Testemunhas de seu tempo, os filmes podem revelar muito sobre a sociedade que os produziu. Tendo isso em vista, a cineasta Fernanda Pessoa decidiu fazer uma releitura dos anos 1970 no Brasil, período mais truculento da ditadura militar. Porém, a diretora recorreu a fontes pouco usuais: as produções da chamada pornochanchada.
Exibido no dia 26 na Mostra de Cinema do Tiradentes, o longa-metragem Histórias que o nosso cinema (não) contava reúne trechos de 30 obras da pornochanchada que, mesmo de maneira indireta, trazem comentários sobre as questões centrais da época como o milagre econômico, a tortura, a emancipação feminina, o êxodo rural e o racismo.
No debate com o público, realizado no dia 27/1, a crítica Sheila Schvarzman afirmou que “através da junção desses vários filmes é possível ter uma nova perspectiva sobre essa produção. Percebemos que esse conjunto não era mero entretenimento, como os críticos da época alegavam, mas que ele falava sobre o seu tempo histórico. E isso é muito importante, precisamos abrir mais os nossos arquivos”
Mistura de erotismo e cinema popular, a pornochanchada foi um dos principais gêneros do cinema brasileiros na década de 70. Eram filmes de baixo custo e rentabilidade alta, que atraiam um grande público aos cinemas nacionais. O gênero foi alvo de críticas tanto da esquerda – que o considerava alienante – quanto da direita, que, sob o viés moralizante, denunciava as cenas eróticas.
Em Histórias que o nosso cinema (não) contava há cenas claramente questionadoras. Uma das mais emblemáticas é a do longa-metragem E Agora José? – Tortura do Sexo (1979), de Ody Fraga. O filme aborda a perseguição aos militantes, contando com uma forte cena de tortura. Já em As Aventuras Amorosas de um Padeiro (1975), dirigido por Waldir Onofre, existem sequências que tratam abertamente do divórcio e do aborto.
Há também cenas de homofobia, racismo e principalmente misoginia, já que muitos desses filmes tratavam a mulher de forma submissa aos homens. Porém a diretora enfatizou que seu longa-metragem não faz uma adesão ao discurso das pornochanchadas.
“No próprio filme fica evidente que problematizamos essas cenas. Através da montagem, nós ressignificamos esses discursos para contar uma outra história, que claro parte do nosso próprio olhar sobre os acontecimentos do País”, afirma Pessoa.
No debate com o público, a diretora comentou a pluralidade do que se costuma englobar como pornochanchada. “São filmes muito diferentes entre si. É um corpus heterogêneo tanto tecnicamente quanto ideologicamente. Existiam vários subgêneros como o policial, o terror e o western”.
Assim como o documentário Cinema Novo, lançado recentemente por Eryk Rocha, o longa de Pessoa é o que se chama de filme arquivo. A obra é composta apenas pelas cenas e sons dos longas da época, não há entrevistas ou narração em off. Porém o trabalho de montagem cria uma espécie de diálogo entre os filmes, evidenciando alguns temas em comum.
A diretora contou que demorou cinco anos para produzir o filme. O primeiro passo foi assistir toda a produção cinematográfica nacional dos anos 70 e selecionar as obras. Porém, os trâmites burocráticos foram a parte mais difícil. “Ao longo do processo, o pior foi ir atrás dos direitos dos filmes e principalmente de cópias de boa qualidade. Gastamos muito dinheiro para adquirir esses direitos e restaurar as obras que estavam danificadas”.
Ao final do debate, Schvarzman também pontuou que “esse novo olhar sobre a pornochanchada é muito importante porque nos faz refletir sobre as leituras que fazemos dos filmes atuais, ou seja, do nosso próprio tempo histórico. A verdade é que ainda há um enorme preconceito com o cinema popular, sempre associado à alienação”.
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