Durante cerca de 20 anos de carreira musical – o que soa surpreendente para alguém ainda tão jovem –, Iara Rennó construiu pontes. Primeiro, com os membros da própria família, conhecida como o clã Espíndola, que possui hoje mais de dez músicos atuantes; depois, com Itamar Assumpção (1949-2003) – parceiro musical de sua mãe, Alzira E – e seus célebres companheiros de banda; em seguida, com os integrantes de seu primeiro grupo autoral, DonaZica, todos hoje importantes nomes da nova cena musical brasileira; e, a partir daí, com uma série de músicos, poetas e letristas das mais variadas gerações e cantos do País que, de algum modo, participaram de sua trajetória solo. Foi ao lado deles que produziu os discos Macunaíma Ópera Tupi (2008), Iara (2013) e agora os álbuns “gêmeos” Arco e Flecha (2016), trabalhos que, segundo a própria Iara, parecem refletir um pouco de toda a sua trajetória, que inclui ainda a montagem de uma grande instalação artístico-musical no Museu Afro Brasil, uma ópera-baile no Teatro Oficina, um disco coletivo de marchinhas, um livro de poesia erótica e participações nos trabalhos de diversos outros músicos. Iara Rennó é uma artista incansável e combativa – uma mente efervescente – e Arco e Flecha explicitam isso da primeira à última de suas faixas.
“Arco e Flecha parece que amarram tudo que veio antes. Os vários parceiros, sonoridades, influências…”, comenta Iara, 39 anos, durante longa conversa com a CULTURA!Brasileiros. Pois estão nos discos, seja como instrumentistas, seja como letristas ou compositores, desde a sua progenitora até os poetas da geração de Itamar – Paulo Leminski (1944-1989) e Alice Ruiz –, passando pelos membros de suas principais bandas e por novos e velhos parceiros músicos de São Paulo e Rio (principais polos de atuação de Iara). Para além dos companheiros, os discos explicitam tanto o interesse da cantora pelos ritmos afro, temáticas do candomblé e matrizes brasileiras, já vistos em Macunaíma Ópera Tupi, quanto sua pegada mais crua e roqueira, apresentada em Iara; trazem tanto seu lado mais visceral quanto o mais cerebral – “acho importante esse equilíbrio. A elaboração é sempre bem-vinda, estimulante, mas às vezes pode ser cansativa também”; tanto letras eróticas quanto uma homenagem a orixás; tanto o universo masculino quanto o feminino; tanto o arco quanto a flecha.
Arco é um disco inteiramente gravado por Iara (voz e guitarra), Mariá Portugal (bateria, vocais e programações) e Maria Beraldo Bastos (clarone, vocais e cavaquinho), “um power trio sem baixo”, como diz a cantora sobre essa combinação que já vinha tocando junto em outros projetos. Com sonoridade mais crua e referências ao eletrônico, ao funk e ao rock, o disco traz letras mais íntimas e subjetivas (algumas musicadas do livro de poesias eróticas, língua brasa carne flor, lançado em 2015 pela Patuá), incluindo parcerias com Alice Ruiz, Alzira E e Júlia Rocha. Flecha, por sua vez, traz referências à música afro e às cantigas populares, suingue mais percussivo e letras mais objetivas, que “falam para o mundo”. Com produção de Curumin, que também integra a banda, o disco ainda traz no time Maurício Fleury, Daniel Gralha, Cuca Ferreira e Douglas Antunes (os quatro do Bixiga 70), Maurício Badé, Lucas Martins e Gustavo Cabelo (da Trupe Chá de Boldo, namorado de Iara), além das participações especiais de Mãeana e Ava Rocha. Nas composições aparecem os nomes de Gustavo Galo, Gustavo Cabelo, arrudA, Paulo Leminski, Domenico Lancelotti, Bruno Di Lullo e Negro Leo.
Se quem lê as fichas técnicas imagina de imediato um disco feminino e outro masculino, Iara prefere desconstruir essa ideia. “São discos gêmeos, porque nasceram juntos, mas gosto de dizer também que são transgêneros, porque a música que se expressa ali não tem gênero. Essas mulheres do Arco podem ser masculinas e esses homens do Flecha podem ser femininos. Todos temos os dois lados”, diz ela. O que mais interessa à cantora, no caso, é a complementariedade e dualidade dos trabalhos. “Quando percebi que seriam dois álbuns, vi que eles tinham uma relação como noite e dia, côncavo e convexo, subjetivo e objetivo, yin e yang. Cheguei em casa com isso na cabeça, procurando nomes que expressassem essa dualidade mas que não fossem banais, e o Cabelo acertou em cheio batizando Arco e Flecha. Esses nomes também têm relação direta com Oxóssi (o caçador de uma flecha só), fazem uma ponte com Macunaíma Ópera Tupi, que reflete a importância dos traços indígenas na formação da cultura brasileira, e, indo mais fundo, arco e flecha são símbolos milenares universais – provavelmente a primeira arma engenhosa criada pelo homem, na qual uma parte precisa da outra. Enfim, toda essa simbologia tem uma ação direta no subconsciente, uma comunicação de outra ordem, que não direta, com o interlocutor, e essa possibilidade me agrada muito”.
Em família
Iara Rennó nasceu em berço musical. Em outras palavras, nasceu respirando arte. Se afirmações como estas, utilizadas sempre que se fala em filhos de músicos, podem soar clichê, é difícil fugir delas no caso da cantora paulistana. Pois, além de ser filha de Carlos Rennó, um dos mais importantes letristas do Brasil, e da cantora e compositora Alzira E, Iara tem, do lado materno, mais cinco tios músicos: Geraldo, Sérgio, Celito, Tetê e Jerry. “Eles são oito irmãos, nascidos em Mato Grosso do Sul, sendo que seis são músicos e um é artista plástico, mas também compõe. Só uma irmã não é artista, é a ‘ovelha branca’ da família”, brinca Iara. “Meus avós não tocavam, mas davam carta branca para os filhos fazerem o que quisessem. Minha avó, que era mais artística, pintava, gostava de cantar e eu brincava com ela de fazer showzinho. Mas meu avô também nunca tolheu a individualidade dos filhos.” A família alcançou tamanho reconhecimento no estado natal que, em 2008, foi inaugurada em Campo Grande a Concha Acústica Família Espíndola. Na geração dos netos, além de Iara, seus irmãos Luz Marina e Joy e os primos Dani Black, Pedro e Lucas Espíndola também viraram músicos. “Família geralmente é um troço bem complicado, sempre tem os seus percalços, mas a música na nossa família é um fator muito forte de união, de harmonia, o que é muito positivo e gratificante. E é legal ver que isso vai se espalhando também para essas novas gerações.”
Tanto é que diversos projetos musicais surgiram entre eles, como Espíndola Canta, Mulheres Espíndola ou o primeiro deles, Tetê e o Lírio Selvagem, nome sugerido pela gravadora Philips, no fim dos anos 1970, para o grupo LuzAzul, que reunia Tetê, Alzira, Celito e Geraldo. “Então eu vivi desde pequenininha nos ensaios e camarins”, conta. Ainda menina, Iara já participava, com brincadeiras cênicas, de alguns shows da mãe. Aos cinco, gravou um jingle veiculado em Mato Grosso do Sul e, aos sete, começou a compor suas primeiras músicas. “Tem uma que eu lembro que é ótima, porque é social e erótica ao mesmo tempo!” E ela canta: “Ana Maria, filha de seu João/ Saiu na rua para comprar pão/ chegou na padaria, viu que não tinha dinheiro/ chorou, chorou, chorou, chorou, chorou, chorou/ Meia-noite, a lua apareceu/ Foi que Ana Maria logo percebeu/ Que a sua família estava passando fome/ Foi na casa do seu Granfino/ pediu dois mil/ seu granfo deu/ sorriu, sorriu, sorriu, sorriu, sorriu, seu granfo deu”. “Olha, foi na inocência. Mas você vê o tema que estava na minha cabeça, lá nos anos 1980, pensando em fome. Eu falo e as pessoas não acreditam, mas era osso duro. A gente morava em uma casa de um quarto, quatro irmãs e minha mãe, e comia pão com margarina.”
Iara lembra dos anos de primário e ginásio, depois de voltar de um período morando em MS, como tempos difíceis. Quando mudou de uma escola pública para outra privada, “eu era a mais pobre, mais negra, mais baixinha e, ainda, mulher”. “Então eu tinha que fazer alguma coisa para sobreviver naquele meio selvagem que é a escola. Aí raspei um lado do cabelo, fiz abaixo-assinado para tirar uma professora, e até fui conquistando alguma popularidade, porque eu era chamada de ‘radical’”. Sobre o biotipo, sem ter pai ou mãe negros, Iara conta que é recorrente ser perguntada se é afrodescendente. “Acho que por causa do cabelo. Mas tem muita mistura na minha família: preto, índio, português, alemão, árabe…” E ela relembra uma história curiosa: “Uma vez fui fazer um teste de teatro para o Antunes Filho e ele me perguntou quem era negro na minha família, se minha mãe ou meu pai. E eu falei que nenhum dos dois, que eu nem conheci o negro da minha família, estava mais para trás. E ele ficou achando que era mentira, que eu tinha vergonha de assumir”. Ele não conhecia bem o gênio da cantora…
A música
Chegada a adolescência, na “fase mais rebelde”, Iara até tentou renegar o “imperativo” musical da família. “Naquela fase ‘revolteen’, eu dizia: ‘ai, que horror, não vou mexer com esse negócio de música! Esses hippies!’. Isso para mim era se rebelar. Mas eu não consegui ir muito longe, e fui fazer teatro”, conta, rindo. Aos 16, chamada para fazer uma peça em que era preciso cantar, percebeu que se tratava mais de um show em que era preciso atuar. Ali começou a cantar, e em pouco tempo já estava pegando o violão para compor e participando de shows da mãe. Com a amiga Anelis Assumpção, filha de Itamar, começou a matutar algumas ideias para formar um grupo, mas, antes que isso acontecesse, o Nego Dito convidou as meninas para sua banda. Iara, com 20, e Anelis, com 17, se tornaram backing vocals de Itamar, um dos maiores nomes da chamada Vanguarda Paulista, em uma banda que incluía ainda Luiz Chagas, Gigante Brazil e Clara Bastos, entre outros. Conhecido por ser linha-dura com os músicos, Itamar não deu trégua para as cantoras: “Ele era meio tirano, mas eu enfrentava um pouco. Às vezes a gente tinha até umas briguinhas no palco”, conta, rindo, sobre os três anos em que acompanhou o compositor. “Acho que na escola da vida, com a família foi a pré-escola, o primário e o ginásio… E com o Itamar foi a graduação mesmo. Ele exigia muito, e jogava a gente na fogueira. Uma vez a gente ia fazer um show só cantando Noel Rosa, e logo na hora de subir no palco ele me falou: ‘você vai cantar Três Apitos’, que ele que cantava, e que tinha um arranjo difícil, todo desdobrado. Era assim, cheio de provinhas”.
O trabalho com linguagem, a desconstrução de harmonias, os contrapontos rítmicos, tão presentes na música de Itamar, foram também um grande aprendizado. “Ele falava: ‘ah, não adianta, o Chico Buarque já fez todas as harmonias!’ Então ele trabalhava a linguagem, fazia muito a coisa do contraponto no baixo. A gente tinha que aprender a cantar sem harmonia, e baixinho, porque ele fazia assim, e muita coisa rítmica, o que para mim foi muito bom. E a parte cênica também, que ele tinha muito”. Foi ainda nesse período, com 20 e poucos anos, que Iara conheceu a cantora Andreia Dias, e com ela decidiu formar a banda DonaZica. Enquanto Iara trazia suas influências da Vanguarda Paulista, Andreia chegava com referências de sambas. “Eram escolas diferentes, mas o som dela me cativou, e acho que ela também ficou cativada pelas minhas coisas. O que a gente gostava em comum era Tom Zé”, lembra. Entraram no grupo, também, Anelis, Gustavo Ruiz (filho de Luiz Chagas), Simone Julian, André Bedurê, Marcelo Monteiro, Gustavo Souza e Simone Soul – com algumas trocas, também passaram pela banda Alfredo Belo, Mariá Portugal e Guizado.
Com a DonaZica, que durou de 2001 a 2009, foram dois discos autorais, Composição (2003) e Filme Brasileiro (2005), com uma maioria de músicas de Iara e Andreia. A formação com bateria, percussão, violão, guitarra, sopros e percussões encaminhava o trabalho para uma sonoridade híbrida, com um pé forte no universo da música brasileira – das sonoridades tradicionais às vanguardistas. Nessa época, a cantora também teve seu primeiro “emprego fixo”, como ela conta. “Eu nunca consegui ter um emprego assim normal. Quando eu era adolescente queria trabalhar em locadora, loja de shopping, qualquer coisa do tipo, mas nunca me aceitavam. Aí o Gustavo Ruiz me chamou para ir acompanhar ele em um teste nos Trovadores Urbanos. Eu cantei, nem estava indo fazer o teste, e a Maída Novaes me contratou. E esse foi o emprego fixo que eu tive. Fiquei sete anos fazendo serenata”. Frequentando casas, salões de festa e restaurantes quase todos os dias, Iara fez mais de mil serenatas, em pequenas apresentações de cerca de 20 minutos. “Tinha uma variação de repertório, mas Carinhoso (Pixinguinha/Braguinha) tinha em todas. Então eu digo que é a melhor música do mundo, porque eu cantei mais de mil vezes e ainda gosto dela, e de cantá-la”.
Carreira solo
O projeto que resultou em Macunaíma Ópera Tupi, primeiro disco solo de Iara, surgiu, na verdade, dez anos antes, para ser um trabalho de conclusão de curso na Faculdade de Letras da USP – que Iara cursou por quatro anos, mas não chegou a concluir. “Foi antes mesmo da DonaZica, e ainda que tenha ficado adormecido por um tempo, eu sabia que um dia ia gravar esse disco”. Iara musicou e arranjou trechos do livro, poesias e prosas, e reuniu um enorme time de músicos e produtores para fazer uma verdadeira ópera em cima da obra de Mário de Andrade (1893-1945). Mas não uma ópera no formato clássico, europeu, uma “ópera tupi”. “Eu me identifiquei muito com essa escola do modernismo que é, na verdade, uma antiescola, que é o desvairismo. E com a antropofagia, que é você conhecer, sim, as tradições, manifestações folclóricas e influências diversas, comer tudo e vomitar outra coisa. E o Macunaíma é isso.” A cantora convidou para participar nomes como Tom Zé, Arrigo Barnabé, Moreno Veloso, Kassin, Daniel Ganjaman, Siba, Mauricio Takara e Bocato. “Como eu poderia trabalhar com esse livro sem fazer isso, sem trazer músicos diferentes, de lugares diferentes do País? Eu precisava dar uma tradução do que é essa obra, que é uma colagem de várias manifestações de diferentes matrizes. Esse projeto é muito maior que eu. Às vezes acho até difícil dizer que é o ‘meu’ primeiro disco solo, porque tem mais de 50 músicos envolvidos e é um projeto temático, não tem nenhuma letra minha ali, são trechos do livro que eu musiquei.”
O interesse pela cultura popular e pelas matrizes brasileiras, mesmo que sempre “conservando e corrompendo as tradições”, resultou em mais três importantes trabalhos de Iara antes de chegar ao disco solo seguinte. Em 2009, a instalação sonora ORIKI in Corpore ocupou vasto espaço do Museu Afro Brasil, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, em uma obra com 13 músicas dedicadas aos orixás. O projeto foi inspirado no livro Oriki Orixá, de Antonio Risério, e na pesquisa de Iara com o universo dos terreiros baianos e dos poemas da tradição oral do candomblé, os orikis. As 13 músicas, já gravadas (com Curumin, Maurício Badé e Lucas Martins, alguns dos mesmos músicos que gravaram o recente Flecha), seguem inéditas e devem virar um disco em breve. Em 2010 Iara realizou no Teatro Oficina, em São Paulo, mais um projeto grandioso, o Macunaíma Ópera Baile, uma apresentação das músicas do disco de 2008 com participação de banda, quarteto de cordas, corpo de baile, da cantora Thalma de Freitas e do ator Pascoal da Conceição. Em 2012, já morando no Rio de Janeiro, ela concebeu, ao lado dos amigos Cibelle, Ruben Jacobina e dos músicos da banda carioca Do Amor, o disco A.B.R.A Pré Ca, todo com marchinhas de carnaval autorais contemporâneas.
O Rio de Janeiro, no qual Iara foi parar por acaso e acabou passando três anos e meio, influenciou o trabalho da cantora em diversos sentidos. Os novos parceiros, a cidade, a sonoridade e o estilo de vida resultaram, de algum modo, não só no disco de marchinhas mas também no álbum Iara (2013) e no livro de poesia erótica. O disco que leva seu nome marca uma mudança de sonoridade na carreira, resultado também da escolha por uma formação instrumental mais enxuta e “crua”. “Eu queria esse som de banda, um pouco mais indie, e chamei o Leo Monteiro e o Ricardo Dias Gomes. Eu sabia que queria essa bateria que soa quase eletrônica e o sintetizador no lugar do baixo. E para produzir chamei um amigo querido, o Moreno Veloso, com quem eu já tinha trabalhado e que tinha acabado de produzir o Cê, do Caetano, que tem esse som mais rock.”
Poesia erótica e feminismo
De algum modo, o Rio de Janeiro estimulou também a primeira inserção mais direta de Iara no mundo da poesia escrita (e não musicada), com o livro língua brasa carne flor. “Acho que eu sempre fui muito sexual, desde criança, mas acontece que o Rio deu uma acentuada nisso. Para quem mora em São Paulo a vida toda, e depois vai para cidades como Rio e Salvador, onde as pessoas são mais soltas, usam menos roupa, isso dá uma inspiração”. Entre 2013 e 2014, a maior parte do tempo na cidade fluminense, Iara escreveu quase todos os poemas do livro. Dividido em sete tomos – com títulos como Língua, Bota-fogo, Tratado da Perseguida, Hai Cai de Boca e Flor em Brasa –, a obra adentra um universo íntimo de Iara de modo ao mesmo tempo delicado e selvagem, cerebral e visceral. Com o livro pronto, surgiu a questão: vale publicar? “Pensei tanto se tinha valor poético quanto no medo de estar me expondo muito. Mas os amigos foram incentivando, e eu fui mandando para pessoas como Alice Ruiz, Luiz Chagas e Xico Sá, que, digamos assim, deram o aval.” E a rebeldia de Iara também se satisfez: “Foda-se! Se alguém se incomodar, melhor ainda. Porque existe a possibilidade de ser uma coisa malvista, mas isso também me instigava, poder contribuir de alguma forma com a liberação sexual das mulheres”.
“Em vez de discursos feministas ela prefere jogar a mulher que ela é, a mulher que a mulher é, quando fêmea, na cara de quem lê. Totalmente sem-vergonha: louvadas sejam as deusas por isso. Porque isso é o que há de mais feminista”, escreve Alice Ruiz na contracapa do livro. De fato, Iara poucas vezes pensou em si mesma como uma feminista, no sentido mais usado da palavra. Mas percebeu, ao longo do tempo, que seu livro e atitude o eram. “Eu até me surpreendi, em um primeiro momento, quando as pessoas começaram a falar do livro desse modo. Porque não tem uma pegada ativista, panfletária, é uma coisa mais animal e pessoal mesmo. Mas comecei a escrever o livro em 2013 e, se você for ver, eu estava em plena sintonia com essa movimentação que está acontecendo. Acho que o artista tem essa coisa da conexão com o que está rolando na rede do inconsciente coletivo. Então acho que eu estava captando essa onda, mas não foi algo premeditado.” E ela completa: “Porque o feminismo neste lugar em que não pode ter gentileza, não pode ter um fiu-fiu na rua, não concordo. Acho que depende da situação. E o feminismo é muito mais do que isso. Mas entendo as posições radicais, porque é uma luta contra a opressão que está muito arraigada, e nós todos fomos criados sob ela. E falam que está melhor, ou que no meio artístico é melhor… Não, o meio artístico é machista, sim! De poucos anos para cá começamos a jogar a merda no ventilador, e isso é muito importante. Porque homens que pensam que não é com eles, que machista é sempre o outro, precisam entender que é com eles, sim. Se você não reconhece em si mesmo, não tem como mudar”.
Três poemas do livro, que surgiram inicialmente como poesia escrita, acabaram se tornando músicas em Arco. Mama-me, uma das faixas, ganhou videoclipe, dirigido por Milena Correa, que traz atuações de uma série de mulheres com os peitos despidos. “São mulheres com diferentes idades, cores e tamanhos, principalmente artistas, que são essas mulheres ‘de peito’. E estão dando, ali, uma peitada na cara da sociedade”, diz Iara. “E mulheres de bem com o seu corpo, e dizendo: ‘eu tenho prazer sexual, sim’.” Entre as participantes estão Alice Ruiz, Bárbara Eugênia, Juliana Perdigão, Ana Karina Sebastião, Mariá Portugal, Maria Beraldo Bastos, Julia Rocha, Hayge Mercúrio, Karen Ka e Manoela Rangel. Mais uma vez, como em toda sua trajetória, Iara decidiu criar pontes, e fazer um videoclipe cheio de parceiras. Parceiras que, segundo ela, são também influências para o seu trabalho, assim como as dezenas de outros artistas que transitaram de algum modo por sua vida. Influências contemporâneas, diz Iara, fugindo de qualquer nostalgia: “É muito pouco dizer que só os que vieram antes nos influenciam. Se estamos aqui neste momento, e tem vários amigos que são artistas, compositores, cantores, e convivemos com eles, trocando, temos que valorizar isso. Eu e Ava estávamos falando sobre isso outro dia. A gente está o tempo inteiro se influenciando mutuamente. Quem cita como referências só os medalhões, Chico, Gal, etc., acho um saco. Apesar de eles serem incríveis, é muito pouco. Não dá para parar no passado, ficar só reproduzindo, e com aquele discurso de que hoje não se faz música como antigamente. Não se faz mesmo, ainda bem”!
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