Curitiba jazz clube

O escritor e jornalista Roberto Muggiati, meio que de pilhéria, costuma chamar Curitiba de “pequena maçã”, uma analogia a Nova York (a Big Apple) e sua cena de jazz. Uma brincadeira, claro, mas não totalmente gratuita. “Nunca houve nada como a 52nd Street de Nova York, a Disneylândia do jazz. Mas uma concentração de shows de jazz, como a que ocorre na Trajano, merece ser exaltada”, diz Muggiati, referindo-se à Rua Trajano Reis, em Curitiba, que nos últimos anos tornou-se endereço certeiro para os apreciadores do gênero.

Incrustada no São Francisco, bairro boêmio no centro histórico da cidade, a rua abriga uma trinca de casas que injetaram novo ânimo a um cenário de jazz com uma tradição de mais de seis décadas.
“O jazz é um gênero com pouco espaço porque é um tipo de música especial, em que é preciso muita entrega do músico e do público. Mas o público de Curitiba tem procurado esse tipo de música, principalmente os jovens, que passaram a conhecer mais o gênero a partir dos shows que rolam por aqui”, explica Ieda Godoy, proprietária do Wonka Bar, uma das casas da Trajano Reis que deu novo fôlego ao jazz local. Inspirado nos porões de New Orleans, o Wonka dedica espaço fixo ao gênero desde sua abertura, em 2005.

Hoje, quem comanda as noites de jazz no Wonka é Jeff Sabbag, filho de uma das lendas locais do jazz, o pianista Gebran Sabbag. “O que tem ajudado a formar músicos são as casas noturnas, que exibem o jazz alguns dias da semana e provocam o interesse de outros profissionais, que aparecem para ouvir e até participar das jam sessions“, explica Jeff.
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Vizinhos do Wonka, o Blues Velvet e o Espaço Cultural Alberto Massuda (que funciona em um casarão tombado pelo patrimônio histórico da cidade) são endereços clássicos para os amantes do improviso. Mas há muitos outros redutos interessantes, como o Original Beto Batata e o Full Jazz Bar. Além disso, existem os festivais, que sempre agitam a cena.

“Acho o Saul Trumpet tocando standards no Massuda um must. E as jam sessions das quintas-feiras no Wonka são, literalmente, infernais”, afirma Muggiati, autor do livro Improvisando Soluções e colunista do Caderno 2, do Estadão, onde escreve sobre jazz.

Era do jazz
Pergunto então ao pianista Jeff Sabbag de onde vem a verve jazzística de Curitiba. Com a autoridade que seu DNA e sua promissora carreira lhe permitem, o pianista recorre à história: “Talvez pela quantidade de músicos de formação erudita que temos na cidade devido à colonização europeia”. E Muggiati completa: “Cidade cosmopolita, sem tradição local forte – o Rio teve o samba -, importou modelos”.

O documentário Música Subterrânea (2009), do cineasta Luciano Coelho, atesta a relevância histórica da cena jazzística de Curitiba. O filme é construído por meio de bate-papos entre os músicos em bares, teatros e locais de ensaio, antes e depois de apresentações. Cinco gerações do jazz curitibano estão lá, além de artistas que passaram pela cidade e deixaram sua marca, como Arismar do Espírito Santo e Nelson Ayres. Com a mesma espontaneidade da música originária de New Orleans, os músicos reconstroem um mosaico do efervescente cenário musical dos anos 1950 e 1960, período no qual o Paraná vivia a pujança econômica do café. “A vontade de fazer esse filme partiu do meu amor pela música e também por ter acompanhado o jazz curitibano desde garoto. Minha família era vizinha da família do Gebran Sabbag, e eu ficava com o ouvido atento ao que acontecia do outro lado da rua, onde tocavam grandes músicos da cidade”, diz Coelho.

Música Subterrânea resgata também o circuito de bares e clubes em que músicos, até então desconhecidos, se apresentavam. Jovens como o trombonista Raul de Souza (carioca de nascimento, mas curitibano por opção) e o baterista Airto Moreira, que incendiaram as noites frias de Curitiba e depois conquistaram fama e respeito no exterior. Moreira, entre outros feitos, participou da gravação de Bitches Brew, o clássico álbum de jazz fusion de Miles Davis. Raul de Souza, por sua vez, flanou por incontáveis paragens musicais, virou cidadão do mundo, mas ainda mantém raízes em Curitiba. Tocou com meio mundo do jazz, de Sergio Mendes a Sonny Rollins, e fez carreira nos Estados Unidos e na Europa. Em meio a nomes que brilharam fora da cidade e do País, Música Subterrânea também vai atrás das pratas da casa que preferiram ficar na cidade, como o guitarrista Reamir Scarante e os pianistas Beppi e Fernando Montanari, que ainda circulam pela noite de Curitiba.

“Mas cito outras feras: a pianista Marilia Giller, o clarinetista Sérgio Albach, o saxofonista Hélio Bandão e o baixista Glauco Sölter. E não dá para esquecer as presenças sagradas de Waltel Branco e do bruxo Hermeto Pascoal, que mora em Santa Felicidade (bairro italiano-gastronômico de Curitiba)”, emenda Muggiati. Waltel Branco, hoje com 81 anos, fez os arranjos do primeiro disco de João Gilberto, Chega de Saudade, marco inicial da bossa nova.

Além desses fantásticos desbravadores, há outros ingredientes que hoje ajudam a temperar o caldo musical da cidade. Nos últimos anos, Curitiba tem sido palco de uma série de projetos relacionados à música: a Oficina de Música da cidade, que em 2012 completa 30 anos e se tornou um evento nacional, a Orquestra à Base de Sopro, que está ganhando notoriedade, festivais de jazz, como o Curitiba Jazz Meeting, são realizados com frequência, e o Conservatório de MPB, com décadas de tradição. Mas nem toda nota musical é perfeita na cidade. “O poder público deveria incentivar mais. O que acontece em Curitiba é fruto de iniciativas dos músicos e donos de bares”, diz Helinho Brandão, saxofonista engajado em promover o jazz local.

“Acho que temos hoje a melhor geração de músicos que a cidade já viu, não só no jazz, mas em todos os estilos. Somos exportadores de grandes músicos que moram na Europa e nos Estados Unidos, como o guitarrista Rafael Moreira Curi, que está tocando com Stevie Wonder”, diz Sabbag, que faz parte da banda Na Tocaia, que acompanha Raul de Souza.

Em 2006, eles lançaram o elogiado álbum Jazzmim, pela gravadora Biscoito Fino. O sucessor do disco já está gravado e será lançado ainda este ano. Em setembro, após excursão pela Europa, a banda se apresentará no lendário clube Birdland, de Nova York.

“Essa nova geração curitibana surgiu em uma época em que o jazz já havia feito tudo o que tinha a fazer, do cool ao hard bop, do free jazz à fusion. São todos músicos de formação sólida e sabem do papel que lhes cabe na música improvisada atual. O fato de terem se tornado a banda Na Tocaia, que acompanha o Raul de Souza, é prova da sua qualidade”, diz Muggiati.


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