As afinidades eletivas de Liliana Porter

Nada como uma aparente e diminuta construção visual, sintética a ponto de ter que lidar com o próprio vazio ao redor (e que pode reunir referências bem reconhecidas: ícones culturais, objetos do nosso dia-a-dia, simbologias midiáticas, souvenirs da memória), para deixar claro o caráter enigmático do real, seu lado mais escorregadio. A tênue fronteira entre a realidade e a ficção – e sua interpenetração e osmose – serve à Liliana Porter para configurar uma obra que sabe manter-se equidistante nessa polaridade, aprofundando-a, conseguindo andar sobre o fio imagético, apesar dos riscos e perigos assumidos (sem cair no mimetismo nem no escapismo visual).

Nada sobra, nada falta no trabalho que está à vista, mas tudo é metafórico e metonímico, pois o que gravita fala; o território da elipse imaginante que tem todo um background sociocultural incluído, totalmente removido de seu status clássico. Fala-se da falta enunciada pelo enigma e, não obstante, da nossa comunhão espiritual com ele; de modo alusivo, como fazem as partes, os fragmentos, os signos visuais em relação às coisas significadas. Assim, os objetos escolhidos pela artista vêm com suas coordenadas específicas (temporais, contextuais, ideológicas, imaginárias) para uma dança-diálogo que passa por cima da síntese consoladora da dialética (algo impossível, já de outra época). Não é estranho, então, que o foco da imagem (em obra gráfica, fotografia, desenho, vídeo, inclusive nas pequenas instalações) esteja claramente orientado, superdefinido em seu espaço de set fotográfico – quase publicitário, mas com uma função invertida -; espaço transformado em tempo e intensificado em seus limites reduzidos, colocando em destaque uma cena neutra onde o lugar praticamente não existe como tal, talvez para fazer o tempo aflorar, ou melhor, os tempos, a transversalidade lançada pelos diálogos estabelecidos pela artista.
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Como resultado, a articulação dos personagensobjetos (e vice-versa) e este local de ação (o vazio como palco, mero receptáculo, algo beckettiano) produzem situações específicas, inimagináveis, que deixam em suspenso nossa credibilidade inicial, a terra firme rumo a outro destino mais volátil. Casualmente, os objetos-signos de Liliana Porter carregam a marca conceitual de oferecer imagensquestões, de se transformar em pesquisas linguísticas a favor de novos resultados semânticos. Jogos de linguagem, por outro lado, que sempre mostram uma porosidade com o mundo, uma proximidade, embora este não deixe de ser estranho e familiar ao mesmo tempo, e se configure como uma dúvida ontológica permanente.

O que se oferece é um estado visual um pouco na contramão dos tempos, celebradamente maiúsculos, espetacularizantes, o que não deixa de ser uma oxigenação perceptiva, sensível: seus trabalhos nos movem a aproximar-nos, a mergulharmos nas imagens, e esta aproximação é reveladora de uma redobrada chamada de atenção, de um pedido de agudeza diante da anestesia padronizada ou da inércia espiritual. Faz parte, então, da poética paradoxal da artista que a brevidade e a concisão formais e de elementos, a concentração e a síntese visuais, precisamente, criem uma vasta conexão e fricção de imaginários, um amplo território de situações sem praticamente nenhuma história narrada (estão cortadas ou inexistentes, antes e depois da aparição da imagem) – o contrário do relato da História como histórias maximalistas e com escassas situações específicas, cotidianas.


Luciana Brito Galeria
Rua Gomes de Carvalho, 842
Até 22 de outubro
De terça a sexta, das 10 às 19hs; sábados, das 11 às 17h



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