O que há de queer na incerteza?

Frame do filme “Heaven” (2016) de Luiz Roque


Num momento político conturbado
e em que o País é assaltado pela franca escalada de forças conservadoras – cujos esforços voltam-se para o tolhimento da subjetividade em prol de normatizações –, é notável que o projeto curatorial da 32a Bienal de São Paulo tome como gatilho conceitual a ideia de incerteza. Quando direitos e garantias individuais vão perdendo espaço para agendas retrógradas e opressoras, é urgente que se abra campo para o incerto.

Se o conceito é demasiadamente aberto – daqui ainda é difícil não enxergá-lo dentro de um sistema genérico que inclui diversas grandes mostras dos últimos anos –, em alguns pontos de tensão pode revelar grande potência. Assim como vimos na edição anterior, essa também terá obras que se relacionam com a temática queer e seus desdobramentos. Aqui será possível, portanto, catapultar ideias que promovem inclusão e diversidade, e instigam novas e livres maneiras de nos entendermos.

 Entre os artistas que se inclinam diretamente sobre o tema estão o colombiano Carlos Motta; a turca Güne Terkol; o dinamarquês Henrik Olesen; a chilena Katia Sepúlveda; o brasileiro Luiz Roque; e o americano Lyle Ashton Harris. Trata-se de um grupo heterogêneo, proveniente de diferentes regiões do mundo, e com pesquisas e práticas distintas. O que se pode esperar, a princípio, é uma associação de trabalhos que traçam uma complexa teia de interesses.

Motta, por exemplo, apresentará a série Em Direção a uma Historiografia Homoerótica, composta por minúsculas esculturas douradas instaladas em vitrines semelhantes àquelas usadas no Museu do Ouro em Bogotá. Baseadas em artefatos da cultura pré-hispânica, o trabalho convoca um olhar cuidadoso, e constrói, de forma espirituosa e provocativa, imagens que representam o erotismo entre corpos masculinos. É como se a força criativa de outras épocas fosse manejada para fazer correr contra narrativas, expondo histórias e identidades que nem sempre podem se manifestar livremente nas superfícies sociais. Cria assim uma arqueologia ao avesso, para tomar como objeto de estudo um ponto fervente em disputas políticas atuais. Esta estratégia é eficiente na medida em que aponta a total possibilidade de qualquer forma de afeto existir ao longo da história da humanidade, e deixa claro como entendimentos podem se transformar, indo e vindo ao longo dos séculos. Neste jogo, em que já não é mais possível enxergar a história de modo linear, mas somente por meio de anacronias, põem-se em cheque noções básicas sobre como sistematizamos nossas práticas sociais no tempo.

Já Katia Sepúlveda e Henrik Olesen mostrarão trabalhos com colagens. No caso da primeira serão 250 peças em papel. Com verve anarquista e feminista, a série é como um enorme fluxo de pensamentos e referências que lidam com o emaranhado do caótico cenário cultural do século XX. Já Olesen participará com um projeto comissionado: serão painéis compostos por séries de figuras que abordam, de distintos modos, tópicos específicos. A partir de uma intensa pesquisa que atravessa a história da produção da imagem, também são destrinchadas construções sociais que representam, compartimentam e normatizam compreensões. Em comum, ambos se interessam sobretudo pelas relações entre cultura de massa e questões de identidade de gênero e sexualidade.

Parece merecer maior atenção o filme de Luiz Roque realizado especificamente para a exposição. Com o sugestivo título de Heaven (paraíso, em tradução do inglês), a narrativa se passa no ano de 2080, quando o Epstein-Barr, vírus da mononucleose, se transforma numa versão muito mais agressiva, ligada a doenças de imunodeficiência. Não por acaso, a história se passa 100 anos após o início da década de 80, marcada pela descoberta da Aids, que logo ganhou os noticiários e o imaginário social global em definitivo. No enredo, a nova epidemia é transmitida pela saliva e atinge principalmente a comunidade transexual, que, além de se ver diante do grave problema, tem que enfrentar pressões públicas. Em dado momento, um burocrata ligado à área de saúde aponta que o vírus teria se modificado pela influência de um hormônio utilizado por pessoas trans e acusa publicamente um “paciente zero” de ter sido o deflagrador da doença. Entretanto, não leva em conta que o hormônio era distribuído à população pelo próprio governo. Naturalmente, surge um tramado sociopolítico complexo e conturbado.

Com aproximadamente dez minutos, a obra funcionará como espécie de continuação de um trabalho anterior, Ano Branco, que se passa em 2030, e tem como ponto nuclear a transformação do corpo trans em um contexto futurístico. Com a participação, entre outros, das atrizes transexuais Glamour Garcia, Gretta Star, Latoya de Souza e Mavi Veloso, Heaven comenta o controle do estado sobre os corpos, numa condição em que fronteiras – geopolíticas e burocráticas – significam necessariamente a indistinção violenta entre vida biológica e existência política. Atraído fundamentalmente pelo potencial da imagem, o artista combina a natureza da ficção científica ­– como dispositivo de ventilação de hipóteses – com os artifícios da linguagem cinematográfica para trazer à tona tensões comuns aos dias de hoje. Se Motta, Sepúlveda e Olsen partem de eventos passados para buscar compreender o espírito do nosso tempo, Luiz acelera-se em muitas décadas. Se às vezes parecem falar de lugares calamitosos, não o fazem, no entanto, resignados em desesperança. Conscientes de que a condição humana é regida pelo caos da incerteza, anotam e especulam para sugerir que, se tudo é possível, podemos inventar sempre novas maneiras de nos organizar e afetar.


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