Era uma vez um mecânico… Pensando bem, acho que não. Vamos recomeçar. Era uma vez um jornalista… Também não é o certo. De novo. Era uma vez um fotojornalista. Também é fraco, muito redutivo. Ok. Era uma vez um contador de histórias que, durante 40 anos, conheceu, escreveu e fotografou o Brasil e terras estrangeiras. Agora sim, dá para começar.
Assim é o livro que o fotojornalista Ricardo Chaves, gaúcho de Porto Alege, safra 1951, mais conhecido como Kadão, o afetuoso e gentil Kadão, acaba de lançar, A Força do Tempo. Histórias de um Repórter Fotográfico Brasileiro. O livro é muito mais do que isso. Uma viagem pelo Brasil, pelo mundo. Uma história contada por alguém que durante quatro décadas acompanhou os principais acontecimentos mundiais, por meio de suas fotografias.
Ao mesmo tempo, de maneira bastante corajosa, Kadão também nos traz, na narrativa, sua vida particular, nos relata como entrou nesse mundo da imagem – acima de tudo, no mundo fotojornalístico. Para quem o conhece, é impossível ler o livro sem rir, sem se lembrar de histórias e pensar: “Eu estava lá, sei do que ele está falando”. Esse é o preciocismo. Kadão é Kadão!
Sua narrativa rica de detalhes perpassa pela política e pela cultura do Brasil e do mundo, mas ao mesmo tempo nos apresenta uma memória afetiva, em que Kadão se recorda de seus antepassados, de seu pai, sua mãe, seus avós, o começo de sua vida sempre misturada com a política, por sua paixão pela linda Loraine, sua amiga, companheira e seu amor, seus filhos, Letânia e Leonel. Seu pai teve influência fundamental na escolha de sua profissão. Hamilton Chaves, jornalista e político (foi vereador na capital gaúcha), coordenou a Rede da Legalidade, rede radiofônica nacional de 250 emissoras que deu voz ao governador Leonel Brizola em 1961, na defesa da Constituição e na posse de João Goulart, após a renúncia do presidente Jânio Quadros. Como escreve o jornalista Luiz Cláudio Cunha no prefácio do livro: “Hamilton Chaves, então secretário de imprensa do governador, instalou o microfone com que Brizola mobilizou o povo gaúcho, conquisou a adesão do III Exército, quebrou a unidade militar, frustrou o golpe e garantiu a posse de Jango na Presidência”.
Em 1964, seu pai, secretário municipal de Educação e Cultura, teve seus direitos políticos suspensos e o mandato cassado, ficando um tempo preso. Foi assim que, aos 13 anos, Kadão teve seu embate com a política.
Talento raro, Kadão fotografa como escreve, escreve como fotografa. E por meio de suas narrativas acompanhamos coberturas fundamentais que nos ajudam a entender o País que vivemos hoje. Kadão é um perguntador. Não se satisfaz com as aparências. Quer mais. A qualquer afirmação indaga: Por quê? Foi esse seu jeito que levou seu amigo fraterno, o jornalista Luiz Cláudio Cunha, a afirmar: “Kadão, um chato”. Na verdade, não é uma crítica, mas um elogio! Muito raro ou difícil de entender neste mundo de redes sociais, em que tudo é levado tão a sério e não existe mais espaço para a ironia, a alegria e a brincadeira entre amigos.
Luiz Cláudio Cunha se refere a Kadão como um verdadeiro jornalista que não se conforma com o que vê, com a informação que recebe, com o que está vendo, mas que quer ir além. Pergunta o tempo todo. Foi esse seu temperamento que o ajudou a desvendar o sequestro, em Porto Alegre, dos uruguaios Universindo Rodríguez Díaz e Lilian Celiberti, em novembro de 1978, durante a terrível e ilegal Operação Condor, aliança entre os países do cone sul, para prender militantes políticos contrários aos governos militares. A história foi levantada em primeira mão pelo próprio Cunha e pelo fotógrafo JB Scalco. Mas foi Kadão, num segundo momento, que insistiu em continuar investigando o desaparecimento do casal: “O sequestro, certamente, seria desvendado por minha equipe, eventualmente sem a minha presença, mas a investigação não chegaria a lugar nenhum sem a insistência, o dedo e o olho de Kadão”, escreve Cunha. Com sua vontade de desvendar o caso por meio de fotografias, como a da escrivã do Dops que “cuidou” dos filhos dos sequestrados, e desmascarando o policial Irno, que havia mudado de visual, foi possível envolver a polícia brasileira na história.
Inesquecíveis suas coberturas esportivas, políticas, de tragédias e seus belos retratos. Como não se emocionar com sua primeira cobertura da eleição presidencial no Uruguai, nos anos 1970, quando só conseguiu viajar porque seu pai lhe deu autorização por escrito, o que lhe permitiu sair do Rio Grande do Sul para o país vizinho com apenas 20 anos?
No livro, Kadão, como não poderia deixar de ser, não nos narra só suas façanhas vencedoras, mas seus medos e fracassos, se assim podemos chamá-los, mas achamos que não. E é dessa forma que ele nos conta como foi sua reportagem no atentado do Riocentro, em 1981, que coincide com sua chegada como correspondente da revista Veja no Rio.
Tambem é dessa forma e com muito bom humor que ele relembra seu contato com as “celebridades cariocas da época”, como a reportagem que fez sobre a então promoter Danuza Leão, que trabalhava na noite carioca – que, na época, fervia – com o empresário Ricardo Amaral. Durante alguns dias acompanhou a rotina de Danuza. Um mundo novo para quem estava habituado a cobrir política, ditaduras latino-americanas e governos brasileiros.
Mas a graça do texto é que Kadão se inscreve na estética deliciosa das crônicas ou dos memorialistas. Um livro para quem conhece os últimos 40 anos do Brasil ou, como escreve o crítico de fotografia Rubens Fernandes Junior: “Ricardo Chaves é da época em que o fotojornalismo assumiu definitivamente sua condição de trazer em cada imagem informações que, de alguma forma, impactassem o leitor”.
Kadão faz isso, recheando cada história com sua história pessoal, o namoro, o nascimento dos filhos, a morte de seu pai. Uma crônica imperdível. Ah, sim, retorno ao começo do texto… Quando adolescente, Kadão pensou em ser mecânico. Ainda bem que optou pela fotografia!
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