Nesta quarta-feira (26), o cantor e compositor Belchior completa 70 anos. Recluso desde 2009, quando foi visto em público pela última vez em San Gregorio de Palanco, no Uruguai, o artista cearense, no entanto, segue cultuado por seus velhos fãs e vem sendo redescoberto por novos ouvintes. Neste ano, por exemplo, não foram poucos os jovens que, por meio das celebrações dos 40 anos de lançamento de Alucinação, seu segundo álbum, descobriram o lirismo urgente do artista e partiram em busca de sua discografia.
Nascido em Sobral, em uma família composta por 23 filhos, aos 16 anos Belchior caiu na estrada e foi viver na capital Fortaleza, onde concluiu o curso de Filosofia e abandonou a formação em Medicina, no terceiro ano, por conta da paixão pela música. Em 1971, ainda em Fortaleza, conquistou o IV Festival Universitário, com a interpretação da dupla Jorge Melo e Jorge Teles para um de seus futuros clássicos, a composição Na Hora do Almoço. Três anos mais tarde, depois de ter a canção Mucuripe gravada por Elis Regina e já radicado em São Paulo, lançou seu primeiro LP pelo selo Chantecler. Com o êxito de À Palo Seco, carro-chefe do trabalho, e de Na Hora do Almoço, agora na voz do autor, Belchior trilhou caminho ascendente e logo foi reconhecido como um dos mais importantes compositores e letristas surgidos na música popular do País nos anos 1970. Com o êxito de Alucinação, lançado pela Philips, fez-se porta-voz de toda uma geração asfixiada pelo ambiente opressor da ditadura.
A despeito de seu comportamento enigmático, indecifrável, onde quer que ele esteja, celebramos aqui os 70 anos de Antônio Carlos Belchior com uma seleção de depoimentos publicados na imprensa do País ao longo da década de 1970. Declarações contundentes e provocativas, que não deixam dúvidas sobre o espírito indômito desse compositor de “coração selvagem”, parafraseando o título de seu terceiro LP, lançado, em 1977, pela WEA.
“Só há uma coisa que o artista deve sempre fazer: desobedecer. Eu só acredito na dignidade do artista através da rebeldia.”
“Quando a moçada pegou a mochila e meteu o pé na estrada, aí por 68, eu já vinha chegando de volta… Eu era pobre, vinha fugindo da escola, desde os 17 anos perambulava como andarilho e poeta apaixonado, dormindo embaixo das estrelas, transando com os cantadores, violeiros e loucos que vagam pela vida.”
Excertos da reportagem Belchior, 12 anos de música, estrada e rebeldia, não creditada, publicada na revista Pop, dezembro de 1975
“Os artistas estão muito mesquinhos, tímidos, escolhendo lugares para cantar. Mas eu proponho uma ida para além dessas máscaras todas. Com um trabalho simples, direto, sem mistérios, minha preocupação é abrir um espaço em que se possam dizer coisas. O resto é papo furado”
“Não dou importância a essas críticas. São preocupações supérfluas, assim como é o sucesso, essa situação criada pelo público. Para mim, o que mais importa é que aparecendo na televisão, consigo mostrar a minha arte para milhões de pessoas. As pessoas exigem de mim um comportamento de superstar, mas eu prefiro seguir os ensinamentos da estrada.”
Depoimento registrado na reportagem Belchior: “Não visto máscara de superstar”, publicada na revista Pop, em setembro de 1977
“Não gosto de músicas ou letras apenas contemplativas, passivas. Eu falo – e devo falar – dos enganos que nós, os jovens, sofremos por ver as nossas esperanças caírem por terra. Assim, não abro mão da agressão. Acho que é preciso fazer um trabalho irreverente e insolente. Caso contrário, vira aquele negócio de música de fundo de restaurante, sabe como é? As pessoas estão comendo e a arte serve apenas de relaxante, entretenimento. Facilitador da digestão.”
“Não me interessa, como artista, produzir e criar pensando na eternidade da obra. Eu quero dar toques. Isso é fundamental para mim, pois o homem é o fim e o objetivo de si mesmo. Eternidade não é um dado humano, comum. Aliás, em qualquer nível é uma farsa, uma mentira. Sou contra. Eternidade é o tédio dos deuses, que gostariam de ser mortais. Minha ligação é com a terra.”
“O meu disco tem um título que eu gosto, ‘Alucinação’. Sabe, viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende? A alegria, a ironia, a provocação, são tão importantes quanto sorrir, brincar, amar. Acho importante provocar. Um trabalho novo só aparece através da agressividade. Eu estou tranquilo quanto às consequências do meu trabalho. Acho importante que ele cause polêmica. É para desafinar mesmo! Desafinar sempre, que esse é o desafio. Hoje em dia, já não se pode mais criar sem correr riscos. E eu quero enfrenta-los.”
“Aos 16 anos, eu não aguentei a barra, saí de casa, tentando buscar uma alternativa… Não vejo mal nenhum em sair por aí, botar o pé na estada. O nordestino tem a alma de emigrante, é uma ave de arribação, como diz Luiz Gonzaga. Agora, quem põe o pé na estrada precisa estar preparado para aguentar a barra. De 1971 até hoje, o negócio não foi fácil. Dormi em muita calçada. Segurei de perto a barra da Lapa (RJ). Senti fome e frio. Fiquei de pires na mão, nas salas de espera das gravadoras”.
Excertos de Belchior: “O que me interessa é amar e mudar”, entrevista para o repórter Eduardo Athayde, publicada no jornal Hit-Pop, em junho de 1976
“Optei pelo trabalho, pois não dá para ficar curtindo as mágoas. Sei que nós somos de uma geração de pavor, de medo. Mas eu não curto essa miséria. O negócio é criar, a despeito da dor, da ferida, do machucado. Talvez, por isso, o resultado seja uma arte agressiva – a criatividade é um risco, não dá para criar sem perigo. Mas, mesmo assim, me interesso muito mais pela vida que pela arte, sacou?”
Excerto da reportagem Belchior, Sem Medo do Perigo, publicada na revista Pop, em março de 1976
“Eu não faço música partidária. Eu sou a favor de um recrudescimento das qualidades individuais, diante de qualquer instituição e também da instituição política. Tem governo, eu sou contra. Tem partido, eu sou contra. Eu não quero pertencer a partido, igreja, escola, a nenhum grupo institucional. Se eu pertenço a algum é por estrita obrigação da qual eu não posso fugir. Nós, os homens desse tempo, estamos humilhados pelas injunções do poder. Eu não quero poder nenhum. O poder é corruptor. Por natureza, o poder é avarento.”
Excerto da reportagem Belchior, Como o Diabo Gosta, publicada na revista Música, em setembro de 1979
* A íntegra das reportagens originais pode ser conferida na hemeroteca virtual Velhidade.
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