As duas edições recentes da Bienal de São Paulo, tanto Como (…) Coisas que Não Existem, de 2014, quanto Incerteza Viva, que segue no pavilhão do Ibirapuera, possuem várias coincidências conceituais, entre elas o incentivo à criação de novas obras, realizadas especificamente no contexto das exposições.
O fomento à produção, portanto, parece ser uma característica fundamental que a Bienal de São Paulo passou a incorporar diante de uma situação de certa instabilidade no circuito das artes. Claramente, o setor mais organizado e com mais visibilidade é o mercado, com as galerias e feiras, que se tornaram locais de encontro ao mimetizarem, nos últimos tempos, algumas atividades que o próprio sistema de bienais criou como forma de repensar esse sistema.
Seminários, performances, ciclos de filmes e mostras com curadoria se tornaram comuns em feiras, como estratégia para dar consistência e glamour a um evento basicamente mercantil, que interessaria apenas a quem vende e compra. Foi com a Art Basel Miami Beach, em 2002, tendo à frente Samuel Keller, que feiras se renovaram e buscaram criar um novo perfil, não só com conteúdo, mas também em festas com celebridades, o que virou tendência nas feiras do mundo todo.
Em São Paulo, os museus não têm dado conta de fomentar a produção artística. O Museu de Arte Moderna de São Paulo, por exemplo, tem basicamente exposto seu acervo como estratégia de economizar em suas mostras, e algo semelhante vem ocorrendo no MAC-USP e na Pinacoteca do Estado, que raramente, aliás, exibem novos trabalhos de artistas. Muitas vezes, quando o fazem é graças a artistas que conseguem apoio em editais públicos independente das instituições.
Esse cenário torna-se mais lúgubre quando se recorda o papel que o MAC assumia nos anos 1970 e 1980, como local frequentado por jovens artistas, sob o estímulo de Walter Zanini, com as JACs (Jovem Arte Contemporânea), mostras organizadas anualmente no museu entre 1967 e 1974. A precariedade institucional da segunda metade do século XX, que garantia a muitos artistas ocuparem museus já que o faziam por iniciativa própria – Zanini chamava o MAC de museu-casa –, foi trocada por um significativo aporte de leis de incentivo que, contudo, não revertem a artistas, mas a produtores culturais, especialmente aqueles patrocinados por corporações financeiras.
Com isso, a Bienal acabou por se tornar um dos poucos espaços para a produção de novas obras que podem ser de fato consideradas experimentais. Afinal, raras são as galerias que não apresentam objetos decorativos que possam ir direto para as paredes de colecionadores.
Nesse sentido, é significativo constatar que essa estratégia de abertura para o experimental partiu de times curatoriais com profissionais vinculados a instituições museológicas sólidas: Jochen Volz, o curador da edição atual, nos últimos anos trabalhou na Serpentine Galleries, de Londres, além de manter-se ligado a Inhotim, enquanto Charles Esche, um dos curadores da edição passada, era diretor do Museu Van Abbe, na Holanda, ao qual segue filiado.
Com isso, pode-se perceber como os responsáveis pelo sistema institucional deram conta de que o local de risco de fato é a Bienal, e parte das críticas atribuídas a essa edição se deve à constatação desse tipo de estratégia. No caso de Incerteza Viva, em que a maioria das obras foi feita por comissionamento dos curadores, não há como garantir um resultado totalmente de sucesso. Mas deve se cobrar isso em arte contemporânea? Erika Verzutti nunca havia feito trabalhos murais de grandes dimensões, assim como Lais Myrrha nunca havia construído estruturas monumentais, e nem Cristiano Lenhardt havia realizado uma performance de grande escala. Só a possibilidade de experimentação desses artistas já vale sua participação, uma vez que não é pelo critério de satisfação de uma ou outra personalidade ou de atenção do público que uma obra contemporânea deve ser avaliada.
A dificuldade, contudo, seria em como conciliar a vontade de um público amplo, portanto não acostumado à arte contemporânea, que a Fundação Bienal almeja, com ênfase em uma produção que poderia ser menos acessível. Quem visita a mostra agora percebe que não há uma má vontade aparente do público. Quem de fato tem reclamado são figuras com acesso aos meios de comunicação, que parecem querer na Bienal o mesmo tipo de arte comportada das feiras.
Se fosse assim, a cidade só teria um tipo de produção e a monotonia seria a tônica dominante. Em sua edição de 1910, o organizador da Bienal de Veneza retirou a única obra de Picasso do pavilhão espanhol com medo de que seu arrojo chocasse o público e, só em 1948, Picasso foi visto de fato na mãe das Bienais. Três anos depois, em 1951, Picasso seria visto na primeira edição da Bienal de São Paulo, que em sua segunda edição apresentou não só sua obra-prima, Guernica, como um conjunto de 74 obras do artista espanhol.
O arrojo é marca da Bienal de São Paulo, e o que as atuais edições estão apresentando segue apenas a tradição da mostra em se ocupar do presente acima de tudo. Se certas obras questionam a figura do artista e do próprio curador em detrimento de produções culturais mais complexas, é preciso buscar compreender o que isso significa em vez de ficar buscando fórmulas simples que determinem o que é arte e que se baseiem em gostos meramente pessoais.
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