

Serviço – Los Carpinteros
Até 12/10
Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo
R. Álvares Penteado, 112 – Centro, São Paulo – SP
(11) 3113-3651


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