As drogas e as mídias: contrapontos

Na edição anterior, destaquei o papel prejudicial que a mídia vem desempenhando com seu tom alarmista e imediatista ao falar sobre drogas.

A divulgação da existência de uma droga barata e poderosa (crack ou oxi) que se experimentada uma única vez tornará o interlocutor um viciado, acompanhando o modo de usar, o endereço de venda que, além de incitar a vontade de usar, alimenta um fenômeno denominado “fissura ao contrário”: uma ansiedade simplista e imediatista por resolver, mediante um único golpe, o problema, por meio de recolhimento involuntário de usuários em centros fechados, com privação da liberdade.

A matéria da Veja – “As prisioneiras do crack” (22/6/2011) – e os atos de recolhimento de crianças e adolescentes com internação compulsória em massa na cracolândia carioca estão nessa linha.

No entanto, recentemente, um artigo na Folha de S.Paulo, um programa de televisão na Bandeirantes e um documentário fizeram um contraponto e contribuíram para iniciar uma discussão de qualidade.

Quebrando Tabus, filme de Fernando Grostein Andrade, mostra de modo nítido o fracasso acachapante das ações políticas e de legislações organizadas sob a égide da guerra às drogas em resultados desastrosos, estatísticas e em bilhões de dólares gastos.

Participam do documentário Bill Clinton, George W. Bush, Drauzio Varella, Paulo Coelho, entre outros. Com dados contundentes e com o professor Fernando Henrique Cardoso de âncora, o documentário alcança um plano global, enfrentando a questão com franqueza. FHC tem a grandeza de fazer autocrítica da política de drogas desenvolvida em seus governos e diz textualmente: “Viver em um mundo sem drogas é utópico, isso nunca existiu, mas nós podemos reduzir os danos”. O filme informa sobre a eficácia das legislações que descriminalizaram as drogas.

Daí um passo para entender a liberação para o consumo de drogas menos nocivas, como a maconha, é feito para criar uma corrente contra o tráfico, contra drogas letais e legais, como o tabaco.

O artigo da Folha de S.Paulo a que me refiro é do psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, intitulado Dependência não se resolve por decreto (25/6/2011). Além de, pedagogicamente, fazer a diferença entre usuários recreativos e dependentes (somente uma minoria se tornam usuários compulsivos e suicidários), ele lembra que as recaídas nas internações compulsórias chegam a 95%.

A própria matéria da revista Veja mostra que os casos de pessoas e famílias submetidas a abjetas dependências de cocaína e crack, casos de fracasso e morte, foram de pessoas internadas inúmeras vezes e em longas internações com até um ano de duração.

O terceiro caso de contraponto foi o programa A Liga. Nele, Rafinha Bastos acompanhou os avatares de Treze, um jovem noia que vive para queimar pedra. Sua circulação pela cidade, o mundo que vai traçando e as paredes que vai desenhando para conseguir dinheiro. O programa entra na vida, na rejeição da família e na tensão das ruas e do tráfico. Treze é um jovem que tinha tudo para mudar a vida nas mãos de um terapeuta criativo e de um projeto inteligente. Aliás, o próprio Rafinha Bastos opera como um verdadeiro terapeuta.

A Liga ainda entrevista Robson, ex-drogado e hoje coordenador de uma clínica de tratamento de dependentes. As imagens mostram a alta dose de afetividade da família e o poder do amor de quem cuidou dele quando estava quase do outro lado da vida.

Mas quando se começa a falar um pouco melhor de drogas, se faz ainda pior. As notícias que chegam do Rio de Janeiro são verdadeiramente preocupantes. O próprio Conselho Regional de Psicologia local emitiu nota de dura manifestação discordante da resolução no 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social e da ação “policialesca”, que prescreve o recolhimento de adolescentes em situação de rua. Durante essa semana, foi também informado por um programa de rádio que pretendem fazer um consórcio municipal para construir um centro onde serão internados jovens de vários municípios do Estado do Rio de Janeiro.

Essa notícia, se verdadeira, é mais preocupante ainda. A prefeitura de São Paulo já descredenciou comunidades terapêuticas por não respeitarem direitos de pacientes. De fato, chegam às ruas pessoas acusando clínicas de praticarem choques elétricos, surras e outros maus tratos.

Nesse bojo de ideologemas existe a ideia de diminuir os direitos de nossas crianças e adolescentes, e o velho sonho do reformatório da época do Código de Menores.

Mas também chegam às ruas notícias das primeiras rebeliões ocorridas em clínicas supostamente bem fundamentadas metodologicamente.

Caso pretendam trancafiar muitos adolescentes em um mesmo local, esperem por problemas ainda maiores, como maus tratos e rebeliões.

Não sou contra a internação compulsória, mas ela deve ser feita em casos especiais, como operação de bombeiro, com ascendência afetiva e procedimentos integrados e continuados, que programem projetos de vida e operem desde a posição do cuidador.

E, para praticar internações compulsórias, não é preciso mudar as leis. Nem a lei da saúde mental, que contempla a internação compulsória por critérios técnicos e com ofício ao Ministério Público para observação dos direitos das pessoas. Nem também o Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê o direito à vida e à saúde e incorpora o conceito de desinstitucionalização, porque o ECA se forjou no antagonismo das instituições correcionais que se transformaram em escolas de crime, abuso de autoridade, maus tratos e rebeliões.

Para realizar internações compulsórias, não precisamos de novas leis, mas de vagas em hospitais gerais, em Centros de Atenção Psicossociais que funcionem 24 horas, situados nos locais onde as pessoas moram, com camas para atendimento intensivo, moradias integradas, de projetos atrativos, mais atrativos do que as drogas, de programas de moradias e de apoio familiar e comunitário, de arte e de beleza.

Mesmo assim, a experiência dos cuidadores nos prepara para o fracasso e a repetição. A sociedade capitalista funciona em favor das drogas e elas não são problema exclusivo da saúde.

Como cuidadores, precisamos nos livrar da onipotência. A mídia deveria observar a sua capacidade de incidir naquilo que chamamos conjunto droga: uso, circulação, tratamento, circulação de dinheiro, produção de falta, divulgação. E lembrar que as drogas operam no sistema perceptivo.

Jornalistas, terapeutas e autoridades públicas deveriam ter sempre presente uma frase que já ouvi do Dartiu Xavier da Silveira: “O contrário das drogas não é a abstinência, mas a liberdade”.


*Psicanalista, autor de Clínica Peripatética (Editora Hucitec).


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.