Nestes tempos obtusos, em que a ascensão do conservadorismo no País faz surgir personagens esdrúxulos como Fernando Holiday – jovem negro, egresso do Movimento Brasil Livre (MBL), que foi eleito vereador por São Paulo com um discurso de combate ao “vitimismo” dos negros, fim das cotas raciais e revogação do Dia da Consciência Negra, celebrado no último dia 20 –, é mais que bem-vinda a chegada às livrarias de um trabalho como 1976 Movimento Black Rio, livro-reportagem dos jornalistas Zé Octávio Sebadelhe e Luiz Felipe de Lima Peixoto.
Publicado pela editora José Olympio, com apoio do projeto Natura Musical, o trabalho de fôlego, que será lançado em São Paulo nesta quinta-feira (24) também integra uma série de ações da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro em celebração aos 40 anos do Movimento Black Rio. Ao longo de 252 páginas, a dupla de jornalistas reconstitui, com o auxílio de muitos personagens que viveram o período, a história desse fenômeno jovem consolidado com a profusão de bailes majoritariamente frequentados pela negritude carioca.
A efervescência em torno de festas que reuniam até 20 mil pessoas foi tão inspiradora que fez surgir uma cena local de bandas e compositores que amalgamavam os ensinamentos do funk e da soul music norte-americana com gêneros da música popular brasileira, como o samba e o baião. Maior expoente dessa mistura, a Banda Black Rio lançou em 1977 seu primeiro LP, Maria Fumaça (ouça), um clássico das fusões retroalimentadas pela cultura dos bailes, principal alicerce do movimento que deu aos jovens negros do Rio de Janeiro um sentimento inédito de altivez.
Nesse contexto, além da Banda Black Rio, surgiram artistas municiados do mesmo ímpeto de amplificar a soul music à brasileira criada por antecessores como Tim Maia, Toni Tornado, Hyldon, Cassiano e o grupo Dom Salvador & Abolição. Na nova safra, destaque para União Black, Carlos Dafé, Gerson King Combo, Don Beto, Beto Scala, Lady Zu, Márcia Maria, Tony Bizarro, Serginho Meriti, Copa 7, Junior Mendes, Almir Ricardi, Sandra de Sá e a dupla Robson Jorge e Lincoln Olivetti. Com ritmo explosivo, eles fizeram a trilha sonora dos blacks, como se autointitulavam os simpatizantes do movimento.
Mal documentada, tema de muitas reportagens preconceituosas feitas na época, a trajetória desses personagens é contada com propriedade no livro. No texto de apresentação da obra, Peixoto pontua argumentos que eram recorrentes para deslegitimar a importância do movimento, como a influência estrangeira e a aparente frivolidade de uma articulação movida a festança. “A história do Black Rio se encaixa, de certa maneira, numa situação parecida com os escassos registros históricos da cultura negra nacional, obliterados pela amnésia reinante da memória imaterial, característica comum deste País. Pouco se sabe sobre o que foi a influência do soul americano nos subúrbios do Rio de Janeiro no início dos anos 1970. Alguns afirmam não ter sido um movimento autêntico, organizado. Outros alegam que foi apenas um momento em que a juventude negra resolveu dançar uma música diferente”, diz Peixoto.
Pelo conturbado contexto histórico em que surgiu, o jornalista reitera a importância do Black Rio. “Num período ditatorial, a representatividade desse movimento não teve parâmetros. Os negros daqui se mostraram contextualizados num âmbito internacional, estavam em sintonia com o que acontecia pelo mundo. E, através dessa identidade de raça, o Movimento Black Rio se tornou um fenômeno sociológico e político incomparável. Um divisor de águas.”
A crítica de superficialidade da proliferação dos bailes no subúrbio carioca chegou a motivar um protesto do sambista Candeia, manifestado na música Sou Mais Samba (veja vídeo), lançada em 1977. Provocativo, na letra, o partideiro ironiza: “Esse som que vem de fora não me apavora / Nem rock nem rumba / Pra acabar com o tal de soul / Basta um pouco de macumba”. Na última estrofe, depois de afirmar “quem presta à roda de samba não fica imitando estrangeiro”, Candeia pondera: “Calma, calma minha gente / Pra que tanto bambambã / Pois os blacks de hoje em dia são os sambistas de amanhã”. O manifesto anti-Black Rio de Candeia, que contou com a colaboração de Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara, é documentado no 15° dos 28 capítulos do livro.
O embate “samba versus soul” chegou a contar com a inusitada opinião do sociólogo Gilberto Freyre, que, em artigo publicado no Jornal do Brasil, alertou “a nação para o perigo da mistura de negros norte-americanos com os brasileiros negros que possuem um movimento chamado Black Rio, com a finalidade de transformar a música negra – o samba, principalmente – em música de protesto”.
Na introdução de 1976 Movimento Black Rio, Sebadelhe reafirma o equívoco de menosprezar as intenções de jovens negros que, ao contrário do que pensavam os que compartilhavam da opinião da velha-guarda do samba e do autor de Casa-Grande & Senzala, não tinham como mote único o hedonismo alienante da dança. “O Movimento Black Rio teve características tão peculiares que não apenas mudaria as formas de produção cultural da cidade, mas também os hábitos de convivências e as relações do lugar. Essa particularidade uniu jovens negros de outros estados com o mesmo propósito: o direito de se expressar livremente, absorver, produzir cultura e se divertir. Surgia uma mocidade que questionaria veementemente estatutos e modelos arcaicos da civilização brasileira, traços de uma sociedade forjada em severos conceitos da era da escravidão.”
Além da importância textual, o livro também apresenta ao leitor uma rica pesquisa iconográfica, com filipetas, cartazes e fotografias em preto e branco que evidenciam o sentimento de feliz irmandade que havia entre os adeptos da cena difundida em festas promovidas por equipes como Baile da Pesada, Soul Grand Prix, Dynamic Soul, Soul Maior, Cash Box, Black Power e Furacão 2000.
Neste mês de celebração ao espírito aguerrido de Zumbi dos Palmares, temos aqui um livro essencial tanto para
desinformados, como o vereador Fernando Holiday, quanto para a negritude que sempre defendeu o direito de trazer à tona sua história e preservá-la.
CONTEÚDO!Brasileiros
– Nas edições 1 e 2 de CULTURA!Brasileiros, publicamos reportagens sobre a história dos Bailes Black dos anos 1970 em São Paulo e sua influência para a geração de DJs que despontaram na cidade a partir do final da década de 1990. Abaixo, links das duas reportagens.
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