Quando morrem os elefantes

Este texto faz parte do especial 2017 x 24 – visões, previsões, medos e esperanças da edição número 113 da Revista Brasileiros, onde articulistas e colaboradores foram convidados a pensarem sobre o que e o quanto podemos esperar – se é que podemos – para nosso País no próximo ano.  

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Fazer previsões acerca de nossa vida é o que nos tranquiliza, apesar de sabermos que o futuro depende de vicissitudes que só governamos parcialmente. Fazer o necessário nem sempre é o suficiente. Mas há como saber, ao menos, que estamos caminhando na direção certa? A significação de nossos atos se define de acordo com a posição que eles venham a ocupar no discurso social. Nossa subjetividade está feita tanto do individual quanto do coletivo. A bússola de nossos desejos não pode ignorar para onde aponta o norte da cultura que habitamos. 

Cada civilização esteve regida por determinados critérios para definir o valioso e a verdade. Leis definiram, em cada uma delas, os limites entre o humano e o não humano. Depois de atravessarmos alguns milênios em que essas leis se configuravam pela conveniência dos grupos de poder (cidadãos versus bárbaros, verdades sagradas versus heresias, amos versus escravos), chegando à modernidade, acreditamos que estávamos entrando na idade da razão. Essa idade habitualmente idealizada como a saída de uma adolescência de ferozes paixões para dar prevalência à igualdade e à fraternidade, embora tivéssemos de pagar para isso com um bom pedaço de nossa liberdade de gozar. 

Nossa civilização se chama “economia de mercado”. É por isso que tudo nela, com enorme facilidade, é transformado em objeto mercantil independentemente de sua textura ou consistência originária. Seja pedra, seja peixe, presa de elefante, terra, água, madeira, flor, noticia, saber, chifre de rinoceronte, sombra, sol, luz, gato, cachorro, saúde, tempo de vida, lugar de enterro, ser humano, tudo tem a sua cotação e, portanto, precisa ser devidamente administrado. Porém, as leis que regem tais transformações desvirtuariam a realidade se elas não reconhecessem seus limites: um elefante não é idêntico a uma moeda; posso comprar uma lâmpada com uma nota de US$ 20, mas não posso iluminar minha leitura noturna com uma nota de US$ 20; um aposentado pode equivaler a três salários mínimos no registro burocrático do INSS, mas três salários mínimos não são um avô, embora sejam necessários três salários mínimos para manter vivo um avô. 

Não reconhecer o limite dessas leis que regem tais transformações produz um discurso delirante. Por exemplo, pode levar a pensar que quando poupamos uma moeda estamos poupando um elefante, que quando guardamos US$ 20 estamos guardando luz ou quando poupamos no orçamento público três salários mínimos, estamos poupando um avô. Em verdade, tal discurso delirante consiste em se negar a reconhecer que a identidade entre objeto mercantil e sujeito leva à supressão deste. Quando as contas públicas ocupam o primeiro lugar na preocupação dos governantes, elefantes morrem, a luz se apaga, os avôs desaparecem. 

A pós-modernidade nos leva a perceber que a razão em si mesma não é garantia de nada. Suas consequências dependem do discurso que a instrumentalize e a que coisa ela venha a ser aplicada. Assim o sujeito pode ser a vítima de uma conta correta, a natureza pode ser devastada por um cálculo econômico perfeito.

A psicanálise nos permitiu descobrir que os delírios não são divorciados da razão e, como se isso fosse pouco, eles não são persuasivos, são imperativos porque nunca duvidam de suas certezas. 
Eis ali que nasce nossa neurose de destino: nosso futuro está completamente nas mãos de Outro (com maiúsculo porque ele tem mais poder que qualquer semelhante). Vivemos com a sensação de que nada que fizermos poderá mudar nossa inexorável caminhada em direção ao fracasso, ao território da impossibilidade para nossos desejos mais elementares. Encerrados no desfiladeiro de um discurso implacável nos transformamos, um a um, em objetos mercantis.

*Alfredo Jerusalinsky é psicanalista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e da Associação Lacaniana Internacional


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