“Não há inocentes. Todos têm responsabilidade pelos horrores”

 

Foto: Reprodução/Facebook de Vanessa Beeley
Foto: Reprodução/Facebook de Vanessa Beeley

À frente da comissão internacional e independente nomeada pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) para investigar as violações de direitos humanos na Síria, o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro não tem dúvidas: os integrantes da oposição que começaram os protestos contra o governo de Bashar al-Assad durante a chamada Primavera Árabe, a partir de dezembro de 2010, não têm mais participação direta no conflito. “Ou eles estão mortos ou presos ou refugiados. Não tem oposição civil. Só existem grupos armados, militarizados. O que começou com protestos contra o governo se transformou em 2012 em um conflito bastante militarizado”, afirmou Pinheiro em São Paulo, onde mora e recebe relatos das mais diferentes fontes, entre elas representantes dos grupos armados e dos capacetes brancos, como são chamados os voluntários locais que atuam nos primeiros-socorros às vítimas.

Convicto de que não existe grupo armado moderado, Pinheiro acredita que a única saída para o conflito é a negociação. Para o cientista político, a retomada da parte Leste da cidade de Alepo por parte do governo não significa o fim da guerra: “Os grupos armados, que estão entre os mais cruéis daquela região, vão continuar lutando contra o governo Assad. Saem de Alepo, mas vão continuar lutando”. Em entrevista à Brasileiros, ele afirmou que recebe com cautela notícias que circulam nas redes sociais de que na Síria há mulheres se matando para escapar do estupro: “Nem tudo que está saindo nas redes sociais corresponde à verdade. Evidentemente que entre os refugiados tem problema de casamentos precoces, de violações de adolescentes e de trabalho forçado, mas querer completar o horror da guerra em Alepo com esses detalhes… Na verdade, ninguém sabe.”

Em agosto de 2012, quando o cientista político já chefia a comissão nomeada pela ONU, a Brasileiros publicou uma reportagem de capa sobre o seu trabalho, intitulada Paulo Sérgio Pinheiro, o Pacificador

Brasileiros – Como o senhor, que acompanha o conflito na Síria desde o começo, analisa a situação em Alepo?
Paulo Sérgio Pinheiro – Desde outubro a situação só vem se deteriorando. As negociações propriamente ditas foram paralisadas e o quadro se agravou também devido à intensidade dos ataques do governo da Síria, com apoio da aviação russa e também outras forças no terreno, como o Hezbollah. Simplesmente agravaram a situação na região Leste da cidade. Quando falo Alepo, estou falando da cidade, não da província. Então é preciso também sempre levar em conta que existe a região Oeste de Alepo, controlada desde sempre pelo governo da Síria.

A parte controlada pelo governo? 
Sim, pelo governo da Síria. A questão é que há uma desinformação total sobre quem é essa brava oposição armada que os Estados Unidos chamam de grupos moderados. Não existe grupo moderado algum. Esses grupos estão associados à organização que antes era Al Nusra, hoje a sucursal que se chama Jabhat Fatah al-Sham, que é exatamente a sucursal da Al-Qaeda, apesar de eles fazerem um esforço de dizerem que não são. E esses grupos armados atacavam indiscriminadamente – eles não têm aviação, mas têm morteiros – a população civil de Alepo Oeste.

O Jabhat Fatah al-Sham?
Isso mesmo, mas tem outros grupos também. Todos esses grupos participam dessa frente. O Al-Sham é considerado pelo Conselho de Segurança da ONU uma organização terrorista, assim como o Estado Islâmico. São esses grupos que estavam lutando em Alepo Leste.

Com apoio dos Estados dos Unidos.
E com apoio do Reino Unido, da França além de, evidentemente, da Turquia, da Arábia Saudita, do Catar. Enfim, toda a frente contra o governo Assad. Esses grupos, boa parte do tempo, tomam refúgio na população civil.

Tomam refúgio?
Eles ficam dentro das habitações ou mesmo colocam armas em escolas. Com isso, transformam essas escolas em alvos militares legítimos, o que é uma coisa grotesca. E também impedindo a população civil, que queria sair de Alepo Leste. O noticiário é totalmente desinformado e só dá a versão oficial dos países e da frente contra o governo Assad. Não há inocentes. Não há nenhum inocente. Todos têm responsabilidade pelos horrores que ocorreram em Alepo Leste.

Podem estar ocorrendo ainda?
Agora diminuiu. Com o governo no controle, a questão está só no debate humanitário, mas, há pouco, vários ônibus foram incendiados. Eram ônibus que transportariam habitantes para fora de Alepo Leste.

O presidente Assad ficou mais forte?
Foi um tento importante conseguir derrotar esses grupos em Alepo Leste. O que precisa ficar claro é que os integrantes da oposição que iniciaram o movimento tipo Primavera Árabe ou estão mortos ou estão presos ou estão refugiados. Não tem oposição civil. Só existem grupos armados, militarizados. Quer dizer, o que começou com protestos contra o governo se transformou em 2012 em um conflito bastante militarizado. Depois, em  uma outra etapa, de maior envolvimento das forças regionais, e o último círculo com o envolvimento das potências, os membros permanentes do Conselho de Segurança. De um lado, os Estados Unidos, a França e o Reino Unido. Do outro lado, a Rússia e a China, que não está envolvida diretamente no conflito armado, mas apoia a posição russa.

Que é a favor do Assad.
O apoio é legal. Na verdade, a Síria é um Estado-membro da ONU e a carta da organização autoriza, em casos de ameaça, a solicitar o apoio de outro Estado-membro. Então, isso tem uma certa legalidade. A presença das outras potências não tem legalidade nenhuma. É tudo absolutamente ilegal.

Essas outras potências apoiam os grupos rebeldes?
Exatamente. E esses grupos rebeldes são aliados a uma organização terrorista. Não estou falando do Estado Islâmico. O Estado Islâmico é outra história. Está em outra parte do território da Síria.

É também um dos protagonistas do conflito?
Certamente. Não no caso de Alepo. É um dos protagonistas do conflito porque a coalizão em torno dos Estados Unidos ataca o Estado Islâmico, mas também a Rússia e a Síria atacam. Sem falar nos curdos, que também atacam o Estado Islâmico.

Há saída à vista?
A única saída é uma saída negociada. Essa vitória do Assad é uma vitória de Pirro. Não significa o fim da guerra. Esses grupos armados, aliados aos terroristas, que estão entre os mais cruéis daquela região, vão continuar lutando contra o governo Assad. Não sei se o Ocidente vai continuar apoiando. Eles têm recursos. Saem de Alepo, mas vão continuar lutando.

Não param de circular informações nas redes sociais e jornais de que mulheres estariam se matando na região de conflito para evitar serem estupradas.
Eu tomaria isso com uma certa sobriedade. É evidente que podem ter ocorrido casos limites, mas acreditar em tudo… Nem tudo que está saindo nas redes sociais corresponde à verdade. Evidentemente que entre os refugiados tem problema de casamentos precoces, de violações de adolescentes e de trabalho forçado, mas querer completar o horror da guerra em Alepo com esses detalhes… Na verdade, ninguém sabe. Nem nós que estamos lá. As informações que se tem, a não ser quando é da Unicef ou do Alto Comissariado de Refugiados, são todas de organizações da sociedade civil ligadas à oposição ao governo Assad. Apesar de algumas serem sérias, de fazerem bons levantamentos, nenhuma tem interesse muito grande em mostrar moderação no conflito.

As fontes para os relatórios que o senhor prepara sobre o conflito continuam sendo da área do conflito?
Continuam as mesmas. Recebemos informações do interior de Alepo. No final de janeiro vamos lançar um relatório especial que o Conselho de Direitos Humanos da ONU nos pediu para fazer sobre Alepo. Mas é a mesma coisa. Pessoas que saem. São médicos, enfermeiras, capacetes brancos (voluntários locais que prestam serviços de primeiro-socorro) e também integrantes dos grupos armados. Falamos com os governos dos dois lados.

Também com os grupos considerados terroristas?
Falamos com todo mundo. Ninguém escapa, a não ser o Estado Islâmico. O nosso único limite é não conversar com o Estado Islâmico nem com essa sucursal da Al-Qaeda, Jabhat Fatah al-Sham. Agora falamos com os que lutam com eles. E com os próprios grupos, que têm sempre enviados em países da região. Nós também conversamos com todas as organizações da oposição ligadas a levantamento de violações. Nós não tomamos partido. Não temos lado nenhum. É um exercício difícil, mas temos conseguido fazer.

 

 


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