Achille Mbembe é um filósofo, historiador e intelectual camaronês que vive em Johanesburgo, na África do Sul. Em entrevista, ele fala sobre xenofobia, nacionalismo, o lugar do estrangeiro, os perigos de “culturas únicas” e espaços de articulação para a diferença. Mbembe é também professor-pesquisador no WISER, o Instituto de Pesquisa Social e Econômica da Universidade de Witwatersrand, e , ao lado de Felwine Sarr, organizador dos Ateliês do Pensamento (Dakar e Saint-Louis). PhD pela Universidade Sorbonne, lecionou na Columbia University em Nova York, na Brookings Institution em Washington D.C., na Yale University em New Haven e está atualmente na Duke University.
Minha primeira observação tem a ver com a questão da diferença.
A questão é: O que queremos dizer com a palavra diferença? Por que ela está tão naturalizada? E o que devemos fazer com a diferença? A premissa aqui é de que a diferença tem que ser reconhecida, aceita e ao mesmo tempo transcendida. Pois a suposição – não apenas no mundo em que vivemos hoje, mas também em períodos anteriores da história humana – é de que a diferença é um problema com o qual se precisa lidar. Então o primeiro movimento que poderíamos desejar fazer é questionar tal suposição. Por que é que achamos que a diferença é um problema? Por que ela não é simplesmente um fato da realidade? A diferença é um problema apenas se acreditarmos que a uniformidade é o estado normal das coisas. A diferença se tornou um problema político e cultural no momento em que o contato violento entre povos, por meio da conquista, do colonialismo e do racismo, levou alguns a acreditarem que eram melhores que outros. No momento em que começamos a fazer classificações, institucionalizar hierarquias em nome da diferença, como se as diferenças fossem naturais e não construídas, acreditando que são imutáveis e, portanto, legítimas, aí sim estamos em apuros.
Talvez não apenas melhor, mas diferente no sentido de a pessoa achar que todo mundo tem que ser como ela?
Sem dúvida o pressuposto é de que todo mundo tem que ser “como eu”. E quem não for como eu tem um problema ou, mais precisamente, é um problema. Há algo errado com ele ou ela. Se o objetivo é construir um mundo comum, não podemos começar com perguntas como: “Por que eles não são como eu?” “Por que não se comportam como eu?” “Por que veneram deuses esquisitos?”. Temos que começar com um acolhimento geral da singularidade e da originalidade. A diferença é aquilo que me falta. Precisamos sair desse impasse em que nos instituímos como norma em contraste com a qual todo o resto é anormal, ou desviante, e portanto problemático. O poder de instituir o que se considera a norma tem que ser redistribuído de modo equânime. E também a capacidade de contestar a norma.
Caso contrário, na maior parte do tempo, a diferença surge sob vários nomes. Ela surge sob o nome de “tradição”, de “cultura”, de “religião”, de “gênero” ou “raça”, etc… Sob certas circunstâncias, alguns abraçam a diferença no sentido de querer preservar seus modos de ser, ou o que chamam de seus modos de vida, por acreditar que tais modos de vida estão ameaçados. A ameaça vem de fora, ou de forasteiros que se transformaram em infiltrados. E proteger-se dessa ameaça requer a expulsão do forasteiro. Outros usam a diferença estrategicamente, seja como um modo de garantir direitos que de outra forma não teriam, seja como um modo de justificar a concessão de tais direitos a grupos inteiros de pessoas. A diferença importa mais em termos do tipo de uso que se faz dela, de quem a usa e com que propósito.
As pessoas dizem que deveria haver direitos humanos básicos, mas ocorre que algumas culturas deixam claro que as mulheres, por exemplo, têm menos direitos, ou não devem ser tão livres quanto os homens, nem vistas como eles.
Hoje em dia, o termo “cultura” é frequentemente usado para afirmar a impossibilidade de mudança. Muitos usam esse termo para se referir a uma supremacia biológica. Em tais casos, estamos lidando com justificativas ideológicas das relações de poder e dominação existentes. São justificativas canhestras de privilégios de poder ou status. A cultura tem a ver fundamentalmente com a formação, com o vir a ser. Tem a ver com criatividade, indeterminação e transformação. Não tem a ver com passadismo, essências e costumes fixos.
Muitos usam a cultura como meio de reafirmar divisões estabelecidas, sejam elas divisões de gênero, de raça ou religião. O fato é que muitos que adotam essa argumentação não gostariam de ser tratados como as mulheres costumavam ser ou são ainda hoje em muitas partes conservadoras do mundo. Muitos brancos não iriam querer ser tratados como negros eram tratados na época da segregação ou como ainda são tratados no complexo prisional-industrial norte-americano de nossa era. Muitos ocidentais não iriam querer ser tratados como os muçulmanos são tratados na Europa e na América atuais. Portanto, desejar a outra pessoa um tratamento que eu consideraria odioso se fosse aplicado a mim e tentar justificar isso em nome da cultura, da tradição ou da religião é uma forma de impostura. Não deveríamos desejar aos outros aquilo que não desejaríamos para nós mesmos.
O senhor diria que, se as culturas não podem ser estabilizadas ou fixadas, e se é possível desenvolver as culturas mediante trocas, mediante influências de outras culturas, no final deixariam de existir diferenças? E que acabaríamos tendo uma única cultura? O senhor acha que esse pode ser o resultado da globalização? E uma vez que sabemos que a diferença é essencial, não seria muito importante aferrar-se às diferenças e às culturas específicas – no sentido de preservá-las?
A ideia de uma única cultura é uma ideia ruim e perigosa. As pessoas investem enormemente nas diferenças. Se chegássemos todos a acreditar no mesmo Deus, falar a mesma língua, comer a mesma comida, cantar as mesmas canções, tocar os mesmos instrumentos, tenho certeza de que isso não seria o fim. As pessoas dariam um jeito de exumar algumas características, alguns sotaques perdidos. Repito: um mundo de singularidades não é algo ruim. Os problemas começam quando começamos a legislar sobre a diferença, atribuindo posições baseadas em tais designações arbitrárias, discriminando com base no que frequentemente não passa de puro preconceito. Mas temo que, nesta época de animosidade generalizada, muitos queiram viver apenas entre os seus. O desejo de segregação nunca foi tão avassalador. A própria história está sendo naturalizada de novo. A diferença não é mais uma questão de originalidade e singularidade. É uma questão de separação, de construir muros, de militarizar fronteiras, imunizar corpos contra ameaças externas, reais e inventadas.
Então ser diferente é uma necessidade básica?
É, provavelmente, se não uma necessidade básica, ao menos um profundo instinto ou impulso dos indivíduos, bem como de entidades maiores. Não creio que o desejo de diferença possa algum dia ser erradicado. É provavelmente uma estrutura profunda do que significa ser um ser humano. Mas aspirar à singularidade não é o mesmo que cultivar a diferença. Não é o mesmo que instituir a diferença como algo que é absoluto, algo em cujo nome se queira matar ou morrer. O mundo em que vivemos hoje é um mundo no qual você encontrará muita gente que prefere morrer ou matar em nome da diferença em vez de dispor-se a arriscar sua existência em nome do que é comum a todos. Estamos em perigo de perder completamente de vista o que temos em comum. Nem mesmo a ameaça real da extinção ecológica tem sido capaz de nos despertar de nosso sono dogmático da diferença. E, no que me diz respeito, isso é aflitivo.
Quem decide onde repousa o equilíbrio entre a uniformidade e o desejo de diferença? E quais são os instrumentos para manter esse equilíbrio, especialmente se lidamos com culturas?
As óbvias forças subterrâneas que empurram para algum tipo de homogeneização são extremamente poderosas. Forças de mercado e o tipo de capitalismo que estamos vivenciando nesta fase da história humana são poderosos vetores nesse sentido. Eles aceleram a nova dialética de homogeneização e diferença. Várias religiões universalistas – certas formas de islã, de pentecostalismo – são movidas por poderosas forças homogeneizadoras. A maior das religiões – a mercadoria – é definitivamente uma força desse tipo. Portanto não podemos subestimar esses processos. A diferença é hoje o equivalente do inconsciente.
E há um outro ponto a ser abordado, que diz respeito à ideia de direitos humanos. Penso que é um conceito que está em crise: o conceito de direitos humanos. Não apenas porque a ideologia dos direitos humanos é manipulada hoje em dia por todo tipo de pessoas. Ele faz parte de uma luta global por hegemonia. Então eu acusarei com facilidade meus inimigos de violar direitos humanos enquanto esqueço convenientemente os modos como eu mesmo não os levo assim tão a sério. E o uso seletivo da ideologia dos direitos humanos para atingir objetivos políticos é algo que todos conhecemos muito bem. Mas a crise a que me refiro é ainda mais importante, porque não há consenso algum hoje quanto ao que constitui o humano. Seria o humano meramente uma espécie de acidente natural, ou é mais do que um acidente da natureza?
A seu ver, que papel a cultura desempenha nisso?
Será preciso inventar ações culturais ou práticas culturais que contemplem uma concepção ultra-abrangente de direitos. Provavelmente teremos que partir da premissa de que nosso planeta é habitado por um pouco mais do que simplesmente os humanos. Os humanos não podem ter o monopólio de direitos sobre o planeta. A própria democracia, pelo menos em sua encarnação ocidental, não tem sido mais do que uma democracia dos que se parecem entre si. Para que a criatividade cultural desempenhe um papel nas recalibragens que são urgentemente necessárias, teremos que pensar para além do humano enquanto tal.
Precisaremos pensar em termos dos seres vivos de modo mais geral. O que esse tipo de concepção demanda é um conjunto de novas práticas, cujo objetivo seria, portanto, fomentar essa espécie de abertura para a totalidade do nosso mundo, do mundo que habitamos, e isso teria menos a ver com a preservação do que julgamos ser nossas origens ou nossas especificidades, e mais com o zelo, com uma ética do zelo, e ética e abertura diante do desconhecido. Porque hoje imaginamos tradições ou culturas não como uma coisa que já conhecemos. Sabemos o que elas são e desejamos protegê-las, defendê-las e preservá-las.
E elas são propriedades.
É necessário sair com urgência de um entendimento da cultura como propriedade. Isso precisa vir com um abraço consciente do que é distante e desconhecido, e em função disso a criação de diferentes disposições e sensibilidades me parece absolutamente necessária.
Isso deve partir da própria esfera cultural do sujeito, porque se vier de uma cultura diferente, desencadeando algo novo, haverá um conflito, ou pelo menos não se obteria a aceitação.
Exemplos da África parecem indicar outra coisa. O que é impressionante aqui é a capacidade das pessoas de mobilizar recursos culturais autóctones para abraçar o que é novo, venha este de fora ou não. Tome por exemplo religiões, sistemas de governo, economias de mercado. A África é um laboratório extraordinário. Aqui, as pessoas têm mostrado uma espantosa capacidade de absorver uma porção de coisas que não são criadas por elas. Elas as transformam em coisas que lhes são úteis e seria um tanto preguiçoso concluir que, ao fazer isso, estão apenas mostrando a extensão da sua alienação. Uma lógica diferente está em funcionamento nesse laboratório – a lógica da composição em oposição à das fronteiras.
Dito isso, num mundo em que o racismo é cada vez mais centrado na cultura, ao mesmo tempo em que justificativas biológicas do racismo estão reemergindo, precisamos ser mais do que cuidadosos. Em nome, digamos, da “emancipação da mulher”, do “progresso de gênero” e dos “direitos reprodutivos”, não podemos ficar cegos ao risco de resvalar da promoção dos direitos humanos ao exercício da dominação cultural ou à perpetuação de hierarquias globais.
Mas vamos voltar à diferença. Questionar culturas ou tradições específicas é evidentemente essencial para o desenvolvimento. Mas não pode também levar a conflitos? Coisas terríveis acontecem em nome da cultura.
De fato, coisas terríveis acontecem em nome da cultura. Conflitos acontecem quando uma entidade poderosa sai por aí definindo como “cultura” ou “civilização” aquilo que, na verdade, não passa de uma visão parcial da experiência humana. Conflitos começam quando nos arvoramos a impor a outros o que, na verdade, é uma língua local. Isso foi o que aconteceu com o colonialismo.
Mas como se poderia desencadear a mudança a partir de dentro?
Ela pode vir de dentro, porque essas coisas sempre foram contestadas. O discurso dos homens grandes e poderosos, justificando o que fazem em nome da cultura, esse discurso sempre esteve presente, mas há contradiscursos se examinarmos a arqueologia dessas formações. Encontraremos todo tipo de contradiscursos e contranarrativas em fábulas, em canções, em esculturas. Sempre houve uma cultura da dissidência, cuja história tendemos a esquecer, portanto eu sustentaria que uma redescoberta dessas camadas sedimentadas de dissidência é o primeiro passo para quem quiser provocar uma transformação a partir de dentro.
Uma espécie de transformação que não pode ser imediatamente rejeitada como algo estrangeiro. O melhor exemplo é o postulado de que a homossexualidade é uma coisa não-africana; e isso não é verdade de modo algum. Ela não vem de fora. Mas é aí que o trabalho do conhecimento e do conhecimento crítico se torna extremamente importante para fertilizar novos movimentos e especialmente para abrir o território da imaginação, o raciocínio de que, mesmo que as coisas tenham sido assim antes, isso não significa que devam ser assim sempre. Mas podemos imaginar que isso cria algo inteiramente novo, radicalmente novo, e que é esse tipo de aspiração a criar algo radicalmente novo que precisa ser cultivado, em vez do apego a pequenas diferenças. Mas para fazer isso é preciso ter movimentos sociais, é preciso ter gente organizada. É preciso ter instituições.
Isso se for de fato um esforço cultural para aceitar a transcendência e a diferença, e não o contrário, no sentido de que poderíamos não querer aceitar e transcender as diferenças e que a cultura seria de fato o modo de preservar a diferença.
O reconhecimento da diferença requer esforço cultural, mas requer também trabalho político, trabalho institucional, sobretudo em contextos como o da África do Sul. Mas estou pensando em outros contextos também, nos quais a diferença é usada como alavanca para instituir relações de desigualdade e injustiça. E essa cultura é utilizada como outros instrumentos de transformação na área política, em termos de igualdade na área econômica, em termos de enfrentar a questão da má distribuição. Institucionalmente, em termos de acesso igual a recursos de cidadania para homens, mulheres, negros, brancos e assim por diante.
A expressão cultural precisa da diferença, porque deriva da diferença, caso contrário não teria se desenvolvido. Mas também dissemos que a expressão cultural pode ser o veículo para a resolução da crise, o começo do diálogo, porque a diferença é interessante. Assim, por um lado, poderíamos dizer que as culturas são motivo de conflitos, e por outro lado podem ser o meio de avançar, de encontrar um terreno comum, de compartilhar espaços. Eu me interessaria pelo seguinte: em que formatos, por meio de que ideias, esse tipo de abordagem de tentar alcançar um diálogo pode ser empreendido?
Num determinado sentido essa abordagem é empreendida por meio do conhecimento – conhecimento da natureza discutível, e dos significados discutíveis, de várias formas de expressão cultural. O que geralmente é descrito como “choque de culturas” ou “choque de civilizações” não passa de choque de ignorância. O conhecimento profundo é necessário porque o entendimento só pode resultar do conhecimento. Mas o conhecimento em si e para si não basta. Não é porque conhecemos que necessariamente concordaremos. E eu de fato não acredito que o objetivo supremo deva ser o entendimento a qualquer custo. O objetivo supremo deveria ser o de permitir o maior número possível de manifestações do humano. E, portanto, a tarefa de uma sociedade democrática é proporcionar um espaço onde esse pluralismo é expressado e vivido. O problema emerge quando temos um conflito de valores e quando o estado em particular tem que arbitrar entre demandas baseadas em diferentes valores.
Então, na sua visão, de que modo esse conhecimento pode ser alcançado por meio da aceitação dos outros?
O próprio conhecimento é discutível, claro. Mas pelo menos as pessoas podem concordar quanto a um conjunto de fatos, ainda que a interpretação destes seja uma questão inteiramente diferente. Por exemplo, ninguém contestará o fato de que algumas mulheres muçulmanas usam véu, mas se discutirá o significado atribuído ao ato de usar véu. É também um fato que nem todos concordarão com uma decisão como a de proibir o véu em espaços públicos. Mas penso também que esse conflito de interpretações é absolutamente normal. A diferença cultural se torna problemática no momento em que é feito um julgamento com o intuito de classificação ou hierarquização, com o intuito de dizer: o que você faz não é normal e, portanto, você tem que mudar e fazer do jeito que eu faço. É nisso que consistiu a definição colonial de cultura. Consistiu no fato de eu vir aqui e achar que o modo como você faz as coisas não é moderno, é primitivo e irracional e tem que mudar. Você precisa parar de fazer as coisas do seu jeito, e fazê-las como eu lhe digo para fazer. É aí que temos conflitos. A cultura não pode ser uma questão de determinismo.
O que se poderia fazer para levar alguém – por exemplo na França – a aceitar que as mulheres não têm permissão para cobrir seu cabelo, sem ter preconceitos, sem pensar que isso é algo que tolhe sua liberdade? Porque a proibição obviamente não está funcionando.
Não há rigorosamente razão alguma pela qual as mulheres que queiram cobrir seu cabelo não tenham permissão para fazê-lo. O que eu faço ou não faço com o meu cabelo não é, rigorosamente falando, assunto de ninguém. Em tais questões a lei é importante, claro. Mas a lei é limitada quando se trata de questões de cultura, no sentido de questões de valores. É muito difícil legislar sobre questões de valores, de interpretação e significado. O que a lei geralmente faz é tentar fechar o espaço de deliberação e sabemos muito bem que, ao tentar fechar o espaço de deliberação, a lei simplesmente introduz mudanças nos termos da discussão. Então o que é de fato importante é manter aberto esse campo de deliberação. Diante disso todo o resto é secundário. Mudar a mente de outras pessoas por meio do cinema, da literatura, da música, da arte é importante, mas o que é mais importante é manter aberto o espaço de expressão de diferentes possibilidades do ser.
Então é uma espécie de multiculturalismo e do direito de vivê-lo, sem cercear uns aos outros? Existe neste planeta um lugar em que isso ocorra?
Na verdade, têm existido muito poucas sociedades fechadas, incluindo sociedades que tentam se definir como homogêneas. Praticamente não existiu algo que se possa chamar de sociedade fechada. De modo que temos na história da humanidade um imenso arquivo de coabitação e coexistência, entrelaçamento, mistura. É isso o que todos os impérios representam. É isso que algumas religiões permitem. Eu sustentaria que, em certa medida, a humanidade tem uma tradição muito profunda de ecumenismo, a qual não exploramos como poderíamos.
Claro que ela tem também uma longa história de conflitos terríveis, alguns deles sangrentos e mortais, mas já que estamos falando dentro do horizonte contextual de uma sociedade democrática, de direitos humanos, isso implica duas coisas. Por um lado, o projeto da democracia – porque não há democracia que seja divorciada das exigências dos direitos humanos. E por outro lado o projeto de uma comunidade humana mais ampla, um projeto cosmopolita. A democracia, fundamentalmente, é cosmopolita por essência.
De modo que o problema vem da contradição entre democracia e nacionalismo. Quando o nacionalismo se sobrepõe à democracia em seu duplo caráter de projeto universal, então o projeto cosmopolita e as diferenças culturais tornam-se um problema. Portanto a questão é: como aprofundar a democracia? O problema dos direitos humanos como problema cultural é inseparável da democracia e o meio de transcender a diferença é antes de tudo reconhecê-la, e em seguida aprofundar a democracia e um ethos cosmopolita em oposição ao nacionalismo e a várias formas de nativismo.
O nacionalismo frequentemente não decorre do estado – não é causado pela forma do estado, mas muitas vezes emerge do seio da cultura nativa, do sentimento de identidade, de compartilhar a mesma cultura, a mesma língua, a mesma educação, de ter nascido na mesma área, e de ter ancestrais comuns. Isso leva a um tipo de chauvinismo que normalmente não é uma boa base para a democracia.
A conclusão que provém daí, desse senso de comunidade, é sempre a de ter um estado; de modo que a combinação da forma nação e da forma estado nem sempre é muito favorável à espécie de versão cosmopolita da democracia de que estamos falando. Na verdade ela limita inclusive a própria ideia de direitos humanos, porque um estado-nação basicamente só imagina direitos humanos como os direitos de seus cidadãos, em oposição aos direitos dos não-cidadãos. Portanto a diferença cultural é manipulada para estabelecer uma divisão entre cidadãos e não-cidadãos, nacionais e não-nacionais, homens e mulheres.
Essa é a razão da xenofobia ou, por exemplo, para o status incerto dos refugiados. Seria o deslocamento uma alternativa à estagnação cultural da nação? E se for, como se poderia promover o deslocamento? Isto é, as pessoas se deslocam para todo lado mundo afora. Está se tornando cada vez mais comum mover-se de um lado para outro. Isso poderia levar a uma espécie de aceitação das diferenças?
A mobilidade é o outro. A mobilidade, a circulação, o outro, o que não significa que todo mundo que se move por aí se torna um sujeito cosmopolita, mas a pessoa tem mais probabilidade de acolher a diferença quando se expõe a outros mundos e a outros modos de vida. E, portanto, acredito que sim, o deslocamento é uma alternativa à estagnação, porque outra coisa que os estados-nações fazem é tentar criar fronteiras ao seu redor. De modo que a questão é em que medida reconhecer a diferença, e transcendê-la, requer fundamentalmente um mundo sem limites – um mundo sem fronteiras.
*Katharina von Ruckteschell-Katte estudou Literatura Comparada e História da Arte em Bonn. Foi diretora do Instituto Goethe em Johanesburgo e na África Subsaariana durante cinco anos. Desde 2013 é a diretora do Instituto Goethe na América do Sul.
** A entrevista faz parte do Projeto Episódios do Sul. Buscar visões e contribuições do Sul na arte, na ciência e na cultura, em um contexto de crescente globalização é o objetivo do projeto Episódios do Sul, concebido pelo Goethe-Institut São Paulo. Ao longo de três anos, através de rodas de discussão, seminários, grupos de pesquisa, residências e produções artísticas, serão colocadas em pauta as visões próprias do sul em relação à história da arte global, o futuro dos museus, utopias possíveis, mediação do conhecimento, entre outros temas.
Tradução: José Geraldo Couto
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