O corpo indomado como resistência

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“Interior de São Paulo” (1970), fotografia de Otto Stupakoff

A origem da palavra “histeria”, em grego, remete ao útero. Nos escritos de Hipócrates, tido como pai da medicina, a histeria era caracterizada como uma doença que se manifestava apenas nas mulheres, sendo causada pelos movimentos constantes do útero. A condição feminina era, dessa forma, associada à errância e instabilidade. Séculos mais tarde, Freud criaria a psicanálise a partir do processo de escuta de mulheres hoje famosas, como a jovem Anna O, consideradas histéricas. Influenciados pelas ideias de Freud, os surrealistas André Breton e Luis Aragon também escreveram sobre o fenômeno, porém a partir de uma visão oposta. Para eles, a histeria não era associada a um estado patológico, mas a um meio supremo de expressão. O corpo retorcido e até mesmo convulsivo dessas mulheres seria, portanto, um símbolo de liberdade. É essa perspectiva, adotada pelos surrealistas, que norteia a mostra O Útero do mundo, da curadora Veronica Stigger, em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

A exposição apresenta cerca de 280 obras do acervo do museu, de nomes como Leonilson, Claudia Andujar, Flávio de Carvalho, Sandra Cinto, Antonio Dias, Hudinilson Jr., Almir Mavignier, Cildo Meireles, Vik Muniz, Mira Schendel e Tunga. Em seu conjunto, elas revelam o poder de criação desses corpos desvairados, que fogem dos padrões. O fio condutor, que estabelece os diálogos entre os trabalhos, é a obra da escritora Clarice Lispector, conhecida por criar personagens de perfil psicológico complexo. A curadora comenta o processo de concepção da mostra: “Em 2013, fiz uma exposição no MAM sobre a obra da artista Maria Martins. Desde essa época, já tinha um interesse pelas transformação do corpo humano em alguma outra coisa. Pesquisando o acervo do museu, percebi algumas recorrências. Havia, por exemplo, muitas referências ao grito, como forma de sair de si. Foi então que lembrei do trecho do Paixão Segundo G.H, no qual a Clarice fala sobre o grito ancestral que há dentro dela. A partir desse momento, ela se tornou o fio condutor da exposição”, conta. Para Stigger, a obra da escritora constitui uma ode ao impulso histérico: “Ela organizou um pensamento simultâneo da forma artística e do corpo humano como lugares de êxtase e de saída das ideias convencionais”, afirma.

A exposição é dividida em três eixos baseados nos textos da escritora: Grito ancestral, Montagem humana e Vida primária. Na primeira parte, o público é logo confrontado com a série Demônios, Espelhos e Máscaras Celestiais, do artista Artur Omar. São três autorretratos nos quais o artista aparece urrando, em estado de transe. Ao lado dessa série, há uma fotografia em preto e branco de Otto Stupakoff. Intitulada Ansiedade, a imagem mostra uma mulher de boca fechada, cuja mão está em volta do pescoço, impedindo a saída da fala. Para a curadora, o grito é um ato extremo que é visto como indício de loucura: “Em  A Paixão Segundo G.H, quando a protagonista encontra a barata, o que ela mais deseja é gritar. Porém, ela não o faz porque aqueles que gritavam eram levados embora. No fundo, bradar significa fugir do controle, colocando para fora aquilo que está reprimido, e isso incomoda. Afinal, ninguém está esperando que alguém grite. Imagina se de repente eu começasse a berrar aqui no meio da entrevista? Seria bem maluco”, brinca.

Já no segundo eixo, o maior da mostra, são exibidas obras que revelam esse corpo que se desvia dos padrões.  Na fotografia  Luanda´s feet, por exemplo, a artista Rosangela Rennó retrata um pé de um homem negro ao lado de uma perna de pau. Já o trabalho de Nazareth Pacheco traz radiografias que mostram alterações congênitas, chamando atenção para aquilo que é considerado “anormal”. Pinturas de Flávio de Carvalho, esculturas de Tunga, dentre outros trabalhos, também revelam esse processo de fragmentação do eu. “Ao se contraporem aos estereótipos, esses corpos acabam se tornando livres, criando outros caminhos e categorias. Trata-se de uma ‘refabricação’ dos organismos, que, ao gritarem e se contorcerem, perdem seus contornos pré-definidos”, afirma a curadora. Ela cita como exemplo a série de  fotografias de Marcia Xavier, apresentada na mostra. São imagens que retratam o pescoço e a perna de uma mulher a partir de perspectivas inusitadas, como aponta Stigger: “No trabalho da Marcia, ela pega exatamente a mesma parte do corpo e remonta de tal forma que uma perna, por exemplo, perde a forma como ela era montada originalmente”.

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“Fotolíngua”, Lia Chaia. Foto: Divulgação

Intitulada Vida Primária, a terceira e última parte da mostra aborda as conexões entre o homem e a natureza, trazendo obras que retratam formas de vida elementares, como fungos e flores. A abordagem dessa seção dialoga com a proposta ecológica da 32ª Bienal de São Paulo, tendo por sinal uma escultura de Frans Krajcberg, artista que é um dos destaques desta Bienal. Stigger conta que, nesse último momento da exposição, os trabalhos falam de um novo corpo que, depois de se libertar das amarras sociais, volta a um estado primitivo de comunhão com a natureza. Nomes como Dora Longo Bahia, Thiago Rocha Pitta e Alex Flemming compõem essa última seção. 

Com obras de artistas consagrados e referências a uma das maiores escritoras brasileiras, O Útero do Mundo apresenta um amplo panorama do acervo do MAM. Em cartaz até 18 de dezembro, a mostra constitui um elogio à loucura, ilustrando esse corpo indomável que, embora reprimido pela humanidade, manifesta-se no descontrole, na histeria e na impulsividade.

Serviço – O Útero do Mundo
Até 18 de dezembro
Museu de Arte Moderna de São Paulo
Av. Pedro Álvares Cabral, 0 – Parque Ibirapuera
11 5085-1140


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