Arqueologia da memória

O diretor Eryk Rocha, em retrato de Marcos Pinto feito para reportagem publicada em 2011. Leia em: brasileiros.com.br/3UGGF
O diretor Eryk Rocha, em retrato de Marcos Pinto feito para reportagem publicada em 2011. Leia em: brasileiros.com.br/3UGGF

Nascido em 1895, o cinema é a mais jovem de todas as expressões artísticas. Seja por meio da narrativa ficcional, seja da documental, as turbulências e glórias do século XX foram registradas na tela grande por meio de ações individuais, mas também em correntes estéticas coletivas que continuam a influenciar realizadores. Uma narrativa de invenções agrupadas em movimentos como o Expressionismo Alemão, o Neorrealismo Italiano, a Nouvelle Vague Francesa, o Novo Cinema Alemão e, no Brasil, o Cinema Novo dos anos 1960.

Sobre este último, com título homônimo, chega aos cinemas de todo o País, nesta quinta-feira (3), o aguardado longa-metragem de Eryk Rocha que, em maio último, conquistou o Olho de Ouro, prêmio máximo da categoria de filmes documentais do Festival de Cannes. Para além do encantamento que Cinema Novo despertou no público e no júri da mostra francesa, a cerimônia de premiação do filme também foi marcada pelo protesto feito por Eryk, filho do cineasta Glauber Rocha, contra o então governo interino de Michel Temer e a notícia, anunciada dias antes, da extinção do Ministério da Cultura. Fazendo uso de discurso contundente, à maneira politizada de seu pai, Eryk afirmou que o País vivia um “momento trágico de sua história” e que a extinção do MinC, depois anulada, era um “reflexo do grande retrocesso imposto ao Brasil”.

Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, realizada por e-mail, devido a compromissos internacionais, Eryk Rocha voltou a abordar a crise política no País, e fez considerações sobre Cinema Novo. Com narrativa ousada, construído sobretudo na montagem, por meio de colagens de cenas e excertos de áudio de mais de 130 títulos, o filme é um ensaio poético que, sem recorrer ao didatismo, explica e dimensiona a importância do movimento encabeçado por nomes como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Walter Lima Jr e, claro, por seu pai. Estabelecendo conexões entre antecessores, sucessores e contemporâneos que correram em paralelo ao Cinema Novo, Eryk também tributa a importância de realizadores como Mário Peixoto, de Limite, Humberto Mauro, de Ganga Bruta, Luiz Sergio Person, de São Paulo S/A, Walter Hugo Khouri, de Noite Vazia, e Jorge Bodanzky, de Iracema, Uma Transa Amazônica.

Além do impacto visual das colagens desses e de outros filmes, Cinema Novo também se inscreve como importante fonte para a compreensão de um período histórico, pela quantidade de depoimentos inéditos de algumas das personalidades mais relevantes para a cultura do País. A seguir, a íntegra da conversa virtual com Eryk Rocha.

CULTURA!Brasileiros – Um dos trunfos de Cinema Novo é a dispensa de recursos narrativos usuais em filmes documentais, como os depoimentos de pessoas próximas do personagem ou afeitas ao tema e o uso recorrente de locução em off. Como se deu essa escolha?
Eryk Rocha – Esse não é um filme que ambiciona explicar o Cinema Novo ou defini-lo, mas que, através dele e com ele, eclode a partir de um caldeirão de vozes, afetos e poéticas. Fazer esse filme me provocou o desafio de superar o aspecto anedótico-historicista e dialogar com o movimento no presente. Criar movimento dentro do movimento. Meu desejo foi olhar o Cinema Novo como um estado de espírito compulsivo de criação que revela o embate do artista/cineasta com seu tempo. Cinema Novo foi construído na montagem. Foram nove meses intensos de invenção, que contou com o belo trabalho do montador Renato Vallone. Em seguida atacamos a fundo a montagem de som realizada com maestria pelo Edson Secco. A montagem (sonora/visual) é o coração que faz pulsar essa obra. Usamos mais de 130 filmes e acervos diferentes. Esse filme nasce a partir de fios, linhas e trechos. Trechos de caminhos, trechos de sonhos, trechos de músicas, trechos de histórias, trechos de gestos, trechos de filmes, trechos interrompidos. Essa multidão de trechos cria uma melodia, uma nova dramaturgia. Um corpo vivo de novos sentidos. Como dizia Humberto Mauro: “O cinema vira cachoeira…”

Como se deu a pesquisa dos títulos que serviram de matéria-prima para o filme? Houve entraves para a obtenção dessas imagens?
Foi uma pesquisa de anos até iniciarmos o processo de montagem. Importante dizer que esse trabalho contou com o apoio fundamental das famílias dos cineastas. Os filhos do Leon Hirszman, do Joaquim Pedro de Andrade, e de cineastas vivos, como Nelson Pereira dos Santos e Carlos Diegues, entre outros. E, claro, também dos meus irmãos, os filhos do Glauber. Em toda essa articulação foi fundamental o trabalho do produtor do filme, Diogo Dahl, que correu atrás das melhores matrizes de cada filme, negociou com cada família, com os diferentes acervos, e montou um verdadeiro quebra-cabeça. Esse é um filme que fala da arqueologia da memória. Nos debruçamos principalmente na produção do Cinema Novo dos anos 1960, que, penso eu, é a década mais fecunda do movimento. Apesar de haver algumas exceções, como, por exemplo, Humberto Mauro e Mário Peixoto, ou na outra ponta dos anos 1970, por exemplo, o Iracema, Uma Transa Amazônica, do Jorge Bodanzky. Vi e revi muitos filmes. Além deles, também pesquisamos em diversos canais de TV, arquivos do Brasil e do mundo, e descobrimos materiais raros, como, por exemplo, os do INA (o Instituto Nacional de Audiovisual) francês. Todo esse árduo trabalho foi realizado em parte com o montador do filme, Renato Vallone. Durante a montagem, também descobrimos filmes e materiais novos que fomos incorporando na partitura do filme, e isso naturalmente foi afetando a própria montagem, complexibilizando a estrutura e enriquecendo a travessia.

No filme, em momento algum você intervém, de forma explícita, para influenciar a compreensão do que está sendo visto. Para além do fato de você ser filho de um dos artífices do Cinema Novo, gostaria que comentasse sua relação com o movimento.
Os filmes nascem das vísceras e da profunda necessidade de dizer algo que não pode deixar de ser dito. Acredito que Cinema Novo nasceu do meu desejo de investigar a história cinematográfica, cultural e política do meu País em cruzamento com minhas raízes afetivas. Quis entender melhor e tentar alumbrar a época em que vivo. A geração do Cinema Novo desejou inserir o cinema e a arte num projeto maior de País. Esse confronto do cidadão/artista com seu tempo foi algo que sempre me mobilizou e me apaixonou a fazer cinema.  A crença do filme foi lançar o Cinema Novo no presente, em pleno movimento, e indagar como o artista pode hoje se engajar nos processos políticos cotidianos do seu povo. O Brasil ainda não passou por um processo básico de compreensão da cultura e da educação como forças estratégicas para o seu desenvolvimento real. Creio que hoje precisamos, com urgência, libertar a imaginação rumo à criação de novos projetos políticos e poéticos. Isso me lembra uma fala do cinemanovista Paulo César Saraceni, que, aliás, está no filme: “Eu quero fazer um cinema político que seja a melhor poesia”.

 

 

 

O filme já foi visto por alguns dos personagens nele retratados, como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Cacá Diegues? Qual foi a reação manifestada por eles?
O único do grupo que assistiu ao filme foi Ruy Guerra. Por acaso, coincidimos exibições no Festival de Lima, no Peru, e ele viu o documentário lá (Guerra participou da mostra peruana com seu mais recente filme, Quase Memória). Ruy gostou muito, se emocionou, o que rendeu uma longa e bonita conversa entre nós. Daqui a alguns dias faremos uma primeira sessão no Cine Odeon, no Festival do Rio, e todos os cinemanovistas assistirão ao filme. Estou entusiasmado e muito ansioso por esse momento.

A dimensão política do Cinema Novo fica ainda mais evidente nos depoimentos dos diretores reunidos no documentário. Durante o Festival de Cannes, onde o filme saiu vitorioso, você afirmou que o País vive um novo golpe de estado. Considera que este novo contexto, de retração conservadora, pode culminar em um cenário de resistência cultural semelhante ao criado pelos cinemanovistas?
Hoje, o debate político voltou a ocupar um lugar crucial no Brasil. Estamos vivendo um verdadeiro transe político, com contornos trágicos. Essa alta tensão do País inevitavelmente afeta o dia a dia, o corpo, e deixa a sensibilidade à flor da pele. Ao mesmo tempo sinto também que o Brasil está perdido, meio que sem rumo, sem perspectivas muito claras. Tomamos um duro golpe e estamos tentando nos reerguer para, coletivamente, entender o que aconteceu, e seguir a luta.  Penso que o cinema, como um rico meio de expressão, tem o poder de criar memória e ser testemunha desses momentos. Esses “estados” do País pouco a pouco poderão irradiar novas correntes do nosso cinema, e acho que a tendência é que isso se intensifique, se aprofunde, já que os desdobramentos e acirramentos das lutas políticas e sociais são imprevisíveis. Cada época tem suas formas de expressão, e acredito que uma das forças originárias do movimento do Cinema Novo foi realizar uma potente simbiose entre política e estética, entre forma e conteúdo, uma nova gramática. Tudo eclode e irrompe nessa perspectiva e fiquei impressionado ao perceber como vários desses filmes seguem ecoando e dialogando visceralmente com o Brasil contemporâneo. Acho que hoje o desafio é saber como o cinema brasileiro vai refletir e atuar nesse novo processo do País, saber como ele vai traduzir o Brasil na tela. Isso me inquieta, como realizador, me instiga e me provoca querer filmar esse tempo histórico tão estranho que habitamos, um tempo de ruínas.

CONTEÚDO!Brasileiros
Leia entrevista
com o cineasta Nelson Pereira dos Santos, publicada em fevereiro de 2012, na edição 55 de Brasileiros, na ocasião do lançamento do documentário A Música Segundo Tom Jobim     


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