A receita do brasileiro que agora vai combater a fome no mundo

José Graziano da Silva, 61 anos, um professor baixinho e careca, muito boa gente, que nasceu por acaso em Illinois, assim como o presidente americano Barack Obama, e veio para o Brasil com três meses, nunca passou fome na vida. Filho de fazendeiro, o agrônomo José Gomes da Silva, que estava fazendo mestrado nos Estados Unidos quando ele nasceu, Graziano seguiu a tradição familiar. Ajudou a fundar o PT no início dos anos 1980, quando os donos de terra tinham pavor de Lula e das suas propostas de reforma agrária e, desde então, é um dos mais fiéis assessores do ex-presidente da República.

O professor que nunca passou fome dedicou sua vida acadêmica e profissional a estudar meios para combatê-la, participou de todas as campanhas de Lula e chegou ao primeiro Ministério, formado pelo ex-líder metalúrgico nascido do outro lado do mundo, no sertão pernambucano, que tinha experiência própria no assunto. Como ministro do Fome Zero, foi encarregado de cuidar do principal projeto do governo Lula: garantir a todo brasileiro três refeições por dia.
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Os dois atravessaram o País de ônibus, trem e barco nas Caravanas da Cidadania, em 1993-94, levando na bagagem o Projeto de Segurança Alimentar, resultado de estudos coordenados no Instituto Cidadania pelo pai de Graziano, “o Zé Gomes do Lula”, como o chamavam os outros fazendeiros. Quase 20 anos depois, agora a dupla se juntará novamente. Lula e Graziano têm planos comuns para trabalhar no combate à fome na África, a prioridade tanto do novo diretor-geral da FAO como do ex-presidente da República. Dedicado seguidor dos ensinamentos de Josué de Castro, o médico nutricionista e professor de Geografia Humana, político e escritor, pioneiro a diagnosticar, ainda nos anos 1930, que os trabalhadores com problemas de saúde no Nordeste sofriam era de fome, Graziano nos ensina uma simples lição: “O primeiro passo fundamental para acabar com a fome é fazer o que fez Josué de Castro: convencer as pessoas de que a fome é um problema criado pelos homens e que, portanto, são os homens que podem resolvê-lo. Isso está ao nosso alcance”.

Brasileiros – Em que e em quem você pensou quando anunciaram em Roma a sua eleição para diretor-geral da FAO? O que foi decisivo nessa disputa? Como foi a campanha? Fazia tempo que o Brasil não tinha uma vitória importante em organismos internacionais…
José Graziano da Silva – Kotscho, sem demagogia, na hora eu pensei na importância da vitória para o Brasil, pensei na presidente Dilma e, particularmente, no Governo e no Itamaraty, porque acho que nós realmente estivemos – durante a campanha e como sempre acontece – sob um fogo cerrado de críticas contra uma suposta pretensão brasileira, como se fosse algo impossível.

Brasileiros – E de onde vinham essas críticas?
J.G.S. – Não sou capaz de identificar precisamente esses setores contrários à nossa candidatura, mas um deles foi, certamente, a grande mídia daqui, que achava a pretensão descabida. Lá fora, eu sempre fui considerado na mídia internacional como o candidato favorito, pelas credenciais que o País tinha. A ordem de prioridade na escolha sempre foi esta: primeiro o país, depois o candidato. Todo mundo sempre diz que um bom candidato precisa ter por trás um país e um currículo. Felizmente, eu tinha as duas coisas que combinavam com o perfil da FAO. Nós começamos a trabalhar na candidatura, de fato, com o lançamento do meu nome, no final de novembro, em Roma, com a presença do presidente Lula. Comecei a viajar ainda em janeiro e me desliguei da FAO em fevereiro.

Brasileiros – Você tem ideia de quantos países visitou nessa campanha?
J.G.S. – Fizemos visitas a uns 25, 30 países. Antes de começar a campanha, visitei alguns países da América Latina e, depois, fora da nossa região, escolhemos áreas prioritárias, onde estive pessoalmente: a Ásia Central, os países da antiga União Soviética, os países árabes e a África. Na Ásia, me dei conta do forte respaldo que tinha o candidato indonésio…

Brasileiros – Quantos candidatos eram?
J.G.S. – Seis candidatos.

Brasileiros – No final, restaram apenas você e o espanhol Miguel Ángel Moratinos, não é isso?
J.G.S. – É… Essa etapa foi a mais dura da campanha, os momentos finais, quando ficou claro que já se antecipava essa polarização, refletida nos votos, entre Brasil e Espanha, América Latina e Europa.

Brasileiros – O que foi decisivo nesse momento?
J.G.S. – Foi decisivo o envolvimento do Itamaraty. A engrenagem diplomática custou a se mover, mas foi fundamental. Para mim, essa foi uma eleição diferente à que eu estava habituado no Brasil. Na FAO, a mídia não tem um papel de protagonista, como em uma campanha política comum. Eu vinha de um longo aprendizado, sabia muito do funcionamento das campanhas, e o Itamaraty colocou uma pessoa fantástica, que me acompanhou por todo tempo, viajou comigo, desde fevereiro, o ministro Carlos Alberto Hartog, alguém que tem a cultura do Itamaraty.

Brasileiros – E isso foi determinante?
J.G.S. – Sim, pois ele tem essa cultura, completamente diferente da nossa história de fazer comício, subir em palanque, dar entrevista para a mídia. Acho que, futuramente, se o Itamaraty souber preservar esse aprendizado que nós tivemos, será muito útil para outros embates. Foi um jogo no qual tive muitos bons assessores, que já tinham participado de eleições. Procurei reunir no Chile, onde eu era diretor regional da FAO, gente que tinha experiência, que tinha participado da campanha que elegeu o atual diretor-geral, Jacques Diouf, do Senegal. Contei com a ajuda também de aposentados da FAO, e até de assessores que apoiaram o candidato chileno, Rafael Moreno, há 18 anos, quando ele foi derrotado. Procurei reunir algumas pessoas comigo e também virtualmente, pois essa também foi uma eleição virtual. Cheguei a ter cinco e-mails funcionando, com a ajuda da minha mulher, a jornalista Paola Ligasacchi, que cuidou de um grupo de imprensa. Outro só cuidava dos discursos. Esses e-mails foram invadidos muitas vezes, o que nos obrigou a trocá-los durante a campanha. No dia da eleição, recebi um relatório do Google, informando que meu e-mail tinha sido invadido e que tinham roubado a lista dos votantes…

Brasileiros – Até na FAO, um órgão da ONU, roubam a lista dos votantes?
J.G.S. – O e-mail que tinha sido “sequestrado” continha as informações sobre os votantes. O cara teve acesso a um documento que era ultrassigiloso, que tinha sido produzido durante a madrugada do sábado e entregue para mim às 6h30 da manhã no domingo. A eleição era às 9 da manhã do domingo, 26 de junho.

Brasileiros – Você me contou antes de começarmos a gravar que a primeira medida depois de eleito foi a questão da residência do diretor-geral. Como é que foi isso?
J.G.S. – O diretor-geral tem um salário definido pela mesma conferência que fixa o orçamento da FAO. A partir dos vencimentos do diretor-geral, será definida uma escala que determina os demais salários. Além disso, tem uma ajuda de custo para moradia e foi alugada uma casa muito imponente, na Via Appia, um dos lugares mais elegantes e chiques de Roma. A minha opção, desde o começo, foi morar em um apartamento funcional mais próximo da FAO, para evitar trânsito, pois detesto perder tempo em trânsito. Se puder, vou a pé para a FAO.

Brasileiros – Quanto vocês economizaram com essa medida?
J.G.S. – Eu preferia não dizer valores. Pedi um apartamento para morar e pedi também para que a conferência fixasse um valor, sem a minha interferência.

Brasileiros – Você só assume o cargo em janeiro de 2012. Quais são seus planos até lá e quais devem ser as prioridades dessa agência que detém o maior orçamento da ONU?
J.G.S. – Eu vou fazer três coisas fundamentais até janeiro. A primeira delas será viajar para visitar todos os 20 escritórios da FAO ao redor do mundo. Quero ir às cinco regiões que abrigam a FAO no mundo. Um dos pontos mais importantes da minha plataforma foi justamente impulsionar a descentralização. A FAO gasta, hoje, três quartos do seu orçamento em Roma e tem uma concentração quase absoluta de efetivos trabalhando por lá.

Brasileiros – Quantos funcionários tem a FAO?
J.G.S. – A FAO tem hoje mais de três mil funcionários, sendo 80% deles, quase 2.500 pessoas, trabalhando em Roma. Quero distribuir esse pessoal e, para tanto, preciso conhecer os escritórios regionais e concluir onde é que precisamos de reforços. Outra questão é cuidar do orçamento. A Assembleia aprovou o orçamento em níveis globais e agora terei de aprovar os detalhes. Eu tenho de entrar nessa discussão e colocar as minhas prioridades, porque esse será o “meu” orçamento. Eu é que vou administrá-lo. Isso será feito em novembro, em uma reunião do Conselho. As assembleias são bianuais e, entre elas, o conselho se reúne duas ou três vezes ao ano. No mínimo, uma vez por semestre.

Brasileiros – E qual será a terceira prioridade que irá estabelecer?
J.G.S. – A outra prioridade é o tema da mulher rural. Um papel importante da FAO é reforçar seus propósitos. A FAO se autodenomina a “knowledge institution“, uma organização do conhecimento. Essa é a definição oficial da FAO, que se encontra, inclusive, no site. É uma verdadeira universidade da luta contra a fome. Junta todas as informações das boas experiências ao redor do mundo, acumula e provê essas informações. Além disso, é ela que faz as estatísticas. Todos esses índices de preço que a gente vê publicados, é a FAO que coleta em todos os países. São estatísticas de produção, preço e consumo. A FAO tem uma função normativa muito importante. Todo mundo que for comer alguma bolacha, arroz ou feijão, se observar a embalagem, vai ver que tem lá uma série de “nutrition facts“, aquelas regrinhas de nutrição. Aquilo é a FAO que faz. O que pode e o que não pode ser utilizado para produzir enlatados e tudo o que faz bem ou mal para a saúde, em termos de alimentação é ela que define.

Brasileiros – Você é o primeiro brasileiro a assumir a direção geral da FAO, em um momento que muitos países, inclusive o Brasil, vivem a contradição de ainda ter problemas graves com a fome e, agora, com a obesidade. A FAO se preocupa com a obesidade também?
J.G.S. – A FAO se preocupa com a alimentação dos ricos e dos pobres. É um erro achar que ela é um organismo dos pobres. Ela é cada vez mais importante para os ricos, porque todas as normas técnicas do conteúdo alimentar e de alimentação saudável são ditadas pela FAO. Inclusive, agora, a FAO está metida nesse negócio de etiquetar os organismos transgênicos, para dizer onde tem e onde não tem transgênico. São coisas muito técnicas que são discutidas, mas que têm um peso enorme na saúde das pessoas.

Brasileiros – A gente pode resumir para um leigo que a FAO é, então, um organismo que não só combate a fome, mas também diz o que comer…
J.G.S. – Resumindo, o mais importante é saber que a FAO não é um organismo financeiro. Ela não faz empréstimos e não dá dinheiro. Tem um banco, o FIDA (Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola), que faz os empréstimos e dá dinheiro, e a FAO não faz empréstimos. Não é como Organização Mundial de Saúde – OMS, por exemplo, que, quando surge uma epidemia, manda os médicos deles para o país atingido. A FAO não tem isso. A assistência técnica da FAO é fazer projetos.

Brasileiros – Por exemplo…
J.G.S. – Agora, por exemplo, veja a grande crise que nós estamos enfrentando no chamado Chifre da África, em países como Buti, Iêmen, Sudão do Sul, Eritreia, Etiópia, até a divisa com o Quênia. Já andei por lá e é fácil concluir que temos duas causas comuns para a fome no mundo: os desastres naturais – esses países enfrentam uma seca de dois anos! – e a guerra. O maior causador da fome ainda é a guerra. Tanto é que a FAO foi criada com a ideia central de que, acabando com as guerras, podemos acabar com a fome. Não havendo guerra, as condições fundamentais, sine qua non para erradicar a fome, estão dadas. A FAO nasceu dessa ideia central e quero resgatá-la. Durante toda a minha campanha, citei muito os fundadores da FAO, peguei o documento de criação e mencionei vários trechos. A constituição da FAO diz que ela foi criada para acabar com a fome e nós temos de trazê-la de volta para essa grande missão. Ajudar os países que não têm condições técnicas para elaborar um plano, com base no que nós sabemos e na experiência que temos, e colocar o nosso conhecimento acumulado a serviço desses países.

Brasileiros – A FAO também pode ajudar na captação de recursos?
J.G.S. – Exatamente. Esse era um dos cinco pontos de minha plataforma. Eu defendia que, além da descentralização, era preciso favorecer a cooperação Sul-Sul. Aproximar países que tenham experiência de combate à fome no Hemisfério Sul – o Brasil é um deles, mas a Argentina e o próprio Chile também têm ampla experiência.

Brasileiros – Você acredita mesmo que é possível acabar com a fome no Brasil e no mundo ou a tendência agora é aumentar o número de miseráveis em decorrência das crises econômicas e das guerras?
J.G.S. – Temos hoje, pela primeira vez na história, as condições para acabar com a fome. Dispomos de tecnologias que nos permitem duplicar a atual produção de alimentos sem nenhum impacto ambiental adicional. Nós não temos restrições de produzir em nenhum lugar do mundo. Temos, sim, é um problema de distribuição dessa produção.

Brasileiros – Temos hoje quase sete bilhões de habitantes no mundo. Qual a parcela que ainda passa fome?
J.G.S. – Nós calculamos que temos, aproximadamente, um bilhão de subnutridos, gente que não come suficientemente.

Brasileiros – Você disse que é possível produzir o dobro de alimentos. Qual é a quantidade produzida hoje?
J.G.S. – Algo da grandeza de 2,5 bilhões de toneladas de cereais, com um estoque de 500 milhões. Dá mais ou menos uns três bilhões, que consideramos um estoque de passagem. É possível, sim, dobrar esse número, mas hoje falta vontade política de priorizar o combate à fome, por conta do problema de distribuição. No Brasil, há menos de dez anos, já éramos um dos maiores exportadores de alimentos do mundo e tínhamos 30% da população sujeita à fome. Precisou vir um cara como o Lula, que tinha passado fome, para dizer: “Olha, vamos dar dinheiro para esse pessoal comprar alimento!”. Para tanto, foi necessária uma primeira ação emergencial, porque você não pode pedir a quem tem fome para que espere. Depois, demos a essas pessoas acesso aos alimentos e procuramos agora combater essa contradição, pois nosso País não pode continuar a ser o maior exportador de alimentos do mundo e aceitar a fome dentro dele. Nós nunca teríamos a credibilidade mundial que temos hoje, se continuássemos aceitando essa contradição. Adotamos uma série de saídas emergenciais, para providenciar o acesso à comida para aqueles que não têm renda, mas veio também um aumento real do salário mínimo, a criação de 15 milhões de novos empregos, o aumento real da renda do trabalhador, e um modelo de desenvolvimento mais inclusivo, mais voltado para a força do mercado interno. Acabar com a fome não é apenas distribuir alimentos. Ao contrário, uma das razões da fome no Norte da África foi a quantidade de alimentos que os países receberam nos anos 1970 e 80, algo que destruiu sua agricultura doméstica. Volto sempre a insistir que o Fome Zero – um programa tão combatido no começo, porque ninguém entendia – foi fundamental para amarrar uma série de pontas que estavam soltas. Conectou as pesquisas da Embrapa, como a melhoria de sementes, que possibilitou a distribuição e o cultivo no Nordeste por meio de programas de assistência técnica. Sem um aumento do poder aquisitivo da população não adiantava produzir, pois não havia quem comprasse e só conquistamos isso recentemente. Uma longa batalha. Lembro que, depois da eleição do Collor, o Lula criou o Governo Paralelo, em 1990, ponto de partida do Instituto Cidadania, responsável pela criação do primeiro Programa de Segurança Alimentar, que levamos, em 1994, ao presidente Itamar Franco.

Brasileiros – No Brasil, só se descobriu a fome como doença crônica com o Josué de Castro, grande mestre brasileiro da área, que foi o primeiro presidente do conselho da FAO, em 1948. Você nasceu um ano depois e se tornou o ministro do Fome Zero, embrião do Bolsa Família, o maior programa social do mundo. De Josué de Castro a José Graziano, passando por seu pai, o agrônomo José Gomes da Silva, ex-presidente do INCRA, qual foi a principal mudança no quadro da fome no Brasil?
J.G.S. – Eu diria que são duas grandes mudanças. A primeira é que a fome deixou de ser um problema de falta de produção para ser um problema de falta de distribuição, como já falei. Antes, as pessoas passavam fome porque faltava produto. O Brasil teve períodos de fome clássica, como no período colonial, quando todo mundo ia trabalhar no café e faltava alimento porque ninguém plantava. Caio Prado Jr. conta muito bem essa história, o dilema brasileiro de jogar toda a mão de obra na exportação de café e passar fome, ter de importar comida.

Brasileiros – Não estamos correndo o risco de repetir isso, hoje, com a cana-de-açúcar? O Estado de São Paulo é um mar de cana.
J.G.S. – Não, por uma razão muito simples. Argentina, Paraguai, Colômbia e Brasil, esses quatro países da América Latina têm pecuária extensiva em grande parte de suas áreas de produção. O interior de São Paulo também era de pecuária extensiva, foi convertido para a produção de cana, quer dizer, não foram roubadas áreas que produziam cereais. A cana não invadiu áreas da produção de alimentos. Mas o grande problema é que a fome se generalizou no mundo todo, como a pobreza. Hoje, não existem países que não enfrentam o problema da fome. Temos países com mais ou menos fome. E temos essa contradição do problema da fome conviver, nesses mesmos países, com o problema da obesidade. Falta de alimentação e má alimentação. Quando acontece uma crise como essa dos Estados Unidos, por exemplo, você tem, consequentemente, um problema de fome que só não vira famine – que é a definição da FAO para a fome na Somália, a fome visível daquele cara esquelético -, o americano só não se transforma nisso, porque há 50 anos os Estados Unidos têm um programa Fome Zero que se chama Food Stamps, um cartãozinho para comprar alimento, criado ainda nos tempos do Roosevelt, depois da crise de 1929. Eu fui ver isso para montar o Fome Zero, porque nos Estados Unidos, na grande recessão, você tinha estoques monstruosos de alimentos sobrando e não tinha para quem vender. Todos desempregados, sem poder aquisitivo. Foi aí que, literalmente, juntou-se a fome com a vontade de comer.

Brasileiros – Uma curiosidade que descobri vendo seu currículo. Você nasceu mesmo em Illinois, a terra do Barack Obama?
J.G.S. – Terra do Barack Obama e do Abraham Lincoln. Eu nasci no centro de Illinois. Meu pai estava fazendo um mestrado em Agronomia na Universidade de Illinois, que fica em Champaign, distrito de Urbana. Nasci lá, vim com três meses de idade para o Brasil, e tive de abdicar da nacionalidade americana quando fiz 25 anos, porque a lei da época não permitia acumular dupla nacionalidade.

Brasileiros – A lei americana ou a brasileira?J.G.S. – A brasileira. A lei americana permitia, tanto que tive de renunciar à cidadania americana, o que me causou problemas por toda a vida. Toda a vez que eu volto lá é uma luta para conseguir visto. Quando vou a uma embaixada americana, tenho de repetir essa história e a conversa sempre termina com a pergunta: “E o senhor não se arrepende?”. Eu digo: “Não!”. É um sofrimento na minha vida, isso. E foi por um zelo do meu pai, desses que só algumas pessoas têm na vida. Meu pai estava oficialmente nos Estados Unidos. Tinha uma bolsa e era técnico do Instituto Agronômico de Campinas. Eu tinha direito de ser brasileiro, porque meu pai estava em missão oficial no exterior. Antes de voltarmos para cá, meu pai me registrou no consulado de Chicago e, depois, quando cheguei ao Brasil, meu avô, que era dono do tabelionato de Araras, poderia até ter me registrado novamente, feito um registro brasileiro, mas meu pai não quis. Mandou traduzir a certidão americana e fez um “assentamento”, “transcreveu” a certidão americana. Quando me formei, fiquei por mais de um ano sem nenhum documento, além da minha carteirinha do centro acadêmico. Eu não conseguia tirar o diploma, não conseguia me casar…

Brasileiros – Mas por que isso aconteceu?
J.G.S. – Foi um processo muito complicado. Tive de ir ao Supremo Tribunal Federal para conseguir minha certidão de nascimento brasileira, que só foi emitida em um tabelionato da Praça da Sé, quando eu já tinha 25 anos. Briguei muito para ser brasileiro! Vivi um bom tempo com um passaporte da ONU que consegui com meu pai. Não queria ser simplesmente nacionalizado, queria ter o direito de ser reconhecido como brasileiro. Andei por mais de dois anos com esse passaporte da ONU, que se dava naquele tempo a refugiados. Era o único documento legal que eu tinha, um documento internacional. Meus pais voltaram depois para os Estados Unidos e tive uma dificuldade imensa para poder visitá-los. Depois, ganhei nacionalidade italiana, por parte de minha mãe, que tem família na Calábria, tutti buona gente

Brasileiros – Nas muitas viagens das Caravanas da Cidadania do Lula, que cruzaram o País de ponta a ponta de ônibus e barco, você viu a fome de perto. Qual foi a cena que mais ficou marcada em sua lembrança?
J.G.S. – Eu nunca me esqueço de duas cenas das caravanas que influenciaram muito as prioridades do Fome Zero. As duas foram no Nordeste. Uma delas foi quando chegamos a uma cidade onde uma barragem havia arrebentado há dois anos e ainda não havia sido reparada. As pessoas procuravam armazenar água da maneira que podiam. Eu me lembro de que a gente estava na casa do prefeito, e o Lula pediu um copo d’água. O prefeito levantou uma tábua do assoalho e, com uma canequinha, pegou a água que estava em uma cisterna embaixo do assoalho da casa. Uma água que tinha de deixar decantar, de tão suja que estava. Isso foi no Ceará, perto de Sobral, cidade de Ciro Gomes.

Brasileiros – E a outra?
J.G.S. – A outra foi uma cena que se repetia muito nas feiras de rua. Ficava muito impressionado com o que via, porque eu conseguia encontrar maçã argentina e não conseguia encontrar uma fruta nordestina. E o Nordeste é uma das regiões frutícolas mais ricas do País. Não tínhamos nenhuma capacidade de promover o que era nosso. Outra cena a que assisti e não esqueci aconteceu em Guaribas, no Piauí, onde começou a ser implantado o Fome Zero. Quando começamos a incentivar a criação de galinhas, e as pessoas não queriam comer aquelas galinhas sertanejas, pois estavam acostumadas a comer frango congelado importado de São Paulo. Esta ideia de não valorizar a produção local está na base da fome, da insegurança alimentar. Uma frase que eu ouvi do Franco Montoro, quando eu acompanhava meu pai aos comícios, em 1982, na primeira eleição direta para governador em São Paulo, ainda durante a ditadura, foi sobre a descentralização do poder. Montoro insistia na defesa da municipalização. Acreditava que algumas coisas você só conseguia agindo localmente. A moradia e a saúde, por exemplo. O cidadão não vive no Governo Federal, vive no município, come no município, mas o alimento geralmente vem de longe. É uma parte que as pessoas se esquecem quando se fala de combate à fome, pois o que encarece a produção de alimentos é o transporte. A produção é muito barata. Se nós conseguirmos produzir e distribuir localmente, teremos uma melhoria da qualidade, diminuiremos custos e perdas. Perdemos, hoje, 30% a 40% em transporte e armazenagem. Só isso daria para acabar com a fome no mundo. É fundamental regionalizar a distribuição. Também é preciso investir na produção regionalizada, mas para se chegar a isso é necessário o apoio da Embrapa, que vai prover sementes de feijão, por exemplo, para o Nordeste, para o Sul, o Sudeste, o Norte e Centro-Oeste.

Brasileiros – A ideia é ter a Embrapa multiplicada, monitorando tudo?
J.G.S. – A ideia é de que a Embrapa me ajude nessa missão da FAO. O Brasil hoje é um grande exportador de tecnologia e de conhecimento. A Embrapa fez o maior programa de capacitação e treinamento, desde o programa espacial da União Soviética, e detém hoje o maior acervo de conhecimento de agricultura tropical do mundo. É a referência mundial em agricultura tropical e pode compartilhar esses conhecimentos.

Brasileiros – Você costuma falar em uma revolução “duplamente verde” para combater a fome e, ao mesmo tempo, preservar a natureza. Como levar essa ideia para a realidade de mundo em que vivemos hoje? Como se implanta isso?
J.G.S. – É o mesmo princípio da produção local. Uma das coisas que mais encarecem hoje a produção são os insumos importados, principalmente os derivados de petróleo, fertilizantes e defensivos. E como é que se minimiza isso? Primeiro, tendo variedades mais aclimatadas, mais resistentes, que dependam menos desses insumos. A revolução verde foi uma genética orientada para melhorar a resposta a adubos químicos – fósforo, potássio e nitrogênio. Nós temos de fazer uma seleção agora, orientada para responder melhor ao tipo de solo que temos – são solos mais ácidos, mais secos, menos dependentes do potássio. Nós não temos potássio na maior parte das regiões do mundo. Precisamos fornecer aos agricultores mais adubos orgânicos que sejam produzidos a partir de decomposição de qualquer tipo de dejeto. Existem experiências muito bem-sucedidas nesta área. Na Argentina, por exemplo, 95% da lavoura de soja já é feita com plantio direto. Lá, você não ara mais o solo e não usa insumos químicos. Essa foi uma das coisas incríveis que eles fizeram. Você faz o sulco e planta direto, em cima daquele capim que sobrou da colheita anterior.

Brasileiros – Então, uma das prioridades do teu trabalho na FAO será levar esses conhecimentos e as novas técnicas de plantio aos países mais pobres, é isso?
J.G.S. – Sim, o plantio direto, por exemplo, é uma coisa inacreditável. A prática de arar o solo começou nos países do Norte, porque lá o solo fica congelado no começo da primavera. Os agricultores aram a terra para acelerar o degelo e evitar a erosão. Quando ocorre o degelo, a parte superior do solo é lavada e eles literalmente quebram o gelo com o arado para drenar essa água. Aqui não existe essa necessidade. Aqui, a aração destrói a matéria orgânica que é exatamente o elemento mais rico do solo.

Brasileiros – Assim como a presidente Dilma, você se saiu vitorioso logo na primeira eleição que disputou na vida, graças ao apoio do ex-presidente Lula. Você pretende agora combater a fome no mundo, principalmente na África, assim como o Lula. De que forma vocês dois podem voltar a atuar juntos?
J.G.S. – Olhe, isso foi uma coisa muito conversada antes com o ex-presidente Lula e quero não apenas reconhecer que ele foi o grande cabo eleitoral da minha campanha. Minha candidatura foi lançada em novembro pelo presidente Lula, de comum acordo com a presidente Dilma. Um dos sonhos do Lula é acabar com a fome e hoje o problema da fome, como todos sabem, é mais grave na África, a região que concentra os dois grandes causadores da fome, como disse antes, os desastres naturais e as guerras.

Brasileiros – E vocês já conversaram sobre a África? O Lula já esteve na África este ano. Vocês trocaram informações?
J.G.S. – Ele pretende criar, no Instituto Cidadania, que vai se chamar Instituto Lula, uma área dedicada ao combate à fome na África, e nós pretendemos, na FAO, tê-lo como Embaixador da Boa Vontade. O primeiro passo fundamental para acabar com a fome é fazer o que fez o Josué de Castro: convencer as pessoas de que a fome é um problema criado pelos homens e que, portanto, são os homens que podem resolvê-lo. Isso está ao nosso alcance. O que ainda está faltando é o que se chama vontade política. Penso que o ex-presidente Lula poderá nos ajudar imensamente, não só pelo exemplo das coisas que ele fez aqui no Brasil, como também por todo o carisma que ele tem hoje no continente africano.

Brasileiros – Assim como o Fome Zero, a iniciativa do governo Lula de abrir várias embaixadas na África foi muito criticada, mas ambas as iniciativas podem levar o Brasil a contribuir para o combate à fome mundial. Essa decisão de abrir embaixadas na África já tinha a ver com a intenção brasileira de contribuir em escala mundial?
J.G.S. – Sem dúvida. O Brasil definiu uma política externa de priorizar relações com a América Latina, o Caribe e a África. Isso vem desde o Celso Amorim. Temos embaixadas hoje nos 15 países do Caribe, que são ilhas muito pequenas, algumas têm apenas 10 mil habitantes. Estive em Granada recentemente, uma ilha com 100 mil habitantes, e o principal apoio que damos lá vem da Embrapa. Conto até uma história interessante que aconteceu em uma reunião do Caricom (Comunidade do Caribe), com os presidentes dos 15 países da região. O primeiro-ministro de Granada estava muito preocupado, porque eles tinham mandado uma técnica fazer um curso na Embrapa sobre conservação de frutas tropicais, uma das grandes potencialidades da ilha, que tem quase tudo que nós temos aqui, mamão, manga, abacate. Um clima muito parecido com o nosso, você pensa até que está na Bahia. O sistema produtivo deles terminava em um processo de congelamento de polpas de frutas, como nós temos aqui. O problema do primeiro-ministro é que eles usavam um gerador movido a diesel e, quando ligavam a máquina de congelar, derrubavam a energia que alimentava boa parte da ilha. Era impossível manter uma estrutura de congelamento contínuo das polpas. Consegui telefonar do gabinete dele para um técnico da Embrapa, que prontamente me disse que tínhamos a solução para isso. Disse ao primeiro-ministro: “Fique tranquilo que nós vamos mandar para cá uma máquina que, em vez de refrigerar, desidrata as frutas e dispensa a conservação contínua com o congelamento”. Foi feito um convênio com a embaixada e conseguimos prover essa solução.

Brasileiros – Isso me fez lembrar de uma viagem de barco que fizemos pelo interior do Amazonas com o Lula, na Caravana das Águas. O problema de uma das vilas que visitamos era parecido com esse. Tinha quebrado a bomba d’água há vários meses, e o pessoal estava lá discutindo sobre o que fazer, todos se perguntando: “Quando é que o prefeito vai atender a gente?”, até que alguém sugeriu: “Não é mais fácil a gente fazer uma vaquinha e pagar o conserto desta bomba?”. Tão simples…
J.G.S. – Pois é, as pessoas acham que só é possível colaborar com muito recurso financeiro, mas o grande recurso que o Brasil tem a oferecer é o conhecimento. Essa é a missão da FAO, fazer com que o camarada saiba para quem ligar, e o cara dizer: “Sim, eu tenho o conhecimento que você precisa”.

Brasileiros – No tempo de Josué de Castro, quando ainda chamavam alimento de comida e não de commodity, diziam que no futuro o Brasil se tornaria o celeiro do mundo. Desde criança eu ouço isso…
J.G.S. – Mas isso acontece hoje com uma série de produtos. Já vamos para seis, sete anos que o Brasil é, de fato, o celeiro do mundo. É o maior exportador global do mundo, hoje, principalmente de carne. Além da soja, conseguimos fazer uma coisa que os argentinos não conseguiram nunca: exportar carne. O Brasil é o maior exportador de frango e carne bovina do mundo. Estamos tentando fazer o álcool, o etanol, virar uma commodity. E o que significa isso? Significa que quando é uma commodity, tem uma cotação internacional, que é a mesma em todas as bolsas, e pode ser negociado como o petróleo, mas, para isso, ele precisa ter uma padronização. Você compra sem ver o produto, como o café que é uma commodity. Existem vários tipos de café. Tem o café Rio, o tipo II, mas em qualquer lugar do mundo o café Rio e o tipo II têm o mesmo sabor, o mesmo gosto, e um preço regulamentado. Commodity é um conjunto de regras e padronizações aceito internacionalmente. É necessário um mecanismo regulador. O chinês que compra a nossa soja precisa saber o que está comprando. Não precisa vir ao Brasil analisar uma amostra dessa compra.

Brasileiros – E por que os preços dessas commodities, que não param de subir, fazendo disparar a inflação em muitos países, são hoje responsabilizadas pela crise econômica mundial? Há três anos, foram os bancos e aquela quebradeira toda, agora são as commodities. Por quê? A culpa é do Brasil?
J.G.S. – Com a globalização, alguns poucos produtos passaram a responder pela alimentação básica do mundo todo. Houve uma padronização e uma eliminação das diferenças regionais. Hoje, cinco grandes commodities são responsáveis por 80% da alimentação mundial. O milho é disparado a maior delas. Depois, o trigo, a soja, o arroz e a batata. O milho e a soja também servem para alimentação animal. Um frango é nada mais do que 3,5 kg de milho prensados. E este é um grande problema, pois a tendência, quando se melhora a renda, é aumentar o consumo de carne e toda carne é um multiplicador de commodities. Em vez de consumir diretamente um quilo a mais de milho ou de soja, você consome 3,5 kg a mais de milho cada vez que compra um frango. Um quilo de carne suína demanda 7 kg de milho! Os chineses, por exemplo, comem mais porco hoje. Isso significa que ele come sete vezes mais soja ou milho do que antes.

Brasileiros – Uma coisa acentuada pela melhoria de renda…
J.G.S. – Sim, no caso da China, a melhoria de renda e os mais de dez anos de crescimento a mais de 10%. Uma das coisas que a FAO tem feito, e eu insisti muito nisso nessas duas crises econômicas, é a manutenção de um processo de “descomoditização” dos alimentos. O alimento não é só a quantidade de proteína, de calorias e o valor nutricional do que você come, tem também um valor cultural intrínseco. O italiano tem uma comida mediterrânea, o brasileiro tem a feijoada. Nós temos um componente cultural que pode ser recuperado com a melhoria de renda. Esse componente cultural valoriza as comidas locais, os sabores regionais. A cachaça no lugar do uísque, que é também uma commodity, e a cachaça não, porque cada um faz cachaça do seu jeito. Não existe uma regra internacional, como a do uísque que é produzido respeitando normas mundiais. O que a FAO tem insistido muito é a importância de resgatar esses produtos tradicionais.

Brasileiros – Trata-se, então, de uma volta às origens?
J.G.S. – Perfeitamente. Precisamos incentivar a volta à produção local, pois a fome tem de ser combatida localmente. Quer produto mais rico do que a quinoa? Anualmente, a FAO nomeia um produto para ser celebrado em seu “ano internacional”, e o meu primeiro será a quinoa, um cereal boliviano parecido com o arroz, mas extremamente resistente à seca, que lembra o gergelim. A Embrapa já conseguiu adaptar variedades da quinoa e agora ela dá em qualquer lugar. Eu fiz um convênio com a Bolívia, com o apoio do embaixador brasileiro, que assegurou a colaboração da Embrapa.

Brasileiros – Surgiu lá nos Andes, foi adaptado aqui e agora vai correr o mundo?
J.G.S. – Pode correr o mundo, mas essa ideia do alimento ter esse conteúdo local é que é o princípio fundamental. É por isso que acredito que dá para acabar com a fome. É preciso descobrir nichos como esse e incentivar a produção. A agricultura familiar é muito importante, pois são esses agricultores que têm o conhecimento local e sabem como produzir esses alimentos que não são commodities.

Brasileiros – Você, que hoje é um brasileiro do mundo, conte-nos uma coisa. Onde é melhor para se viver: em São Paulo, na tua fazenda em Pirassununga, na tua chácara em Campinas, onde você sempre lecionou, em Santiago, no Chile, ou será em Roma?
J.G.S. – Vivi muito bem nesses últimos cinco anos no Chile e, se não fosse pelo terremoto, que realmente foi algo traumatizante, eu não teria nenhuma razão para sair de lá. O Chile foi um país onde Paola e eu vivemos muito bem. É um país que valoriza muito a segurança do cidadão. Você pode andar na rua com tranquilidade a qualquer hora do dia e da noite. Ainda hoje no Chile, qualquer pequeno assalto vira manchete de jornal. No Brasil, ainda não avançamos muito nessas questões da segurança cidadã. Acho também que será uma boa experiência viver em Roma e voltar às origens da família de minha mãe, os Graziano. Mas pretendo mesmo é manter um pé em Pirassununga. Lá, a família cultiva cana, laranja, seringueiras e produzimos palmito ecológico, o palmito Gomes da Silva.


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