Autoentrevista

Sem título
Foto: FMagalhães

Trata-se aqui de mais uma novidade da coluna Seis Sentidos. Aproveito a correria de fim de ano com a esperança de que minhas amigas editoras da Brasileiros não percebam que, apesar de inédita, a autoentrevista é de forte teor narcísico e, como ideia, esdrúxula. Por isso, poderiam sugerir com a elegância que lhes é peculiar: “Auro, você não prefere escrever sobre Donald Trump e o fim do mundo?”. Ainda assim, assumo o risco por que hoje acordei com dor nas costas! Uma vida inteira carregando piano. Não importa, haverá de servir, num ou noutro ponto, para algum pobre coitado. Movimenta os pensamentos além de trazer alívio à lombalgia.

Desde que surgiu como proposta, há duas semanas, foram coletadas 120 horas de entrevista, o que exigiu muito do entrevistador, mas, sobretudo, do entrevistado. Os temas abordados foram diversos, banais do cotidiano e os de irresistível densidade filosófica.

A seguir, a edição dos melhores trechos (infelizmente, por enquanto, a íntegra não estará disponível ao leitor).

Entrevistador: Inicialmente, uma pergunta bastante ampla. O que você pensa da vida como ela está? Tem algum medo especial?

Entrevistado: Tenho ouvido os jovens comentarem que o bagulho é louco, o processo é lento e o delegado é nóia. Noutras palavras, lembro-me que durante toda a formação médica e também na especialização em Psiquiatria, não encontrei sofrimento comparável, em termos de intensidade, àquele de quem está entrando numa crise psicótica. O humor delirante é como um terremoto psíquico. A pessoa perde o chão, não reconhece mais o tempo, o espaço nem ele mesmo. Tudo está diferente, subitamente todas as referências do sujeito parecem sucumbir. A dor é insuportável e, por isso, se não for socorrido rapidamente, o suicídio passa a ser a solução final. O socorro também vem da própria mente. Ela apressa-se em fabricar um delírio, geralmente persecutório (“já sei o que está acontecendo, o jornaleiro da esquina sinalizou para os outros membros da quadrilha, com aquele gesto suspeito, a execução do plano macabro…”) que, por mais dramático que seja, tem como função explicar o caos, afinal, agora tudo faz sentido. Pois bem, suspeito que a humanidade no planeta esteja passando por um período de humor delirante. Acho difícil encontrarmos um lugar e um tempo para ficarmos perplexos e sustentarmos a perplexidade, para ficarmos confusos dentro de nós mesmos, mais ou menos numa boa, o que significaria um pouco de coerência com a confusão de fora.  Tenho muito medo dos delírios que tenderão a surgir e se estruturar.

Entrevistador: O que você gostaria de ser quando crescer?

Entrevistado: Rubem Braga. Luis Fernando Veríssimo também serve.

Entrevistador: O que significa amizade para você?

Entrevistado: Prefiro mostrar a amizade a ter que explicá-la. Meu amigo Paulo, que mora no Rio de Janeiro, veio me visitar certa noite, como costuma fazer sempre que passa por São Paulo. Chegou com a feição carregada. Tinha vindo da casa do pai, onde havia jantado e atualizado conversas e afetos. Surpreendeu-se com sua desenvoltura apesar da demência, que sempre que fraudava sua memória trazia junto algum embaraço. Perguntei-lhe porque então seu semblante brumoso. Contou-me: enquanto esperava o elevador, despedindo-se do pai, ele perguntou seu nome. “Que coincidência”, comentou, “tenho um filho que também se chama Paulo”. Os 30 segundos sustentados num silêncio compartilhado revelam a cumplicidade que pode ser sentida, sem ser falada, apenas entre dois amigos.

Entrevistador: Pode citar três coisas que sempre quis saber e ainda não sabe?

Entrevistado: Por quanto tempo mais a propaganda continuará sendo o negócio da alma? O que acontece com os vaga-lumes durante o dia, será que eles piscam e ninguém os vê? Como as sereias fazem amor?

Entrevistador: Algum lamento?

Entrevistado: Sim. Lamento ter descoberto tardiamente a magia da voz e da poesia de Leonard Cohen, uma semana antes de sua morte. Resta-me o consolo de fazer com sua obra o que faço com as batatinhas, deixo-as por último para comer demorado.

Entrevistador: Li em algum lugar que o paradoxo é o maior inimigo das certezas absolutas. Você poderia nos dar um exemplo de paradoxo?

Entrevistado: A louca bate, furiosa, o copo na pia e passa o dedo indicador da mão direita suavemente pela circunferência irregular do vidro quebrado. E então ela se acalma.

Entrevistador: O que você gostaria de evitar?

Entrevistado: Eu fico atento para evitar aquilo que aconteceu com o meu vizinho, que morreu aos 44 anos atropelado pelo destino.

Entrevistador: Finalmente, duas perguntas, digamos, pessoais, íntimas. E como temos, entre nós dois, inexorável simbiose, seria perfeitamente compreensível caso você prefira não responder. Qual a sua cor preferida?

Entrevistado: Magenta.

Entrevistador: E sobremesa?

Entrevistado: Tiramisu.


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