Na segunda metade dos anos 1960, James Brown já ostentava o título de “irmão número um do soul” da América. Seu empenho e dedicação a uma carreira iniciada na década anterior renderam-lhe fama, fortuna e a legenda de “o homem que mais trabalha no showbizz“. Apesar disso, no mercado europeu, sua música ainda era o tesouro exclusivo dos DJs e mods mais descolados. Quando partiu para a Inglaterra para uma série de shows – que deveriam estabelecer definitivamente sua carreira no velho mundo -, um dos boatos que circulava era de que a viagem tinha outro objetivo: uma operação para mudança de sexo! Brown pretendia se submeter à cirurgia para assumir o romance com seu parceiro de longa data Bobby Byrd, com quem pretendia se casar. É claro que a história era falsa.
O interessante, porém, é saber que o responsável por arquitetar toda a trama e espalhar a fofoca nos bastidores do burburinho midiático da indústria musical não era ninguém menos que o próprio James Brown! Sua lógica era a seguinte: embora o mercado americano já estivesse ganho, um espertinho qualquer poderia aparecer durante sua ausência e criar concorrência. Como não queria ninguém ciscando em seu quintal, era preciso manter seu nome em evidência enquanto estivesse fora. O boato escabroso foi sua estratégia para continuar em pauta. A história é contada com detalhes em A Vida de James Brown, biografia escrita pelo jornalista Geoff Brown e que acaba de ser lançada no Brasil pela Madras Editora – a primeira edição é de 2007, publicada pela Omnibus Press, clássica editora britânica que, desde os anos 1970, produz livros sobre música e seus astros. O episódio revela apenas uma das muitas facetas de um dos nomes mais importantes e, ao mesmo tempo, controversos da música popular norte-americana do pós-guerra.
Criador do funk e responsável por estabelecer novas regras no mercado musical – sua recusa em aceitar que um show deva se limitar à mera reprodução das músicas do disco originou as apresentações-espetáculo -, para o bem e para o mal, James Brown influenciou tudo o que foi feito em música pop depois dele. Se a obra musical tem aceitação e reconhecimento unânimes, tanto por parte do público quanto dos especialistas, o homem divide opiniões. Da parte de seus músicos e amigos, o sentimento parece um misto de admiração e rancor. Politicamente, tomou partido de causas duvidosas, por exemplo, deu apoio à Guerra do Vietnã e pediu votos para Richard Nixon. Isso, associado a sua boa relação com o governo, fez com que grupos radicais, como os Black Panthers, o encarassem como a reencarnação do Pai Tomás.
O que torna o lançamento especial é a forma como o autor refaz os passos que levaram à construção do mito no contexto histórico, sem tomar partido ou tecer teorias que justifiquem as atitudes de seu personagem.
De roubos de carros à conquista do mundo
O livro narra a trajetória de James Brown da adolescência errática entre Macon e Toccoa, na Geórgia, quando o jovem vivia se equilibrando em uma linha fina entre ser encarcerado e a conquista do mundo. Sua primeira passagem pela prisão por assalto a mão armada só não durou mais tempo devido à intervenção dos pais de Bobby Byrd, que assumiram a responsabilidade como tutores do garoto arredio e criador de caso.
Embora soubessem o quão difícil seria a missão, eles acreditavam no talento do parceiro musical de seu filho. Já nessa época, seu potencial era notado, tanto pelas pessoas que o cercavam quanto por ele mesmo, o que de certa forma o atrapalhava. A arrogância, típica dos que têm consciência de seu valor, contribuía para atrair encrencas. Foram tempos difíceis, mesmo tendo na música o objetivo para a vida, dividindo-se entre ensaios e apresentações com The Famous Flames, ao lado de Byrd, e cantar no coral da igreja. Mas também de bicos, subempregos e o roubo e desmonte de carros para faturar um extra.
De seu primeiro sucesso com Please, Please, Please (1956) e a conquista do estrelato nas décadas de 1950 e 1960, passando pelo processo criativo que deu origem a alguns dos hits que entraram para a história e nosso imaginário, como Papa’s Got a Brand New Bag, I Got You (I Feel Good), It’s a Man’s Man’s World, Get Up (I Feel Like Being a) Sex Machine, entre muitos outros, o livro traça um relato detalhado do músico que amava a fama e suas vantagens, mas que também encarava as dificuldades em lidar com ela.
Em um dos trechos mais emocionantes, fala sobre o acidente aéreo que vitimou seu amigo na vida e rival nos palcos, Otis Redding, juntamente com sua banda The Bar-Kays, em 1967. Abatido, Brown aceitou de pronto ao convite para ficar à frente na condução do caixão na cerimônia funerária. Chegando ao local, ficou chocado com a atitude dos fãs enlouquecidos que, mesmo em um momento tão difícil, o cercaram, agarraram e chegaram a rasgar suas roupas, desesperados por algo de seu ídolo. Quando finalmente conseguiu se desvencilhar da multidão, foi impedido de entrar pelos seguranças. Na confusão, tinha perdido sua credencial. Apesar de os seguranças saberem quem ele era, as ordens eram claras: para preservar a família, ninguém deveria entrar sem estar credenciado, restando a Brown voltar para casa sem poder se despedir do amigo.
Negro e com orgulho
Não é exagero incluir o nome de James Brown entre os que mais contribuíram para a emancipação da América negra. Ele ergueu como poucos a bandeira do antirracismo em entrevistas e composições que levantavam o moral dos seus e se tornaram hinos na luta pelos direitos civis, como (Say it Loud) I’m Black and Proud!.
Defendia que a revolução estava na educação, não nas armas. Seu carisma e poder de persuasão sobre as comunidades negras faziam dele quase tão influente quanto o doutor Martin Luther King. E é justamente com o assassinato de King que tal característica fica evidente. Se as ruas pareciam barris de pólvora naqueles dias turbulentos, a fagulha que provocou a explosão foi fornecida no fatídico 4 de abril de 1968, quando o pastor e ativista foi alvejado por tiros em um atentado covarde. Na mesma data, o músico se apresentaria em Boston para um show muito aguardado. Cancelar o evento poderia acirrar ainda mais os ânimos. A solução encontrada foi exibi-lo ao vivo pela TV, em um acordo financeiro entre a prefeitura, James Brown e os organizadores. Como ninguém perderia a oportunidade de assistir ao Mr. Dynamite da poltrona de casa, Boston foi a única cidade a não registrar tumultos naquela noite.
No dia seguinte, representantes do governo estavam a caça de Brown para que gravasse vídeos que foram veiculados nas TVs do país, nos quais pedia paciência e reforçava seu poder conciliador. Embora bem explorado aqui, o episódio é tão importante que uma leitura de O Dia em que James Brown Salvou a Pátria, de James Sullivan, livro lançado aqui pela Zahar Editores, serve como complemento. Apesar do que sugere o título em português – única falha da editora, que deveria ter mantido o original Black and Proud – The Life of James Brown -, não se trata de uma biografia com detalhes da vida pessoal do cantor.
Jornalista experiente, há 20 anos Geoff Brown escreve sobre música. Especialista em soul e r’n’b, foi editor da revista britânica Black Music e colaborador de periódicos importantes, como a Mojo Magazine. Apoiado por sua experiência e profunda pesquisa, concentrou seu trabalho sobre James Brown na música. Estão aqui curiosidades de estúdio, conversas de bastidores de turnês e os processos envolvendo direitos autorais e contendas judiciais com gravadoras.
Tudo analisado no contexto histórico dos acontecimentos e ancorado por depoimentos de personagens que conviveram com Brown no calor do momento, principalmente os integrantes de suas bandas mais notórias, The Famous Flames e os lendários The JB’s. Para completar, um rico material iconográfico, incluindo fotos poucas vezes vistas e uma discografia com os títulos essenciais de James Brown e seus associados. Também autor de Michael Jackson – Uma Vida na Música, lançado pela Madras, em seu livro Geoff Brown faz um relato honesto e fiel da carreira de Mr. Dynamite.
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